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Economia e a Luta de Classes no governo Lula – Parte 1

Agência Brasil

Gabriel Santos

Gabriel Santos é nascido no nordeste brasileiro. Alagoano, mora em Porto Alegre. Militante do movimento negro e popular. Vascaíno e filho de Oxóssi

“Ninguém pode servir a dois senhores, pois odiará um e amará o outro,
ou se dedicará a um e desprezará o outro” – Evangelho de São Mateus; Capítulo 6 versículo 4
“Não estou a serviço de ricaços e banqueiros” – Presidente Lula
“Ninguém come PIB, come alimentos” – Maria da Conceição Tavares

Alguns meses atrás um amigo e camarada me apresentou Betinho, e recomendou assistir a série sobre sua vida. Impressionado por sua trajetória, uma frase de Betinho me marcou, “a alma da fome é política”.

Lula sabe muito bem desse fato, assim como é consciente da devastação econômica e social que assola nosso povo desde o Golpe em Dilma. Ciente da necessidade de reconstruir o país com base no crescimento da renda, combate à fome e a desigualdade, o Presidente sempre afirma que seu terceiro mandato precisa ser melhor que os anteriores. Era o momento de fazer “40 anos em 4”.

O atual governo liderado por Lula, um governo de coalizão de classes, é uma coalizão entre diversos partidos e forças sociais comprometidas em restaurar a normalidade democrática e as instituições erguidas durante a Nova Republica. Ou seja, o governo foi eleito para derrotar o fascismo brasileiro. Fez isso nas urnas e agora está diante de uma verdadeira guerra.

A conjuntura brasileira, por mais que teve momentos distintos na relação governo e oposição ao longo do ano passado, isso se deu nos marcos de uma situação estratégica defensiva na relação capital-trabalho. Sendo assim, o projeto político-econômico do governo Federal corresponde a esse cenário, onde as possibilidades de ações de enfrentamento à condição a lógica dependente de nossa economia são limitadas.

Qualquer análise sobre a política econômica do governo que ignore o contexto da última eleição, a tentativa de golpe do 8 de janeiro, a força e mobilização da oposição no parlamento e fora dele, assim como nosso marco de Nação dependente em um capitalismo financeirizado, tende a errar. É preciso partir dessas premissas para avaliar as possibilidades, desafios, e batalhas.

Além de combater as forças sociais que alimentam o fascismo e a extrema direita, o governo Lula se enfrenta com grupos da própria coalizão governista quando o tema é a pauta econômica.

Justamente pelos fatores elencados acima, o atual governo Lula, não pode ser um governo como foi os dois primeiros. Sua estratégia e sua política estão equivocadas (mas isso cabe discutir em outro texto). O momento pede disposição de enfrentamento.

A principal luta política hoje no país, se dá no campo econômico. É a disputa feita pelas principais frações da burguesia brasileira, liderada pela financeira, para impor ao governo uma política fiscal de restrição para o povo e lucro para si própria.

O Presidente Lula x Campos Neto e a autonomia do Banco Central

O povo brasileiro, quando foi às urnas em 2022, elegeu Lula, fez uma opção e deu um recado. O programa eleito pelo voto é o programa do emprego, do crescimento econômico do Brasil, do reposicionamento de nosso país no mundo, que disse não à fome e sim a políticas públicas.

O nossa classe dominante, que agora de forma moderna adota o vulgo de “mercado”, busca asfixiar o novo governo e impor a qualquer custo seu projeto. Querem desgastar o governo diante da população ao impedi-lo de promover as mudanças prometidas no cenário eleitoral e necessárias aos olhos da História para o desenvolvimento do Brasil.

Vimos no último mês, e em especial nessas últimas semanas, o crescimento de críticas públicas do Presidente Lula ao presidente do Banco Central, Campos Neto. Algo que foi tudo como inaceitável pela imprensa burguesa.

