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BRASIL

Entre as águas sagradas dos Rios e o maior desastre ambiental gaúcho

Por Eduarda Morales, de Porto Alegre (RS)
Gilvan Rocha/Agência Brasil

Crescemos ouvindo histórias das marcas da maior enchente do Rio Grande do Sul em 1941. Gerações anteriores, pesquisadores, movimentos ambientalistas, educadores e povos ribeirinhos das ilhas do Delta sempre mantiveram viva as consequências trágicas daquele ano, no esforço de não esquecer as tragédias que impactaram vidas e ecossistemas. As paredes do Mercado Público também serviram como visita à memória das manchas da enchente, suas águas se mantiveram por quase 30 dias em alta. Revivemos histórias para que se destaque a importância da preparação e respostas eficazes para lidar com desastres climáticos mitigando seus efeitos. E mesmo com todo esse aparato, por que 83 anos depois estamos superando a marca dramática da cheia, que mais uma vez separa os filhos de sua terra?

O Rio Grande do Sul é banhado pelas sagradas águas do Guaíba, uma extensa bacia que recebe o escoamento de 4 grandes rios: Caí, Sinos, Gravataí e Jacuí. Juntos eles dão vida e nome ao estado. Seu manancial fornece recursos hídricos para o abastecimento público. Boa parte das cidades gaúchas dependem diretamente dele para seu fornecimento, assim como produção de itens básicos para nossa sobrevivência. São incontáveis os serviços ecossistêmicos que ele presta para conservação da biodiversidade, purificação da água e do ar, proteção contra inundações, preservação de espécies vegetais, animais e fungi. Além disso, o escoadouro desempenha um papel profundo na vida das comunidades ribeirinhas, que ocuparam o espaço devido ao processo de exclusão social da migração rural-urbano, onde foram confinadas pelo governo nos espaços das ilhas ao entorno da bacia, lugares estes que anos atrás se configuraram como lixões a céu aberto da cidade. Essas comunidades tiveram de se adaptar ao espaço pra poder viver e reproduzir as suas formas do viver.

A qualidade de vida está intrinsecamente ligada à disponibilidade de água, Ela sustenta a nossa vida, sobretudo nossos Rios que são organismos vivos.Não podemos cometer o erro de nos separar da natureza ou continuar a tratá-la como objeto de mercatório.

Toda essa importância sempre foi enfatizada pelo movimento ambientalista gaúcho, pesquisadores e cientistas das mudanças climáticas e recursos hídricos. O próprio relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) de 2023 já nos alertava que o Rio Grande do Sul sofrerá mais com os efeitos da crise climática, isso por que todos esses casos extremos na nossa região se observam por uma série de fatores inter relacionais.

O Rio Grande do Sul está inserido numa posição geográfica que sofre influência de forçantes tropicais e polares, criando um padrão que inclui períodos de chuvas intensas e outros de seca – essa interação ocorre no oceano e na atmosfera, essa diferença brusca de conjunto acontece pelo fator antrópico do aquecimento global.

Muitas ações têm contribuído para esse sofrimento, um dos principais que chamo alerta é a transformações dos biomas, em especial ao nosso Bioma Pampa, característico por sua paisagem de campo, não sendo florestal. Dos estados brasileiros ele se localiza somente aqui, fornecendo serviços de conservação e preservação únicos para a região. O pampa é caracterizado por seus campos de gramíneas que captam carbono na atmosfera, principal poluidor quando solto no ar e ligado O2.

Nosso bioma é o mais ameaçado pelo avanço das lavouras de monoculturas de grãos e cereais e florestas de eucalipto. Hoje menos da metade do bioma possui vegetação de cobertura original, fator que impacta diretamente em variáveis como umidade e temperatura, influenciando negativamente nas precipitações e temperatura, e diminuindo os espaços de escoamento das águas. Segundo o relatório de Avaliação Nacional (RAN 1) de 2013, do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), o aumento futuro das chuvas nas próximas décadas seria da ordem de 35% a 45% maior que o normal para o pampa.

Mesmo sabendo da sua importância, parte do poder público não apenas nega medidas de proteção, como aprova Projetos de Lei como o PL 364/2019, de autoria do deputado ruralista Alceu Moreira (MDB-RS) com relatoria de Lucas Redecker (PSDB-RS), que elimina a proteção ambiental da vegetação nativa nas chamadas “áreas não florestais” em todo o país.

No total, 48 milhões de hectares de território nacional perderiam sua proteção e seriam destinados à pecuária e à agricultura.

