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OPRESSÕES

Médico é acusado de violência sexual contra paciente na Santa Casa de São Paulo

Ramiro Carvalho está suspenso após denúncia e acumula acusações desde quando era estudante de Medicina, na Unicamp

Anônimo

O médico Ramiro Carvalho Neto, residente em Ortopedia e Traumatologia pela Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, está sendo acusado de violentar sexualmente uma paciente sedada, durante cirurgia realizada na mesma instituição em abril de 2024. O crime foi testemunhado por outros membros da equipe após a denúncia. Há relatórios de perseguição pelo agressor e membros da própria  instituição.

Ao que tudo indica, Ramiro Carvalho acumula outras denúncias de violência sexual. Ainda acadêmico, na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP), foi acusado de violência sexual contra uma estudante de medicina dessa própria instituição em 2013, durante um evento esportivo organizado por estudantes de faculdades de medicina. O crime teria ocorrido no contexto de inúmeros outros que ocorriam sistematicamente nas competições de medicina no estado de São Paulo. Relatos de racismo, homofobia e agressões físicas e verbais eram comuns naquele momento. À época, o crime foi denunciado à Faculdade, que, após sindicância interna, optou-se pela suspensão temporária do agressor. Depois de três meses de afastamento, o agressor retornou às suas atividades acadêmicas e se formou médico, normalmente. Naquela ocasião, houve mobilização de estudantes para que medidas mais efetivas fossem tomadas pela FCM- UNICAMP.  Entretanto, os mesmos foram coagidos por membros da instituição para não se manifestar sobre o caso nos órgãos colegiados, já que uma denúncia dessas depreciaria a imagem da Faculdade.  A própria vítima também não se sentiu confortável em realizar a denúncia. Não bastasse todo o sofrimento resultante da agressão, havia pressão de muitos colegas para que ela não prejudicasse o agressor.

Como ocorreu em 2022, quando o anestesiologista Giovanni Quintella estuprou  uma paciente durante uma cesárea, desde as primeiras acusações contra Ramiro, observamos um cenário que se repete: a falta de acolhimento adequado e o medo das vítimas para a realização das denúncias formais na justiça devido à pressão social e à impunidade histórica dos abusadores, a omissão das instituições e o escárnio por parte da categoria médica, representada, neste caso, pelos colegas de Ramiro.

Por muitos anos, as relações entre estudantes universitários, especialmente no âmbito das atléticas e outros espaços de trote, favoreceram a cultura do abuso e da violência. Eram notórias as situações de violação de direitos humanos, especialmente no curso de Medicina, em diversas instituições públicas e privadas de São Paulo. Inúmeras denúncias já vieram a público na imprensa e, em 2014, uma CPI foi aberta na Assembleia Legislativa do Estados de São Paulo para apurar estas situações, quando estudantes das principais instituições do estado (USP, UNESP e UNICAMP) foram ouvidos.

Em 2011, Ramiro, recém-ingresso no curso de Medicina da UNICAMP, foi apelidado de Thor e, segundo seus veteranos, iria “ficar muito forte e pegar muita mulher”. Coincidentemente, Thor passou a ficar conhecido por assediar outras estudantes do curso. Para alguns e, aparentemente, para ele próprio, a fama era naturalizada e motivo de piada, ao citá-lo como “Estuprathor”.

Além disso, Ramiro fazia parte de uma fraternidade de estudantes homens da Faculdade de Medicina da UNICAMP. Conhecidos como “Kilts”, por muitos anos estes estudantes foram associados a situações de trote, assédio e homofobia. Sem nunca ter havido uma investigação sobre estes eventos, esta fraternidade segue existindo nos dias atuais.

Durante a graduação, o histórico de violências sexuais cometidas por Ramiro era razão de piada entre colegas, naturalizando os apelidos “Thor Estuprador” e “Estuprathor”.

O que é praticado nos trotes não se limita ao período de ingresso do estudante na Universidade. Situações vividas neste período podem determinar privilégios ao longo da vida acadêmica e profissional, mas principalmente contribui para a formação de um profissional médico desconectado de sua realidade. Assim como o veterano trata o calouro como bicho – alguém sem individualidade e identidade – o médico não se reconhece em seu paciente. Nesse sentido, perpetua relações médico-paciente sem respeito e permeada pelo suposto poder profissional.

Como já apontado pelo Esquerda Online no texto “Cultura do estupro, direito à saúde e a cruzada contra a vida das mulheres”, o escárnio e a omissão diante de casos como este são enraizados no perfil da categoria médica, que é a mais credibilizada e respeitada no âmbito da saúde graças à sua conformação elitista, embranquecida e masculina, com atravessamentos de classe, raça e gênero substanciais; e no modelo de educação exacerbadamente tecnicista e mercantilista, que distancia os profissionais do debate social que deve prepará-los para uma prática profissional crítica e transformadora e voltada ao combate a todo tipo de opressão e violência.

Em termos práticos, a falta de compromisso das instituições de ensino mediante casos de violência de gênero, com ênfase nas denúncias de violência sexual, favorece a ocorrência de novos casos sob o signo da impunidade e a manutenção das condutas criminosas na prática profissional. Isto, mais tarde, encontra-se com a mesma impunidade, no cenário do corporativismo médico e da execução do trabalho em saúde em uma lógica misógina, opressora e violenta.

São os profissionais formados por esse modelo e essa perspectiva que assumem as entidades da categoria médica, fomentando condutas técnicas e éticas que perpetuam o mesmo arcabouço político-ideológico de agressão sistemática contra as mulheres e as pessoas mais vulnerabilizadas. Exemplo disso são os acontecimentos mais recentes provocados pelo Conselho Federal de Medicina, que atua para barrar e criminalizar o acesso das pessoas com útero e que gestam aos direitos sexuais e reprodutivos – como quando entra em queda de braço judicial contra a categoria de enfermagem na inserção de DIU e quando emite resolução que inviabiliza o aborto legal nos casos de violência sexual.

É, portanto, nessa cena, que o crime pelo qual Ramiro Carvalho está sendo acusado precisa de resposta contundente das instituições: tanto a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, quanto o Conselho Regional de Medicina de São Paulo. Não seria dispensável, ainda, que a Faculdade de Medicina da Unicamp se colocasse, reconhecendo a responsabilidade da omissão no passado sobre a entrega do título de médico e a perpetuação da conduta criminosa de Ramiro Carvalho e de outros tantos profissionais que se sentem blindados pela localização social e profissional conferida pela medicina.