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A arte de Chico Buarque foi esperança em tempos de terror

Junho, 2024: 80 anos de Chico Buarque de Hollanda

Divulgação

Romero Venâncio

Romero Venâncio é Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco e professor da Universidade Federal de Sergipe (Departamento de Filosofia e Núcleo de Ciências da Religião). Atua em pesquisas sobre: Marx, Sartre, F. Fanon, Enrique Dussel e o pensamento Decolonial Latino Americano.

Sua arte marcou um processo de modernização turbulenta desse Brasil (quase sempre em transe) em momentos distintos, difíceis, alegres, esperançosos e engolfados pelo egoísmo insano de suas classes dominantes. Chico Buarque cantou e “literatizou” esses momentos por meio da música, do teatro, do romance, dos contos…

Algumas crônicas, charges e pontas no cinema foram consideradas produções menores, o que seria uma trajetória linear de um artista de classe média se o Brasil não tivesse suas peripécias internacionais.

Historiadores e jornalistas costumam chamar a atenção para os “anos de esperança” que foram os anos 50 do século XX entre nós.

Era a febre do novo: bossa, cinema, arte, juventude, Brasília. Até a Igreja Católica parecia querer se renovar. Mas, nunca esqueçamos que este país abriga porões velhos que sempre aparecem em momentos inoportunos. E não deu outra.

Em 1946, um Brasil nefasto saiu das sombras e das casernas. Trocou-se João Goulart por generais. Trocaram-se as Ligas camponesas nas ruas por marcha de senhoras ricas com o deus delas. Trocou-se Paulo Freire pelo coronel Jarbas Passarinho. Trocou-se Celso Furtado por Delfim Neto. Trocaram-se tantas coisas simbólica.

Muita gente foi presa, exilada e torturada. Mataram muita gente, não sem alguma resistência. Os militares de plantão e seus empresários de sempre a tiracolo não tiveram paz de cemitério todo o tempo. Guerrilhas, teatros, jornais alternativos, canções, poemas, desbunde. Modernizaram-se “pelo alto”, massacraram o povo pobre com inflação e falso milagre, destruíram canais de democracia, injetaram anticomunismo nas forças armadas, controlaram a televisão e fizeram a festa dos ricos com o dinheiro público.

Dentre os canais de comunicação histórica que podemos saber de tudo isso com inteligência, humor, ironia e crítica devastadora está a arte de Chico Buarque de Hollanda. E nisso, ela ficará eterno numa memória que passará de geração em geração. Sem grandes ilusões, porque a memória brasileira é mais um problema do que realidade. Somos de um país que teima em não preservar sua melhor memória. Nem os governos ditos de esquerda escapam desta sina. Mas o fato é que não ficamos “à toa na vida vendo a banda passar”. A música de Chico Buarque, o seu teatro e seus escritos foram testemunhas desses tempos que ele chama em seu mais recente livro de “Anos de chumbo”.

Sabemos que não foi apenas testemunho e registro destes tempos nefastos. Foi mais, foi esperança. Sem cair na pieguice relambida, Chico Buarque escolhe bem em quem depositar suas esperanças e a partir de qual lugar social. Isto é muito na arte brasileira, que quando acerta numa, erra noutra. Chico Buarque foi “forma” e “conteúdo” na medida do momento.

“Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar…”

Foi jogando com metáforas, mitos antigos, trovando o real, ironizando com o coro dos contentes e tomando posição pelos de baixo que Chico Buarque mostrava-nos outro país que não o dos militares e seus apoiadores de plantão.

De “Roda viva” a “Calabar e chegando a “Gota d`água” vemos em seu teatro como transformou o drama do palco no drama da vida. Toda sua discografia da década de 70 refletia algum momento do país, tomando os de baixo como referência e não os do andar de cima. Transitam em sua obra, os operários, pivetes, guris, travestis, mulheres, malandros, gente humilde.

Quando os de cima apareciam era como o “bispo de óleos vermelhos” (nem imaginem o que habita nesta fina ironia!). Chico apostou nesse povo. Apostou no lugar de seu povo. Esse era o Brasil digno, mas com tantas contradições. Ele sabia e sabe que país algum é feito de santos nem no andar de cima e nem no andar de baixo. Mas, a dignidade estará sempre com as reais vítimas, com os marginalizados, com os oprimidos.

Vieram tempos operários no final dos anos 70 e Chico Buarque estava lá, agora não só. Com sua turma.

“Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais…”

Hoje, Chico Buarque chega aos 80 anos e os tempos são outros – tempos de neoliberalismo. O Brasil cresceu e tudo cresceu junto, principalmente, a violência sobre os mais pobres. Se pensam que Chico Buarque não pressentiu isso, estão enganados. Leiamos uma obra-prima chamada “Estorvo” (1991). Do título à narrativa está muita coisa lá do que aconteceria terrivelmente. Chegaríamos cruelmente neste país da delicadeza perdida, nesta máquina infernal que mais parece uma luz sem misericórdia.

Apesar de tudo, viva Chico Buarque de Hollanda.