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Na luta contra o fascismo, basta ser “antissistema”?

Henrique Canary

Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.

O resultado das eleições europeias impactou a todos. A extrema-direita avançou significativamente em seu projeto de poder e aguarda ainda o resultado de processos bastante promissores (desde seu ponto de vista), como as eleições francesas e norte-americanas, onde Le Pen e Trump podem conquistar maioria eleitoral. No Brasil, a resiliência e a força do fascismo também impressionam. A despeito da condenação de Bolsonaro, o bolsonarismo segue cheio de iniciativas políticas numa ofensiva que não dá qualquer trégua para o governo. Nenhum escândalo ou erro de cálculo abala seus sólidos (cerca de) 35% da sociedade.

Discutindo essa realidade, muitos ativistas e lutadores sociais têm levantado um interessante argumento. Tem sido dito que a direita cresceu porque “ocupou o espaço antissistema que deveria ser da esquerda”. Com variações, esse é o argumento principal daqueles que consideram que, na luta contra a direita, trata-se de fazer uma disputa por esse espaço. Talvez se fôssemos mais radicais? Se mostrássemos de maneira mais clara que estamos “contra tudo e contra todos”? Se convencêssemos as pessoas de que a verdadeira força antissistema é a esquerda? Ora, se o radicalismo ganhou força na sociedade, sejamos ainda mais radicais! Argumentos desse tipo têm sido verbalizados com cada vez mais frequência em debates e fóruns.

Será que esse argumento faz sentido? Acreditamos que não. Partimos da hipótese de que a luta contra a extrema-direita não passa pela disputa de qualquer espaço supostamente “antissistema”. Aliás, se enveredarmos por esse caminho, oportunidades importantes podem ser perdidas e as coisas podem piorar. Vejamos.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a esquerda anticapitalista é, de fato, “antissistema”. Estrategicamente, lutamos pela reviravolta radical de toda a ordem social e política vigente, rumo à construção de uma sociedade socialista, ou seja, de outro sistema social, baseado em outros princípios econômicos, políticos e culturais. Não se deve jamais esquecer essa nossa natureza. O abandono de uma estratégia de transformação radical tem sido a razão da adaptação reformista e da decadência de uma série de organizações que se dissolveram em meio a movimentos amorfos, de caráter amplo e moderado. Sim, somos “antissistema” e isso importa. Sempre importou e sempre importará.

Em segundo lugar, é compreensível a ansiedade que toma conta de uma ampla camada de ativistas. Vivemos sob um governo que ajudamos a eleger a duras penas e com um determinado programa. Mas passa o tempo, esse governo recebe golpes de todos os lados e mesmo assim não se decide ao embate, não luta coerentemente pelas bandeiras que o elegeram, preferindo a conciliação permanente com os setores mais atrasados. Isso tem afetado negativamente a esquerda, que perde em entusiasmo e motivação e, portanto, em força política. Face a isso, é compreensível que a resposta de um setor seja a radicalização, a exemplo do que faz a extrema-direita.

Mas vejamos mais de perto esse problema. É certo que a direita “ocupou um espaço antissistema”? Consideramos que não. Tentaremos agora demonstrar.

A base do bolsonarismo é “antissistema”?

Vejamos a base social da extrema-direita: Será que a base evangélica aderiu ao bolsonarismo porque buscava uma força “antissistema”? É isso que esse setor sempre almejou e agora encontrou em Bolsonaro? E a base ligada ao agronegócio do centro-oeste? É “antissistema”? E a pequena burguesia, a classe média e a cúpula do funcionalismo público? São “antissistema”? E a alta burguesia? É “antissistema”? E as polícias? Desejam derrubar “tudo que está aí” e construir uma nova ordem social?