Lula, diversas vezes, criticou a alta do juros, e apontou que investimentos sociais e políticas públicas, como a aposentadoria, não deveriam ser diminuídas no orçamento federal enquanto grandes empresas deveriam pagar mais impostos. Lula, demonstrou que a política monetária, cambial, e o sistema tributário, estão a serviço dos grandes capitais, vulgo mercado financeiro.

Em respostas temos assistido um sem número de matérias contrárias ao Presidente. Uma política consciente de boicote e asfixia ao governo, que além da grande imprensa, conta com o presidente do Banco Central (admirador do governador de São Paulo e Tarcísio Freitas) sua política de aumento do dólar, e manter a taxa selic acima da meta recomendada.

Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, com gestão indicada por Bolsonaro, insiste em manter os juros altos com o argumento ridículo de que seria em nome do combate à inflação. Em todas as outras principais economias do planeta Terra a taxa de juros está abaixo da inflação. No Brasil, a regra é o absurdo. Não é somente que invertemos a lógica das demais economias. Mas a taxa de juros real se encontra OITO pontos acima da inflação. Isso impede que o Banco Central alcance as metas definidas na lei. Além de colocar o Brasil em desvantagem competitiva, estrangulando as empresas brasileiras, atingindo o bolso do povo pobre e consequentemente enfraquecendo a economia do país.

É o BC que permite que o dólar siga valorizando diante do real, em uma ação que parece coordenada para desvalorizar a nossa moeda e assim desestabilizar o governo federal atingindo sua política econômica. Vale lembrar que durante o governo Bolsonaro, sob a gestão de Roberto Campos Neto, o Banco Central do Brasil realizou 20 intervenções diretas significativas para controlar a cotação do dólar, além de diversas medidas indiretas para estabilizar o mercado cambial.

Ao definir ao seu gosto e deleite a política monetária, os representantes do capital financeiro no BC apontam que o Estado deve financiá-los por meio da emissão de dívida, enquanto determinam o quanto devem receber nesse negócio. Isso tudo para terem seu lucro parasitário, mesmo que para isso tenha que prejudicar a economia de todo país, impedindo investimentos e aumentando a dívida pública.

Vemos um representante do sistema financeiro, que não foi eleito, definindo os rumos da política econômica do país, e impondo o projeto econômico dos bancos contra o eleito pelo povo. Isso é um exemplo nítido de como a democracia no Brasil é limitada.

O papel público do presidente do Banco Central deveria opinar somente quando necessário e sobre assuntos que lhe pertencem. O que vemos hoje é o oposto. É Campos Neto agindo como um popstar, dando uma série de entrevistas, e com declarações dúbias e contrárias ao governo eleito. Fazendo com que o mercado atue contra a moeda brasileira.

Campos Neto e o Copom (Comitê de Política Monetária), além de agirem contrários ao programa eleito nas urnas, de irem a contra mão do planejamento do governo, ainda acusam o mesmo de tumultuar o cenário econômico

Esse tema não é uma questão técnica, mas sim política. Política no sentido profundo da palavra. É a disputa pelo Poder. É a guerra por outros meios. É a guerra entre classes. Disputas de interesses diferentes e antagônicos. De um lado os bancos lucrando. Do outro o povo trabalhador sem crédito, com dívidas e dificuldades de pagar contas em dia, parcelando o cartão de crédito com mais de 400% acumulado no ano.

É hora dos movimentos sociais e populares apoiarem as denúncias feitas pelo Presidente Lula e ser parte ativa na luta contra Campos Neto e os juros abusivos. Sem isso, as chances do governo dobrar a aposta e ir para o confronto são mínimas. A lei que deu autonomia ao Banco Central também diz em seu Art. 5º inciso IV que existe a possibilidade do presidente do Banco Central ser exonerado pelo Presidente da República em caso de “recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos do banco central do Brasil”.

O grande desafio de Lula hoje é governar. Governar de fato, como Presidente da República. Porém hoje de fato existe um semi-parlamentarismo de coalizão, fruto da crise institucional pós-Golpe e da quebra da norma jurídica que sustentava a Nova República.

