A revelação do enorme problema ético causado à esquerda internacional pela guerra russa na Ucrânia e pela guerra israelense em Gaza está abalando-a de tal forma que está perdendo sua orientação internacionalista e humanitária, em outras palavras, sua própria razão de ser! Com a inevitável e terrível consequência de abrir caminho para a extrema-direita internacional mais ou menos fascista!
Por exemplo, a maioria da esquerda internacional, enquanto se opõem à invasão russa da Ucrânia, defende a abstenção de qualquer ajuda que permita aos ucranianos se defender e repelir os invasores. O emblemático dessa posição foi o editorial de 7 de março de 2024 do jornal grego Efimerida ton Syntakton, que começou lembrando que “é bem conhecido que o governo de Mitsotakis tem envolvido nosso país ao máximo na guerra russo-ucraniana ao enviar armas à Ucrânia. Ele não se contentou com a condenação legítima da invasão russa”. Aqui, o que é chocante não é apenas a extrema hipocrisia do editorial, que considera como “legítima” a condenação da invasão russa enquanto denuncia o envio de armas de que a Ucrânia precisa para conter a mesma invasão russa, como se os ucranianos pudessem combater a invasão ucraniana sem armas, com estilingues ou… com as mãos nuas. No entanto, ainda mais chocante é a frase “Ele não se contentou com a condenação legítima da invasão russa”, que de fato recomenda que adotemos um “modo de vida” hipócrita, em que a emoção e a raiva diante da injustiça sofrida por outros devem evitar, a todo custo, atos de solidariedade concretos e “contentar-se” com condenações verbais fúteis, como aquelas a que nossos governantes e seus regimes estão habituados. Em outras palavras, somos aconselhados a adotar um “modo de vida” que resume a máxima reacionária – e de inspiração puramente capitalista – de “pensar apenas em si mesmo e não se preocupar com os outros”.
A coisa triste não é apenas que tudo isso está sendo dito a nós por um apenas por um jornal de esquerda do país. O que é revoltante é que esse “modo de vida” hipócrita está sendo vendido a nós como um tipo de supresa… um valor da esquerda, um tipo de esquerda compassiva que pode nos guiar em meio a tempos confusos! Em outras palavras, o mais cínico e reacionário amoralismo pequeno-burguês, que promove à categoria de virtude a indiferença mais egoísta pelo destino e sofrimento dos outros, dos pobres, dos oprimidos e dos desprotegidos, é aqui transformado em… uma orientação moral que deve guiar nossos passos, o comportamento e a vida das pessoas de esquerda! Conclusão: que decaimento, mas também que fracasso da esquerda e das pessoas da esquerda, que estão à deriva e naufragam em águas estrangeiras e inóspitas…
No entanto, uma deficiência ética semelhante e um problema similar são também evidentes na atitude de muitos da esquerda em relação à guerra genocida de Israel contra o povo palestino. E o que é lamentável é que este problema assumiu enormes dimensões em Israel e na Diáspora. Ou seja, precisamente onde a esquerda poderia e deveria desempenhar um papel na luta por um imediato cessar-fogo e pela retirada do exército israelense de Gaza e dos territórios ocupados, bem como no suporte aos palestinos e ao seu direito à vida e à liberdade.
Trata-se de um desenvolvimento trágico e, ao mesmo tempo, catastrófico, parecido com o que marcou para sempre a esquerda internacional na semana seguinte ao início da Primeira Guerra Mundial em agosto de 1914: a mesma retirada, literalmente de um dia para o outro, da vasta maioria das pessoas da esquerda em defesa de seu próprio Estado-nação, a mesma demonstração do patriotismo exacerbado, a mesma mobilização para os defensores armados da pátria, e a mesma traição dos juramentos de fidelidade eterna aos princípios internacionalistas e humanistas que alguns tinham se habituado a fazer durante décadas. E, assim como no caso da guerra russa contra a Ucrânia, a mesma escandalosa “a indiferença egoísta pelo destino e sofrimento dos outros, dos pobres, dos oprimidos e dos desprotegidos”, nomeadamente os palestinos!
