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MUNDO

Quem semeia políticas de extrema-direita… Colhe a extrema direita

Por Miguel Urban Crespo, militante de Anticapitalistas, do Estado Espanhol

As eleições europeias terminaram neste domingo, com a eleição dos deputados que vão compor a décima legislatura. Nunca é demais lembrar que estas eleições são usadas como a maquiagem perfeita para renovar o quadro de governança da UE (Parlamento e Comissão Europeia). Tentando, com a convocação de eleições, evitar a imagem de um aparato burocrático estruturado hierarquicamente com pouco controle democrático que responde a um equilíbrio de poderes estatais baseado na hegemonia do eixo Berlim-Paris. Este processo será concluído, meses depois, com a ratificação no Parlamento da Presidência da Comissão Europeia e do conselho de comissários, previamente negociado pelos Estados-membros.

Talvez a manchete mais proeminente deste apelo eleitoral seja o crescimento da extrema-direita que consolida uma guinada à direita da UE que já se arrasta há algum tempo. A atual dispersão da extrema-direita, em três grupos no Parlamento Europeu, esconde a imagem do seu resultado eleitoral, mas não se pode ignorar que ela foi a segunda força mais votada na Europa, com pouco mais de 20% dos votos, à frente dos sociais-democratas. Desta forma, a extrema-direita conseguiu ser a primeira força em: Itália, França, Hungria, Bélgica, Áustria e Polónia, e segunda força na Alemanha e Holanda, enquanto o Partido Socialista Europeu só conseguiu vencer na Suécia, Roménia, Malta e empatar em Portugal com a direita.

O partido de Le Pen, o Reunião Nacional (RN), conseguiu não só voltar a vencer na França pela terceira vez consecutiva numa eleição europeia, duplicando os votos do partido do governo, como também ser o partido com mais deputados no Parlamento Europeu, um bom exemplo da força da extrema-direita europeia. Um resultado que gerou um verdadeiro terremoto na França, onde Macron foi forçado a convocar eleições legislativas de emergência.

De fato, a extrema-direita não parou de crescer na Europa desde o início do século, período que mal conseguia que os deputados formassem um grupo no Parlamento Europeu até ser a segunda força mais votada nestas eleições. Em uma década, dobraram seu apoio e estão emergindo como uma força que pode determinar maiorias parlamentares na próxima legislatura. A burocracia eurocrática em Bruxelas está a considerar esta possibilidade muito seriamente e, para isso, iniciou toda uma campanha para diferenciar entre uma boa extrema-direita e uma má extrema-direita; isto é, entre aquela extrema-direita que assume inequivocamente a política econômica neoliberal, a remilitarização e a subordinação geoestratégica às elites europeias e à NATO, e aquela outra que ainda as questiona, embora cada vez mais timidamente.

Na própria campanha eleitoral, a candidata do PPE à reeleição da presidência do Colégio de Comissários, Ursula von der Leyen, abriu a porta a um pacto com uma parte da extrema-direita representada por Meloni, a “boa extrema-direita”. A este respeito, o presidente do Partido Popular Europeu (PPE), o alemão Manfred Weber, já se mostrou favorável a acordos com a extrema-direita após um encontro com a Presidente italiana, Georgia Meloni, no ano passado. Aproximações que contribuem para normalizar a extrema-direita como parceiro aceitável, legitimando não só o seu espaço político, mas também as suas políticas e discursos de ódio que ganham cada vez mais audiência entre o eleitorado europeu. Este é um bom exemplo do protagonismo que se prevê para a extrema-direita nesta legislatura que se inicia, em que será peça-chave na conquista das maiorias parlamentares.