Lula precisa governar e implementar o programa eleito nas urnas. Isso é impossível com o atual orçamento. Ganhar a batalha atual contra o Banco Central e a Copom será fundamental no acúmulo de forças do governo e uma resposta para a oposição e para a burguesia. Hoje, porém, esse é o cenário menos provável. O que deve acontecer é uma derrota diante da pressão feita pela burguesia, congresso, bolsonarismo e grande mídia.

Caso o governo ceda ao grande capital e aplique uma política de ajuste fiscal em cima do orçamento público que alimente os interesses rentistas que se beneficiam dos juros reais mais altos do planeta, retire impostos de empresas, e retroceda sem impor um sistema de tributação progressivo, a vontade anunciada pelo governo de redução da desigualdade social seria irrealizável. Cada vez fica mais provado que o arcabouço fiscal da forma que foi feito era e continua sendo um erro.

Somente políticas públicas que toquem no tema de distribuição de riqueza e que se baseiam na inversão da lógica do sistema tributário brasileiro podem erradicar a miséria.

A alternativa que as forças populares e o Presidente Lula tem é 1) assumir seu suicídio e adotar como sua uma política imposta pelo mercado. 2) Permanecer no governo, mas renunciando ao ato de governar. 3) Caso queiram combater a fome e a desigualdade social, não resta outra coisa a não ser mobilizar, organizar e lutar contra os nossos adversários.

No Estado mínimo não cabe o pobre

O Presidente Lula afirmou diversas vezes que luta para pôr pobre no orçamento, e fazer o desenvolvimento social combatendo a desigualdade. Porém isso só é possível com a recuperação dos serviços públicos e investimento em infra-estrutura.

Para isso, o governo precisa de recursos financeiros. É nesse momento que a mídia brasileira esperneia e vocifera contra o “populismo financeiro” e o “intervencionismo”. Recentemente o jornal Folha de São Paulo estampou em sua capa o valor que seria destinado ao aumento do bolsa família, em tom de denúncias e críticas ao governo. O presidente da Câmara, Arthur Lira -PP/AL, deu entrevista onde disse que o acréscimo de carne na cesta básica, como defendido por Lula, iria custar “caro demais”.

Está em curso no país uma verdadeira batalha pelo orçamento. Se deve ir para amortecimento de juros da dívida pública e emendas parlamentares, ou para investimentos sociais. Se vai para bolsos dps ricos empresários, ou se para a mesa do povo brasileiro.

Não bastando a mídia, o centrão, e a direita, as forças populares ainda enfrentam desafios e disputas dentro de seu próprio campo. Um exemplo disso, é a política econômica do ministro da Fazenda Fernando Haddad – PT/SP. Fiel ao dogma das políticas neoliberais, Haddad propôs o um arcabouço fiscal, um limitador dos gastos públicos do governo, que amarra e limita as possibilidades de utilização do recurso financeiro pelo Estado brasileiro.

Haddad, e parte significativa da equipe econômica do governo, além desse erro, acredita que rezando na cartilha neoliberal, e seguindo as diretrizes do capital financeiro vão atrair investimentos privados gerando o desenvolvimento econômico e segurando o crescimento do PIB.

Esse desejo, do setor privado ser o caminho para o crescimento econômico, não se tem registro de sua realização em espaço tempo nenhum da história. Pelo contrário, o que a humanidade tem visto é que o motor do desenvolvimento socioeconômico é justamente o investimento estatal. Cabe ao Estado criar demandas que possam inclusive incentivar o capital privado a gerar novos negócios.

A lógica de “não gastar mais do que se arrecada”, faz sentido para uma pessoa que cuida de casa, mas não é compatível com o pensamento de um Estado soberano.

