Tempo e maré não esperam por ninguém
Ditado popular português
1 O argumento deste texto é que Lula devia ouvir os alertas críticos que estão sendo feitas pela esquerda anticapitalista, no interior e exterior ao PT. As ameaças estão aumentando e muito, não só em função das oscilações das pesquisas. Vai ser preciso correr riscos. E o tempo não corre a nosso favor. O lugar individual de Lula foi decisivo em vários momentos nos últimos quarenta anos. Seria injusto não o reconhecer. Mas estamos hoje diante de um perigo que é o “deslumbramento”. Porque o papel de Lula foi qualitativo na estreita vitória eleitoral sobre Bolsonaro. Essas circunstâncias dramáticas explicam os sentimentos de alívio, afeto e até “dívida” que prevalecem na subjetividade da esquerda. Acontece que nenhuma liderança é infalível. E a estratégia do governo de coalizão de apostar no ajuste fiscal, e manter a tática “quietista” diante do neofascismo, mesmo quando Bolsonaro volta a convocar um Ato para Copacabana no dia 21 de abril, e recebe apoio internacional de Elon Musk, merece ser debatida. Excesso de prudência pode ser fatal.
2 O silêncio diante desta polêmica é deseducativo. A idolatria do papel dos grandes dirigentes é um erro. Recordemos a metáfora da “curvatura da vara”: quando uma vara está muito inclinada numa direção, se queremos encontrar o ponto de equilíbrio é preciso incliná-la, primeiro, até ao extremo oposto. Ao contrário do que pensa a maioria da esquerda sob influência do senso comum, um debate entre posições opostas não se resolve, produtivamente, pela via das mútuas concessões. Em um primeiro momento, para esclarecer as diferenças e reduzir as margens de erro, o melhor caminho é desenvolver cada uma das posições até ao extremo, para conferir quanto das hipóteses iniciais se sustenta. Se o debate é honesto, depois de verificar a melhor posição, se constrói uma síntese, absorvendo ideias, incorporando argumentos, e fazendo as mediações.
3 Lula é um enigma, mas não é imprevisível. É um enigma porque, dentro de limites calculados, surpreende. Já provou que está disposto a correr riscos, fazendo giros à direita ou à esquerda. Girou à esquerda quando decidiu fundar o PT, quando decidiu boicotar o Colégio Eleitoral da ditadura, quando posicionou o PT na oposição ao governo Sarney, quando apoiou o Fora Collor, quando foi contra a participação do PT no governo Itamar. Girou à direita em muitas outras ocasiões depois de ser eleito e, por exemplo, quando escolheu Alckmin para a vice-presidência. Lula é um homem de esquerda moderado com raízes de classe. Sempre apostou na possibilidade de regulação de direitos através de reformas do capitalismo. Não faz sentido exigir de Lula que assuma posições revolucionárias. Seria como exigir do Papa que assuma um programa feminista de legalização do direito ao aborto. Seria absurdo. Mas é legítimo defender que Lula e o PT sejam coerentes com seu programa e compromissos reformistas. Nada mais, mas nada menos do que isso. É legítimo exigir a demissão de José Múcio, que protegeu golpistas, do Ministério da Defesa.
4 O problema do terceiro governo Lula é que não está sendo coerente com o programa que o elegeu: na campanha foi assumido de forma irredutível a ruptura com o Teto de Gastos. O arcabouço fiscal tem parentesco, ainda que inconfessável, com os ajustes feitos durante o governo Temer. Seria “vender ilusões” alimentar qualquer expectativa de que seria possível um giro radical do governo Lula. Mas é justo e necessário exigir que Lula e o PT assumam o papel de ponto de apoio para a mobilização popular contra os neofascistas. Lideranças reformistas já se apoiaram em mobilizações de massas. Petro, na Colômbia, não é um revolucionário marxista, mas o fez.
5 Lula não chegou à presidência sozinho. Já esteve equivocado muitas vezes no passado. E se Lula está errado? E se o desafio na luta contra Bolsonaro não se reduz às mudanças na comunicação? E se a divulgação de obras e “entregas” não forem suficientes? E se é incontornável que o governo inicie campanhas de mobilização de massas? E se a esquerda mais combativa tem razão em defender um giro à esquerda, agora e já? Faz sentido a esquerda anticapitalista fazer críticas e apresentar propostas alternativas? Duas posições já se confirmaram erradas no passado. O apoio incondicional e a oposição incondicional aos governos de colaboração de classes liderados pelo PT. Lula já concordou com a esquerda anticapitalista no passado. Deveria ouvi-la mais uma vez. Afinal, o que a história nos ensina?