Ora, de qualquer ponto de vista, fica evidente que o suposto caráter “antissistema” da extrema-direita não é o que atrai esses grupos. Ao contrário, todos esses setores sociais buscam o que há de mais atrasado, mais conservador, mais retrógrado, antimoderno e obscuro no espectro político. A tragédia reside exatamente no fato de que esses setores foram convencidos de que o único “sistema” que é preciso derrubar é o sistema de garantias sociais, de defesa da natureza, de legalidade, de racionalidade, de direitos humanos, de defesa da ciência e da cultura. Como se diz por aí, “não tem mais bobo no futebol”, ninguém está ali enganado. A base da extrema-direita entendeu perfeitamente a estratégia de sua liderança e aderiu conscientemente a ela. Desgraçadamente, em meio a essa base se encontra uma parte significativa da própria classe trabalhadora e do povo pobre, mas não seus setores mais tradicionais, organizados e conscientes. Não é, portanto, sendo “mais realista que o rei” que vamos disputar a base social da extrema-direita.

Por que a direita cresceu tanto?

A extrema-direita se tornou uma força decisiva na sociedade não porque seja “antissistema”, mas porque soube se apresentar à nação como um bloco político determinado, coeso, organizado e motivado. É isso que a fez “diferente” das outras forças e conquistou a simpatia dos setores mais conservadores e reacionários da população

A extrema-direita se tornou uma força decisiva na sociedade não porque seja “antissistema”, mas porque soube se apresentar à nação como um bloco político determinado, coeso, organizado e motivado. É isso que a fez “diferente” das outras forças e conquistou a simpatia dos setores mais conservadores e reacionários da população (e não de sua parcela “antissistema”). Quando, em março de 2016, a direita juntou centenas de milhares na Avenida Paulista para pedir o golpe contra Dilma, uma parte significativa da população (inclusive uma parte da classe trabalhadora) ficou impactada por seu poder de mobilização e passou a segui-la com atenção. A partir daí foi só cultivar o conquistado e avançar por mais: luta ideológica e política, eleição de parlamentares e prefeitos, atuação massiva nas redes sociais, propaganda, iniciativa, espírito combativo. Daí à conquista da presidência da república foi só um desenvolvimento natural.

A direita cresceu não porque defende uma política “antissistema”, mas porque opera com o senso comum, o ódio, os medos, as frustrações e os preconceitos mais brutais que existem em nossa sociedade. Assim, uma competição “para ver quem é mais antissistema” só pode significar para a esquerda um tiro no pé e uma confusão entre esquerda e direita. Não venceremos nunca essa luta nessas condições porque pedir para “fuzilar a petezada” vai soar sempre mais radical do que a defesa do SUS, da ciência ou da cultura.

O exemplo da luta contra o PL do estuprador

Trata-se de uma batalha que ainda está em curso, mas que temos chance de vencer. O que aconteceu na luta contra o PL do estuprador? Certamente não fomos “antissistema”. Lutamos pela preservação de uma garantia civilizacional presente na lei burguesa, um importante direito humano, nada mais do que isso. Não levantamos a (justa e “antissistêmica”) bandeira de “legalização completa do aborto já!”, pois isso estaria contra o senso comum e a disposição de luta das pessoas. Ao invés disso, fomos mais inteligentes: colocamos na extrema-direita a pecha de apoiadores de estupro e dissemos “criança não é mãe!”, apelando ao simples senso comum progressista de defesa da infância. Seria possível imaginar uma luta mais “defensiva”, mínima? Uma luta menos “antissistema”? Pois era pela mera preservação da atual legislação! E no entanto, constituímos uma importante maioria social, uma massa crítica que permite agora o arquivamento do PL (nada está garantido!). Além disso, nos apresentamos de maneira unificada, coesa, em uníssono, e somente por isso fomos ouvidos pela massa da população.

Algo parecido aconteceu na PEC da privatização das praias: uma luta defensiva, mínima, apoiada no senso comum e no mero direito de ir a praia. Uma luta por preservar uma legislação de 1833! Nada menos “antissistema” do que o desejo de sol e praia no domingo! Resultado: direita na defensiva.

Qual é então o caminho?