O Estado gastador, que tanto tem medo e denunciam os neoliberais e os porta vozes do capital financeiro alocados nos jornais brasileiros, é o Estado que tem capacidade de garantir direitos para a população negra, periférica, para os ianomâmis, para o sertanejo, e que coloca no orçamento da União pessoas e grupos sociais que durante séculos estiveram do lado de fora. Querem o Estado mínimo para que somente eles possam caber lá dentro.

Reverter a orientação neoliberal do tripé macroeconômico que aplica o governo é o primeiro caminho para o governo se fortalecer diante dos ataques de seus adversários. O governo, espremido e apequenado pela agenda do mercado, precisa de respostas visíveis e rápidas. Por mais que o PIB siga crescendo, o desemprego diminuindo, esses avanços econômicos não estão sendo sentidos pelo povo. Caso mantenha a reza da forma que cartilha da Faria Lima orienta, e com meta de atingir o superávit fiscal, o governo Lula vai seguir se enfraquecendo.

A luta é para demonstrar que Estado brasileiro precisa ser protagonista no atual quadro histórico que vivemos, e assumir seu papel como defensor e promotor da justiça social e crescimento econômico. Sem tal ato, a própria recomposição do tecido institucional surgido pós 1988 se torna impraticável.

Dito isso, a realização de mudanças estruturais em nossa economia devem ser parte da estratégia de nosso campo político. Além disso, devemos ter como meta a geração de empregos qualificados, superando os limites da terceirização e uberização; o investimento em ciência e tecnologia; obras de infraestrutura; recriação do parque industrial; a transição energética.

A isso se soma a luta constante para a criação de uma nova maioria social, que se reverbere em maioria política. De tal modo que apenas as ações econômicas não bastam, é preciso disputa ideológica e um trabalho político diário daqueles que querem a construção de um bloco hegemônico. Porém, sem resultados econômicos visíveis, palpáveis e que modifiquem rápido o cotidiano, essa tarefa se torna ainda mais difícil

Só há dois caminhos: mobilização popular e o povo no orçamento

O governo tem, até agora, apostado em servir a dois senhores. Acredita que conseguirá ao mesmo tempo alimentar o Deus mercado e garantir o desenvolvimento social.

Desde a vitória de Lula, nós temos dito o contrário, o governo precisa governar e aplicar o programa eleito nas urnas. Precisa romper o ciclo vicioso de ceder às chantagens da burguesia e de seus representantes no Congresso, em nome de uma governabilidade. Acordos táticos são uma coisa, abrir mão dos anéis e também dos dedos é outra.

A discussão sobre a política econômica não é simples. Existe uma determinada correlação de forças desfavorável na sociedade e no Congresso que obriga o governo a adotar algum tipo de regra de controle fiscal. A isso se somar visões neoliberais dentro do próprio governo. Combater isso não é fácil. Do outro lado, existe a necessidade de cumprir as promessas de campanha e isso significa investir, gastar, utilizar recursos públicos. Sem isso, não terá iniciativas e não terá apoio popular. Caso assim fique, o governo se torna refém do congresso e a governabilidade é comprometida.

O governo não se pode dar o luxo de perder popularidade. A oposição fascista segue à espreita, o congresso é de maioria conservadora e a sociedade está polarizada ideologicamente. E a coalizão eleitoral é muito mais frágil e menos fiel que a dos dois primeiros mandatos de Lula.

Construir uma outra forma de governar não se faz de um dia para o outro. Mas é preciso traçar a estratégia para isso, baseada na mobilização social para defender o governo dos ataques da extrema-direita.

O primeiro passo é juntos dos movimentos sociais e forças populares construir uma mobilização de denúncia a chantagem do Banco Central e uma campanha que busca entregar aquilo que foi prometido: colocar o pobre no orçamento. Esse deve ser o objetivo. Essa é a verdadeira responsabilidade com a qual o governo deve se comprometer. O foco deve ser agradar o pobre, e não o mercado. Acreditamos que essa ação vai ser a principal defesa do governo contra o que já se anunciar que virá.