6 No dia 10 de abril de 1984 aconteceu o Ato das Diretas Já no Rio de Janeiro, em frente à Candelária, e os trotskistas levantaram uma enorme faixa defendendo “Um dia de Greve Geral” no dia da votação da emenda Dante de Oliveira. A proposta tinha apoio na CUT e foi defendida por Meneguelli. Brizola era o governador eleito em 1982 e agitou para que a faixa fosse derrubada, o que aconteceu com a intervenção da PM carioca. O episódio foi uma expressão de duas estratégias. Na luta contra o os governos Geisel e Figueiredo a esquerda se dividiu entre dois blocos. Os moderados defendiam a necessidade de não provocar os limites da transição “lenta, gradual e segura”. Em consequência, aceitavam a liderança da fração liberal do MDB. A esquerda mais combativa defendia a necessidade de derrubar a ditadura pela mobilização popular. Em consequência, disputaram a liderança da oposição ao MDB apoiando Lula na construção de um partido de esquerda independente de classe.
7 Foi a fundação do PT em 1980, da CUT em 1983 e do MST em 1984 que abriram o caminho para a campanha das Diretas em 1984, e a afirmação de Lula como porta-voz da classe trabalhadora. Entre 1985 e 1989, a esquerda moderada apoiou a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral da ditadura, e uma parcela até integrou o governo Sarney. A esquerda mais combativa recusou apoio à “transição pelo alto”, negociada com a alta oficialidade das Forças Armadas, e o PT se posicionou na oposição ao governo Sarney. A esquerda mais combativa impulsionou a resistência operária, popular, camponesa e estudantil que garantiu a primeira greve geral nacional no Brasil. Esta localização permitiu a conquista da autoridade moral e política que explica a presença de Lula no segundo turno de 1989 contra Fernando Collor, e não de Ulysses Guimarães do MDB, Brizola do PDT ou Roberto Freire do PCB. Estavam certos e foram úteis.
8 Durante os difíceis anos noventa a esquerda mais moderada, diante do impacto da derrota histórica que foi a restauração capitalista na ex-URSS e no Leste Europeu, sofreu forte pressão de adaptação política ao discurso de “fim da história”, “vitória final do capitalismo” e “morte do socialismo”. Foi um” Deus nos acuda”. Uma parcela renegou o marxismo. A esquerda combativa esteve na primeira linha do Fora Collor, e defendeu não participar do governo Itamar Franco. Digeriu duas amargas derrotas de Lula, ainda no primeiro turno, em 1994 e 1998. Mas não parou de lutar nos movimentos sindical e estudantil e permaneceu, pacientemente, na oposição aos dois mandatos de FHC, preservando a defesa dos interesses populares. Defendeu a necessidade de uma campanha pelo Fora FHC, após o escândalo da aprovação da emenda da reeleição, e a manifestação dos cem mil em Brasília em 1999. Essa perseverança explica a primeira vitória de Lula em 2002. Estavam certos e foram úteis.
9 A ironia da história foi que as posições moderadas que, durante vinte e cinco anos, entre 1978 e 2003, se expressaram, essencialmente, exteriores ao PT, passaram a ser dominantes dentro do PT. A esquerda moderada assumiu a defesa incondicional dos governos do PT, o que significava o apoio a Meirelles no Banco Central e a Levy na Fazenda, entre outras negociações com setores da classe dominante. A esquerda radical terminou sendo expulsa do PT ou rompeu. Assim nasceu o PSol. Defendeu as reformas que eram progressivas, como, por exemplo, os aumentos do salário mínimo, e as cotas para jovens negros e indígenas, mas foi oposição de esquerda entre 2004 e 2015. Por isso, foi possível uma disputa nas jornadas de junho de 2013. Estavam certos e foram úteis.
10 A situação política mudou, drasticamente, quando, a partir do final de 2015, a maioria da classe dominante decidiu apoiar um golpe institucional disfarçado de impeachment. A esquerda combativa girou para a defesa do mandato legítimo de Dilma Rousseff, e foi para a rua contra o golpe em 2016. A prioridade foi a luta contra o governo Temer, a Lava Jato e a construção da Frente Única. A campanha Lula Livre foi uma expressão desta unidade. Desde o início de 2018, o assassinato de Marielle Franco engajou a esquerda mais combativa contra o perigo do crescimento da extrema-direita e da corrente neofascista, e da candidatura de Bolsonaro em 2018. O PSol e Boulos foram o mais sólido ponto de apoio para a campanha de Haddad no segundo turno. Durante quatro anos assumiu a primeira linha na resistência e, desde 2020, foi a primeira a sair às ruas pelo Fora Bolsonaro. A Frente Povo sem medo cerrou fileiras com a Frente Brasil Popular, e o PSol apoiou Lula desde o primeiro turno, em 2022. Estavam certos e foram úteis.
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