A ideia de que devemos ser “antissistema” não é errada em si e para todo o sempre. Pode ser que, em algum momento da luta de classes, essa necessidade se apresente e isso seja decisivo para conquistar corações e mentes. Mas hoje esse raciocínio ignora um elemento decisivo na avaliação da conjuntura: a correlação de forças. A luta “antissistema” é, por natureza, uma luta ofensiva. Mas hoje há uma defensiva da classe trabalhadora e seus melhores representantes. Enfatizar o caráter “antissistema” de nossa luta só vai nos levar a descolar da consciência média da classe e de sua verdadeira disposição de luta. É a direita quem está numa ofensiva. O primeiro passo para mudar esse fato é reconhecê-lo! O fascismo juntou dezenas de milhares de bandidos no 08 de janeiro e tentou dar um golpe. Esse é seu grau de motivação. Temos força para fazer o mesmo? O que os atos de 1º de Maio dizem sobre nossa capacidade de mobilização para ações “antissistema”? Afinal de contas, quem muito fala precisa ser capaz também de fazer…

Antes de ser “antissistema”, a esquerda precisa voltar à cena política e social do país. Como se faz isso? Há algumas condições.

A primeira é a unidade. A esquerda precisa se reapresentar à sociedade como uma força política decisiva. Unidade nas lutas sociais, nos sindicatos, no movimento estudantil, nas eleições. É lamentável que tenhamos eleições municipais em breve e que o PT priorize, em muitas cidades, a unidade com partidos do centrão e até com bolsonaristas arrependidos. É preciso fazer como na França, onde a ameaça de Le Pen fez surgir uma nova unidade de esquerda que se apresentará à nação como uma força única, resoluta, com um programa de mudanças sociais progressistas. Em outra escala (menos importante, mas também digna de nota), é também lamentável que as pequenas organizações da esquerda radical (aglutinadas ou não no PSOL) busquem todo tipo de justificativa para a ruptura da unidade, denunciando “futuras traições” e centrando toda a artilharia no combate contra o governo e os “governistas”.

A segunda condição é a aplicação do programa vencedor nas eleições de 2022. Temos uma grande vantagem em potencial na luta contra a extrema-direita: o programa deles foi derrotado nas urnas e ninguém pode se queixar de que as diferenças não estavam claras. Todo mundo entendeu tudo direitinho e votou por um programa de mudança social, de recuperação de direitos, de ampliação de conquistas e de defesa da civilização contra a barbárie. O problema é: que fim levou esse programa? Por que o governo não o aplica? Não luta por ele? De onde tiraram que o país precisava de um novo ajuste fiscal? Por que o centrão está no governo mesmo sem entregar nada no congresso nacional e agindo na prática como oposição? Por que não fazemos como na Colômbia, onde o governo está entregando o que prometeu e recentemente fez uma importante reforma da previdência que amplia direitos?

A terceira condição é a luta política e ideológica. Não se trata apenas de que a comunicação do governo é ruim (embora seja). Se trata de entrar na briga, romper falsos consensos, fazer propaganda e agitação em larguíssima escala e não apenas promoção institucional ao estilo propaganda de margarina. O governo precisa dizer o que pensa, o que defende, explicar sua estratégia. Isso se faz na TV, na internet, mas também com a força da militância, inspirada e convocada por seus líderes e organizações.

A ideia de que os governos não fazem política nos foi imposta pela grande burguesia que segue sonhando com “um governo técnico”, enquanto o enorme potencial mobilizador de Lula e do PT seguem desperdiçados.

A terceira condição é a mobilização popular e uma governabilidade “a quente”. Novamente, o exemplo da Colômbia pode nos ser útil. Gustavo Petro governa não em base a uma maioria parlamentar instável e vira-casaca, mas apoiado na mobilização popular. Sua base social está sendo permanentemente convocada e agitada. É isso que lhe garante legitimidade. A ideia de que os governos não fazem política (logo vem um comentarista da Globo News denunciar o “tom de comício”) nos foi imposta pela grande burguesia que segue sonhando com “um governo técnico”, enquanto o enorme potencial mobilizador de Lula e do PT seguem desperdiçados.

Assim, muito mais do que sermos “antissistema” nesta conjuntura reacionária que quer fazer voltar a Idade Média, precisamos ser políticos, atuar juntos, agir inteligentemente aproveitando oportunidades. Nossa luta é a Frente Única pela defesa da civilização, dos direitos sociais e humanos e para que o programa da classe trabalhadora e suas organizações voltem a ser uma referência para toda a sociedade – em uma palavra, a luta pela hegemonia. Não há atalhos. Aventuras “antissistêmicas” só podem nos isolar das massas e nos afastar desse curso.