Não é coincidência que, em um artigo emblemático dessa atitude, escrito por um jornalista de esquerda bem-conhecido, entitulado “Israel está em uma encruzilhada crítica”, publicado em 2 de abril por um jornal de negócios, o presente e o futuro de Israel são mencionados sem a menor referência e sem que uma única palavra (!) seja dedicada à destruição de Gaza e de suas dezenas de milhares de civis mortos! Como se tudo isso não só não dissesse respeito a Israel, que provocou isso e o continua a fazer, como se não tivesse um impacto crucial no seu próprio presente e futuro! Além disso, o mesmo artigo parece estar sofrendo de uma súbita perda de memória, já que repete que todo o sofrimento começou exclusivamente… no dia 7 de outubro com o ataque terrorista do Hamas, como se os 76 anos de ocupação das terras palestinas e a desumana opressão diária dos palestinos pelo Estado de Israel, que lhes nega os mais básicos direitos e liberdades democráticas, nunca tivessem acontecido.
Mas existe também uma coisa suficientemente grave para não ser noticiado, que diferencia as atuais traições das – infelizmente, muito numerosas – traições passadas aos juramentos internacionalistas e humanistas da esquerda e das pessoas da esquerda. De fato, ao contrário do que aconteceu no passado, ninguém pode dizer agora que não sabem e não veem a barbárie diária do seu próprio Estado para justificar sua atitude. De agora em diante, todas as atrocidades “patrióticas” sistemáticas e planejadas são transmitidas “ao vivo” e ninguém pode se esconder por trás de uma alegada ignorância do incrível sofrimento infligido aos ucranianos e, mais ainda, aos civis palestinos por seus algozes russos e israelenses…
Assim como, inclusive, nenhum dos israelenses e diaspóricos de esquerda pode justificar sua atitude se escondendo por trás dos crimes do Hamas e invocando a ausência de uma alternativa, quando até mesmo os meios de comunicação israelenses já não conseguem se calar e relembram o caso de, pelo menos, um israelense que, tal como um outro Karl Liebknecht na distante Berlim de agosto de 1914, protesta publicamente, mesmo que sozinho, contra a tão triste e assustadora “unidade nacional” na guerra por parte de seus compatriotas. É o corajoso jovem internacionalista israelense Ben Arad, que está verdadeiramente salvando a honra de toda a esquerda israelense e internacional, ao declarar publicamente que escolheria ir para a prisão, aqui e agora, do que cumprir o serviço militar obrigatório em um exército israelense que se distingue pelas suas operações genocidas e incontáveis crimes de guerra! [1] E, é claro, não é por acaso que Ben Arad assuma voluntariamente o rótulo de “traidor” que seus compatriotas não deixam de lhe imputar, nem que na sua varanda não voe uma bandeira com a estrela azul de Davi, mas a bandeira vermelha antes agitada por tantos grandes revolucionários judeus internacionalistas….
Mas, na realidade, é a esquerda internacional em seu conjunto que está vacilando em uma crise ética grave, já que está dividida em dois campos caracterizados por seu amoralismo simétrico: aqueles que apoiam a resistência ucraniana, mas que não apoiam a resistência palestina; e aqueles que apoiam os palestinos, mas se recusam a apoiar os ucranianos. As consequências dessa situação são óbvias e previsíveis: uma total falta de credibilidade e a inevitável falência da esquerda, que continua a colocar em prática dois pesos e duas medidas, apesar do fato de as guerras de extermínio lançadas pela Rússia de Putin e por Israel de Netanyahu contra os povos ucraniano e palestino terem muito mais semelhanças do que diferenças. Afinal, o Ministro de Relações Exteriores da Rússia e braço direito de Putin, Sergei Lavrov, não nos contradiz quando insiste categoricamente que “Israel busca objetivos semelhantes aos da Rússia”, já que está fazendo em Gaza o que a Rússia está fazendo na Ucrânia [2]…
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