Nesse sentido, parece que Le Pen não quer ficar de fora desta operação, está consciente de que tem de terminar de concluir o seu processo particular de desdemonização, não só para pintar algo no próximo Parlamento Europeu, mas sobretudo para ter mais chance nas eleições presidenciais francesas do próximo ano. Desta forma, a extrema-direita francesa bateu à porta de Meloni para tentar unir forças e tornar-se a segunda força política no Parlamento Europeu. Nas próximas três semanas, período em que os grupos políticos no Parlamento Europeu terão de ser formados, vamos decifrar o mistério de quem Meloni optou. Pelos cantos de sereia do grupo Popular ou por liderar um grande grupo de extrema-direita. O próprio Jorge Buxadé (Vox) lembrou Alberto Núñez Feijóo durante a campanha: “Não se empolgue porque Giorgia Meloni é uma de nós”. Parece que se prevêem semanas interessantes e complexas no quadro da direita e da extrema-direita para terminar de ver como os grupos políticos no Parlamento Europeu estão finalmente configurados.
Talvez outra das manchetes que estas eleições nos deixam seja a tendência de erosão do sistema bipartidário europeu, se já em 2019, pela primeira vez na história do Parlamento Europeu, o Partido Popular (PPE) e os Sociais-Democratas (S&D) não conseguiram a maioria absoluta. Nestas eleições, cinco anos depois, os socialistas deixaram de ser a segunda força mais votada, para serem relegados pela extrema-direita para um histórico terceiro lugar. Os números não se somam aos socialistas e ao Partido Popular e eles precisam cada vez mais expandir com novas forças a chamada grande coalizão que governou a Europa até agora.

Aliás, já na última legislatura, sobretudo os liberais do Renew Europe e em algumas ocasiões os Verdes, têm sido fundamentais na configuração de maiorias no parlamento e na aprovação das principais medidas desta legislatura (Green Deal, remilitarização europeia, Pacto de Migração e Asilo, etc.). Foram precisamente estes dois grupos, o Renew Europe e os Verdes, que sofreram o maior desgaste eleitoral nestas eleições, perdendo 20 e 18 lugares, respectivamente. Se em 2019 cresceram, em certa medida, como forças renovadoras e modernizadoras de uma governação bipartidária ultrapassada, não terem correspondido às expectativas levou-as a pagar um elevado custo eleitoral. Apesar disso, parecem ser duas forças fundamentais para conseguir garantir as maiorias da grande coligação.

Talvez o exemplo mais claro da erosão da fórmula política do Renew Europe seja encarnado por Emanuel Macron na França, onde o seu partido nem sequer atingiu os 15% dos votos. Macron representa uma espécie de figura política vazia, uma bandeira de uma saída do bloco de poder de sua própria crise de representação e da corrupção dos grandes partidos, que foi vendida como uma fórmula que condensou o centro extremo em um único partido. Um modelo de político do mundo da gestão empresarial e percebido, justamente, como gestor da difusa “sociedade civil”, mas garantidor da (des)ordem neoliberal. Em suma: uma espécie de outsider para manter o status quo.

Na verdade, Macron se junta a uma tendência global de emergência de líderes populistas neoliberais autoritários do mundo corporativo/financeiro que deixaram de confiar em políticos profissionais para liderar seus próprios interesses de elite da linha de frente da política. Estas eleições não só condenaram o declínio do macronismo como príncipe do europeísmo neoliberal que veio substituir a grande coligação, como abriram um cenário incerto para as eleições antecipadas das legislativas (junho) e para as eleições presidenciais francesas. Nesse sentido, aqueles que tentaram apresentar-se como os representantes do macronismo hispânico, o Ciudadanos, acabaram por morrer definitivamente nestas eleições, passando de oito eurodeputados para nenhum.

Parece que podemos ter um novo grupo no Parlamento Europeu em torno dos italianos do Cinco Estrelas e da Aliança Sahra Wagenknecht alemã – Pela Razão e pela Justiça. Um espaço político mal definido construído sobre os partidos que têm em comum a dificuldade de se encaixarem num dos outros grupos constituídos no parlamento, seja por divergências políticas ou por vetos de outras forças, como tem sido historicamente o caso do Cinco Estrelas. Um grupo semelhante ao que foi na legislatura 2014/2019 Europa da Liberdade e da Democracia Direta (EFDD). Embora ainda não se saiba se conseguirão aliados para cumprir a regra parlamentar de um mínimo de 25 deputados de pelo menos sete países diferentes da UE.

