Vivemos em uma sociabilidade que se apresenta a nós, reiteradamente, de maneira invertida ou mistificada. Um dos exemplos é a construção ideológica sobre a greve do/no senso comum. É predominante a ideia de que a greve é um instrumento de luta egoísta, corporativista. Ora, é o oposto. A greve é um dos instrumentos de luta mais solidários que nós temos.
Tomemos, como exemplo concreto, o caso da greve de servidores(as) da educação federal em pleno desenvolvimento no nosso país. Num primeiro momento, se pode pensar que os(as) servidores(as) em greve não se preocupam com as implicações negativas de sua paralisação, que não consideram estudantes impactados pela greve ou que só pensam em si mesmos e em seus próprios bolsos.
Vejamos se isto se sustenta. Primeiramente, temos o caráter unitário – e solidário – da referida greve, que é uma unidade na luta de Técnicos(as) Administrativos(as) da Educação (TAEs) e docentes não só por recomposição salarial, mas por reestruturação das carreiras, de modo que possam ter melhores condições de trabalho – e de vida – resultando em melhores condições de ensino-aprendizagem, ou seja, de formação e de assistência à comunidade universitária e à toda a sociedade atendida pelas Instituições Federais de Ensino (IFEs).
Contudo, como os(as) servidores(as) e suas entidades representativas têm defendido reiteradamente, por mais que as pautas salariais e de carreira já sejam justas por si só, o conjunto de reivindicações vai muito além delas. Outra reivindicação da greve é a recomposição orçamentária para as IFEs, cujo orçamento discricionário vem diminuindo desde 2013. Para se ter uma ideia, de acordo com a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), o atual montante para o ano de 2024 é de cerca de R$5.8 bilhões, R$2 bilhões a menos que o de 2013. Ainda segundo a ANDIFES, há a necessidade de acréscimo de, no mínimo, R$ 2,5 bilhões no orçamento do Tesouro aprovado pelo Congresso Nacional para o funcionamento só das Universidades Federais em 2024.
Grosso modo, a greve de servidores(as) da educação federal é (também) por melhores condições de assistência e permanência estudantil. A luta de TAEs e docentes é para que a ampliação do acesso ao ensino superior no âmbito federal seja acompanhada pela devida ampliação das políticas e medidas de permanência. O que temos, no presente, é uma inclusão perversa, ou uma inclusão excludente, em que se ampliou – corretamente – o acesso às IFES, mas com os(as) estudantes tendo inúmeras dificuldades para se manterem nas IFES. Queremos que os(as) jovens da classe trabalhadora tenham condições dignas de estudo, de formação, com mais e melhores oportunidades de ensino, pesquisa, extensão e estágios. Queremos que os tetos não caiam sobre as cabeças de nosso alunado; que haja água para beberem; salas de aula, banheiros, alimentação, transporte coerentes com suas necessidades. Queremos, inclusive, que toda a classe trabalhadora possa acessar o ensino superior público. Em suma, queremos as IFES de qualidade, gratuitas e socialmente referenciadas – potencializando-as por meio da luta.
Além destas, cito também outras duas reivindicações do movimento paredista de servidores(as) da educação federal: respeito a aposentados(as) e o revogaço de inúmeras medidas autoritárias e de retrocessos dos últimos governo. Ou seja, trata-se de uma luta por melhores condições de vida para quem já tanto contribuiu para a nossa sociedade, mas que se encontra em situações – cada vez mais – precárias, como os(as) companheiros(as) aposentados(as). E, mais, trata-se de um instrumento de luta e de solidariedade que vai, inclusive, para além da educação superior, com algumas revogações dizendo da educação pública como um todo (como, por exemplo, a revogação do chamado Novo Ensino Médio) e das condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora no geral, como as contrarreformas que precarizam a vida da classe trabalhadora.
Não à toa, o movimento paredista cresce, avança, retirando o governo do imobilismo e já obtendo algumas conquistas – mesmo que insuficientes. Tal crescimento se dá, aliás, para além das categorias em greve, também avançando no movimento estudantil, em articulação a outros movimentos sociais, populares, e com a sociedade como um todo. Ora, se os problemas são coletivos, as respostas também são (ou deveriam ser).
Ainda no contexto da referida greve, mencionamos a live realizada no dia 08/05 pelos Comandos Nacionais de Greve das três entidades que compõem a greve (ANDES-SN, FASUBRA e SINASEFE), que são a greve, em solidariedade à população do Rio Grande do Sul, por conta da catástrofe socioambiental que a acomete. Na live, houve a participação de representantes de três movimentos sociais com destacada atuação na região: Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Por meio dela, a greve pode construir um momento ou espaço formativo, politizador sobre o acontecimento, seus impactos e as saídas que a própria comunidade tem desenvolvido. Além disso, foi possível aumentar a capilaridade da rede de solidariedade, com doações diretas aos referidos movimentos sociais.