Outras medidas que escancaram o negacionismo ambiental do governo estadual é o sancionamento da lei que sacrifica áreas naturais inundáveis para a construção de barragens em Áreas de Preservação Ambiental (APP) a pedido de ruralistas, o desmonte de planos diretores a fim de favorecer a especulação imobiliária para construção de minas de carvão em zonas ribeirinhas e a mais grave, na qual o governador Eduardo Leite (PSDB) fez questão de aprovar logo no seu primeiro ano de mandato, a flexibilização do Código Ambiental do Estado em 2019, no qual 480 códigos foram alterados, retrocedendo uma luta de 40 anos. Essa flexibilização só favoreceu o agronegócio e grandes empresários.

É importante ressaltar que o texto original do Código contou com a ajuda de José Lutzenberger em sua elaboração, uma figura pioneira na conscientização ambiental no Brasil, tendo um impacto significativo nas políticas ambientais do país, contribuindo fortemente para a formulação de políticas ambientais progressistas, e que foi reconhecido internacionalmente por seu trabalho. Difícil nesse cenário de catástrofes climáticas extremas pensar que já fomos reconhecidos por ser um exemplo de políticas ambientais.

Uma tragédia climática sempre é uma tragédia política, portanto deve ser politizada

Todas essas graves consequências que sofremos hoje é fruto de um mal planejamento territorial somado ao negacionismo ambiental dos últimos governos. Vivemos em um modelo de território planejado pro agronegócio, que tem intenso interesse econômico, especulativo, ambicioso e predador e são esses modelos que estão comandando as políticas de uso e ocupação do solo. Esse modelo não conta com aporte científico ou ao menos participação social nas decisões, embora a ocupação do nosso solo tenha uma história extremamente diversa, de profunda resistência dos povos e diversidade cultural, ele não foi feita para o povo viver nele e a usufruí-lo com dignidade.

Há uma semana estamos vivendo sob o maior desastre ambiental gaúcho, o qual acabou dimensionando a vulnerabilidade e o desaparelhamento estatal do governo e prefeituras municipais para enfrentar eventos climáticos. Nosso estado necessita de uma política muito mais incisiva nas questões climáticas que qualquer outro lugar da federação. Em um curto intervalo de tempo, vivenciamos uma série de eventos climáticos extremos: em 2022 foi o ano em que 96 municípios decretaram situação de emergência devido à estiagem, em 2023 vivemos ao menos 3 eventos climáticos extremos – entre eles, a formação de um ciclone, intensas ondas de calor e inundações. Esses eventos deixaram 80 mortes e, mesmo com todo esse cenário de destruição continua, o governo estadual investiu o total de 0,2% dos recursos no combate à crise climática.

É momento de solidariedade e mobilização para dar suporte aos atingidos pelo contexto climático, toda essa rede está sendo fundamental, mas ela não pode continuar sendo nossa única alternativa. Precisamos que o poder público cumpra seu trabalho, pois caminhamos por um mundo desconhecido e sabemos que incidentes irão acontecer; a incidência desses fenômenos não deve ser justificada para o despreparo das autoridades perante os eventos climáticos externos – as autoridades DEVERIAM ter se preparado.

Não existe justiça climática com ideologia de estado mínimo – essa está sendo a ideologia que fez 107 pessoas perderem a vida, 1.482.006 pessoas serem afetadas e cidades como Eldorado e Muçum quase 100% desaparecerem do mapa que já não aparecem mais na nossa cartografia.

Parafraseando um dos maiores defensores da terra, Ailton Krenak: precisamos estar juntos para adiar o fim do mundo. O nosso principal compromisso é exigirmos a reconstrução do Código Estadual do Meio Ambiente, investimento em pesquisas de melhor compreensão das mudanças climáticas e mitigação dos seus efeitos para adaptação das cidades. Um plano de gestão ambiental integrado PERMANENTE para Bacia Hidrográfica do Guaiba, sistemas de alertas a enchentes para informar e proteger a população em caso de eventos extremos, implementação de corredores ecológicos para aumentar as áreas alagáveis, adoção de práticas de controle de erosão e conservação do solo, para reduzir o escoamento de sedimentos para os corpos d’água, uso de políticas de planejamento urbano que evitem o urbanização em áreas de risco de enchentes e promovam a construção de infraestrutura adequada em áreas vulneráveis.

Planos que daqui pra frente serão muito mais eficientes do que um “plano Marshall”, como Eduardo Leite afirmou. Tudo isso só será possível se nos aliarmos com quem entende que terra e gente não se separam. De forma alguma aqueles que negligenciam a vida em toda sua forma serão nossos aliados.