Mais de uma centena de deputados eleitos não têm um grupo claro no Parlamento Europeu, um bom exemplo do peso que o voto de protesto antipolítico teve nestas eleições, alheio aos grupos estabelecidos no Parlamento Europeu. Um bom exemplo deste fenómeno é Fidias Panayiotou, uma tiktoker cipriota de 24 anos, que foi a segunda força a conquistar dois lugares no Parlamento Europeu com mais de 20% dos votos, e Alvise Pérez, o candidato de Se Acaba La Fiesta, uma das surpresas do dia das eleições na Espanha, conquistou três eurodeputados com 800 mil votos.

Um voto de protesto mobilizado para “recuperar a democracia sequestrada” pela oligarquia política corrupta, tradicionalmente chamada pela ultradireita de “partidocracia”, com a consequente defesa de uma espécie de antipolítica. O sucesso eleitoral por trás dessa bandeira que aspira resgatar uma democracia sequestrada pelas elites não pode ser compreendido sem avaliar o déficit democrático das sociedades em que ela surge. Neste sentido, não é por acaso que se exprime especialmente nas eleições europeias; da transformação sistêmica de uma sociedade globalizada; e da deslegitimação da política e do político que nela ocorreu diante da desvalorização das ideologias. Dentro e fora do sistema, o exterior continua a recrutar cada vez mais peso político no Parlamento Europeu.

A esquerda pode continuar a ocupar o último lugar no Parlamento Europeu à espera da criação de um novo grupo, mas, ao contrário de 2019, consegue mitigar a sua queda e pode até crescer ligeiramente em número, quando a distribuição de novos deputados não inscritos em nenhum grupo for confirmada nas próximas semanas. Especialmente relevantes foram os resultados na Finlândia, a segunda força; Itália, onde a esquerda recupera representatividade; e o da França Insubmissa, que fornece o maior grupo de deputados para a esquerda.

Estas eleições mostraram mais uma vez a crescente perda de legitimidade por parte da UE entre os sectores sociais em toda a Europa, a abstenção está mais uma vez a ganhar em quase todos os países. É cada vez mais difícil associar a UE a esses supostos “valores europeus”, como a democracia, o progresso, o bem-estar ou os direitos humanos. Uma crise orgânica no sentido gramsciano pleno do termo, resultado e aprofundamento da crise do modelo pós-Maastricht de capitalismo europeu que tem sido uma verdadeira camisa de força neoliberal, com uma combinação letal de austeridade, livre comércio, dívida predatória e trabalho precário e mal remunerado, o DNA do capitalismo financeirizado de hoje.

Esta crise de legitimidade e institucionalidade não só significa que as decisões da UE tentam iludir a todo o custo os parlamentos nacionais, mas também garante que qualquer referendo ou consulta de cidadãos que diga direta ou indiretamente respeito a questões europeias seja encarado com desconfiança e pavor. Cada dia mais pessoas acordam do sonho europeu e vêem-se à deriva entre um europeísmo neoliberal e militarista defendido pelas elites da UE e um nacionalismo excludente em ascensão a nível estatal. Uma crise orgânica do projeto da UE que gera vácuos propícios a mutações, reajustes, recomposições e, sobretudo, a monstros como vimos nestas eleições.

Eleições que confirmam: o giro da Europa à direita, onde a extrema-direita já não aparece como eurocéptica, mas como euro-reformista, reservando um lugar na governança da UE; a falência das antigas maiorias da grande coalizão; o fim do macronismo e a sua tentativa de uma grande Europa central extrema; o surgimento de opções externas de protesto antissistema e antipolítico; e o crescimento da abstenção e do desencanto europeu com a máquina da UE. Tudo isto num contexto em que os tambores da guerra não param de ressoar nas chancelarias, aproximando-nos perigosamente do cenário de um novo confronto militar global, tendo como pano de fundo a emergência climática e o desmantelamento da governança multilateral e do direito internacional que governaram o mundo após a Segunda Guerra Mundial.

Um coquetel perigoso que augura novos conflitos, uma recomposição de atores, uma expansão do campo de batalha e, acima de tudo, uma aceleração de novas e velhas tendências. Embora uma lição se destaque acima das restantes nestas eleições europeias, quando se semeiam políticas de extrema-direita – o Pacto para as Migrações tem sido um dos muitos exemplos – colhe-se … a extrema direita.

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O artigo acima representa a opinião do autor e não necessariamente corresponde às opiniões do EOL. Somos um portal aberto às polêmicas e debates da esquerda socialista.