Esse exemplo é marcante, não só pelo que foi dito anteriormente, mas pelo que seu sentido e o que sinaliza, quando analisado no marco da totalidade das reivindicações da greve. Ora, a greve como um todo é uma denúncia sobre a precarização e subutilização das IFEs, da sua capacidade em termos de produção de conhecimento, da ciência e da atuação prática. Como viralizou nas redes: no início muitos filmes sobre a destruição da natureza e humanidade, há um cientista sendo desconsiderado. A própria catástrofe socioambiental, que não se trata de fenômeno natural, muito menos acontecimento isolado, pontual, é resultado do desenvolvimento cada vez mais barbárico e destrutivo do modo de produção capitalista, cuja marcha expansiva se dá, inclusive, contra as IFEs, contra a ciência, contra o conhecimento e a razão humana – vide o avanço da barbárie irracionalista, negacionista. Portanto, a greve dos(as) servidores(as) da educação federal é também um protesto contra esse desenvolvimento destrutivo, um clamor para que as IFEs e tudo que elas fazem seja considerado, fortalecido, e um grito para que sejam, portanto, escutadas.
Nos Comandos Locais de Greve, saltam as iniciativas solidárias, com a população do Rio Grande do Sul, e com o conjunto da classe trabalhadora brasileira, em especial aqueles(as) em situações de maior precariedade, as quais demandam maior solidariedade. Frente a tudo isso, argumentar que a greve é um instrumento egoísta, corporativista é negar a sua própria natureza coletiva, formativa, pedagógica, que vai para além de si, dos grupos e indivíduos que a compõe. Por mais que existam greves ou iniciativas corporativas – e que são justas, afinal, se fazemos greve é porque somos trabalhadores(as) e vivemos da venda da nossa força de trabalho –, a greve é um dos instrumentos mais avançados que temos de solidariedade de classe. De fato, ela traz incertezas, resulta em uma quebra da normalidade, e isso incomoda. Ora, mas o problema não reside justamente nesta normalidade cada vez mais anormal – e inaceitável?
Egoísta é acumulação capitalista. Egoísta é um modo de produção no qual o lucro se põe acima das vidas. Egoísta é quem pretende precarizar e desmontar a educação pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada. Greve egoísta é um oxímoro, uma contradição entre os termos, em que o adjetivo nega o substantivo. A greve seria egoísta se fosse feita por quem não a faz: a classe dominante, os patrões. E isto tem nome: locaute, que é prática ilegal, justamente por ser antissindical, antitrabalhador(a).
Ao contrário do que se pode pensar, nós, servidores(as) da educação federal, estamos em greve justamente por nos preocuparmos com as implicações negativas de um desenvolvimento cada vez mais barbárico. Estamos em greve por nos preocuparmos conosco, mas não somente. Nos preocupamos e solidarizamos com os(as) companheiros(as) aposentados – muitos(as) deles(as) estando na luta, inclusive –, com estudantes impactados(as) pelas condições insuficientes de ensino e de vida. Estamos em greve, pois pensamos além de nós.
Em texto anterior no qual argumento como a greve é um freio à marcha histórica fascistizante do modo de produção capitalista, que mostra seus dentes de maneira pronunciada no seu atual estágio de desenvolvimento: “A greve é uma paralisação momentânea, excepcional e necessária contra a paralisia. É uma paralisação coletiva contra o individualismo que tanto nos divide e enfraquece”. A greve é, também, um convite, um diálogo: vamos juntos(as), afinal, tudo o que nós temos somos nós.
A greve se põe como um instrumento necessário e solidário de luta contra uma dinâmica social que cada vez mais nos tolhe, se fortalecendo no/pelo enfraquecimento dos laços sociais, ao mesmo tempo que tende a produzir ainda mais paralisia, fatalismo, resignação. A greve como um grito, ainda pequeno e aquém do que necessitamos enquanto classe trabalhadora, da nossa própria condição de seres sociais, e uma constatação ou um lembrete de que o que nos resta para garantir a nossa sobrevivência e transformarmos nossa realidade é, justamente, o que sempre tivemos: a luta coletiva; a organização política. E a substância, o conteúdo dessa luta – sendo, também, o seu horizonte – é a solidariedade. Não uma solidariedade retórica, vazia, mas a solidariedade ativa, de classe.
Pedro Henrique Antunes da Costa é Professor da UnB e Resistência/PSOL do Distrito Federal.
Comentários