Há mais de 1,5 milhão de trabalhadores por aplicativo no Brasil. Entre eles, mais da metade se dedica ao transporte individual de passageiros. Trata-se de uma categoria ultra precarizada, em termos de jornada de trabalho, salário recebido e ausência de direitos sociais. Por isso, em primeiro lugar, defendemos que seja aprovada uma regulamentação da profissão, de modo a garantir salário justo e direitos trabalhistas, para impedir a perpetuação de uma relação abusiva entre plataforma e trabalhadores.
A defesa da regulamentação representa um grande enfrentamento com empresas multinacionais e lobistas que atuam em todo o globo, com estrutura tecnológica de última geração, mobilizando um grande volume de capital, e são controladas por investidores bilionários. Em 2023, a Uber registrou um lucro operacional anual de R$ 1,1 bilhão. A feroz disputa por mercados e por um diferencial de produção entre esses grandes empreendimentos digitais tem produzido uma poderosa força de pressão para o enfraquecimento das legislações trabalhistas de forma globalizada para maximizar lucros. Por isso se faz fundamental a regulamentação da relação entre plataformas e trabalhadores, para protegê-los de abusos, garantir direitos e salários dignos. Trata-se de uma batalha muito difícil, que não tem margem para conciliação e que precisa ser fruto da mobilização coletiva e unitária dos sindicatos, associações e do conjunto das categorias que trabalham em plataformas digitais. Esse é o sentido da luta pela vida e dignidade acima do lucro.
A regulamentação que defendemos parte do reconhecimento da existência de elementos que geram o vínculo empregatício via CLT entre plataforma e trabalhadores. Segundo o CEBRAP, em pesquisa sob encomenda da AMOBITEC, 63% dos motoristas trabalham exclusivamente com aplicativos e 37% afirmam ter outro trabalho. Isso significa que há níveis distintos de relação entre trabalhadores e a plataforma, e precisamos construir uma legislação que responda a diversidade de interesses e relações de trabalho que existem na categoria.
Defendemos que deve se enquadrar na relação de trabalho com vínculo empregatício via CLT, toda pessoa física registrada em aplicativo que exerça uma jornada de 36 a 44 horas semanais. A sua atividade deve ser regulamentada com limite de 8 horas por dia, aguardando chamadas ou executando viagens, em escala definida pelo empregador mediante um salário. Que por sua vez deve obedecer a seguinte fórmula: 1 SM + um valor por quilômetro rodado, que leve em consideração custos e margem para rendimentos líquidos, ambos reajustáveis anualmente pelo IPCA. Ficando garantido para esses trabalhadores todos os direitos das leis trabalhistas como 13º, FGTS, férias, descanso semanal remunerado, horas extras e etc…
Defendemos que seja considerado trabalhador autônomo, aquele registrado em plataforma digital que realiza uma jornada menor que 36 horas semanais. Sendo a sua jornada diária limitada por 8 horas diárias, aguardando chamadas ou executando viagens e que os seus rendimentos não podem ser definidos pela plataforma, sendo regulamentados por lei, atendendo uma formula que leve em consideração valores por quilômetro rodado e tempo de viagem por minuto.
O algorítimo não pode tudo. defendemos uma relação humanizada.
Uma das maiores reclamações dos trabalhadores na relação com as plataformas é a gestão desumanizada promovida através de dispositivos de inteligência artificial que são programados sem nenhuma transparência para definir o valor das tarifas, promoções, distribuir a demanda de corridas, aplicar punições, suspensões e bloqueios sem direito ao contraditório, de maneira que os trabalhadores não têm nenhum controle sobre seus salários, remunerações e permanência na plataforma. Tornando-se elementos meramente descartáveis, humilhados cotidianamente pela indiferença e frieza de uma inteligência artificial.
Defendemos que a plataforma tenha um atendimento humanizado com pessoas treinadas para atender, acolher dúvidas, reclamações, argumentos e documentos dos trabalhadores sobre qualquer tema de interesse e necessário a realização do seu trabalho. Os valores das tarifas devem ser regulamentados com tabelamento, reajustes de acordo com a inflação e instituídos em lei. Assim como, os sindicatos devem ter o direito à fiscalização da relação administrativa entre empresa e trabalhador, podendo acionar o MPT diante de irregularidade ou abuso.
A defesa do vínculo empregatício e de direitos, enfrenta forte oposição das plataformas e de ideologias neoliberais presentes na própria categoria
Uma das consequências de ser uma “massa sem direito nenhum” é a mitigação da identidade de classe e dos laços de solidariedade entre esses trabalhadores. Embora o movimento dos trabalhadores de apps tenha vivido um ápice no “breque dos apps” em 2020, a categoria é muito influenciada pelas propostas neoliberais como “empreendedorismo”, “ser patrão de si mesmo”, “meritocracia”, “individualismo”, “sentimento anti-sindical” e ideias de extrema direita.
No congresso nacional já tramitam dois projetos elaborados por parlamentares do Partido Liberal, o PLC 90/2023 de autoria do senador Rogério Marinho (ex-ministro de Bolsonaro e relator da reforma trabalhista) e o PL 536/2024 do deputado Daniel Agrobom. Esses dois projetos estabelecem uma relação cível e não trabalhista entre trabalhadores e plataformas, atendendo os interesses das plataformas que não querem ser obrigadas a pagar salários e direitos regulamentados pelas leis trabalhistas. Ficando os trabalhadores impedidos de fazer qualquer reclamação trabalhista na justiça do trabalho em caso de injustiças, abusos e irregularidades. Como também centrais, sindicatos e associações não poderão exercer qualquer denúncia no MPT.
O governo Lula apresentou ao Congresso Nacional o PLP 12/24 especificamente sobre os trabalhadores de transporte individual, após debate em grupo de trabalho tripartite.
Segue o impasse em relação aos entregadores de delivery, que não tiveram acordo com a proposta. Este projeto está sendo objeto de farta polêmica na sociedade, criando um ambiente complexo para construção de propostas que possam ser possíveis de avançar no marco da atual correlação de forças, tanto no movimento dos trabalhadores como no congresso nacional. O PLP 12/24 não reconhece a existência de vínculo empregatício sob nenhum aspecto, um elemento que caracteriza muito mal esse projeto, que diz:
“será considerado, para fins trabalhistas, trabalhador autônomo por plataforma e será regido por esta Lei Complementar sempre que prestar o serviço, desde que com plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos em que se conectará ao aplicativo”.
Nossa principal crítica a esse projeto é a ausência de critérios referenciados no artigo 7º da constituição e na CLT para o reconhecimento do vínculo empregatício, e consequentemente de direitos trabalhistas plenos. Pensamos que o debate sobre esse tema ficou concentrado no GT tripartite, com poucos mecanismos de discussão nas bases, o que ficou prejudicado a disputa a cerca desse projeto no conjunto da categoria. O PL 12/2024 se aprovado estabelece uma relação “híbrida” entre o autônomo e o trabalhador, sob o fundamento de que não há vínculo empregatício, sendo que a Uber e demais empresas disputam a ideia de que, na verdade, esses trabalhadores são seus clientes. Em seu artigo 2º, o PLP diz:
“Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei Complementar, considera-se empresa operadora de aplicativo de transporte remunerado privado individual de passageiros a pessoa jurídica que administra aplicativo ou outra plataforma de comunicação em rede e oferece seus serviços de intermediação de viagens a usuários e a trabalhadores previamente cadastrados”
O sistema jurídico trabalhista brasileiro estabelece critérios para designar a condição de vinculo empregatício, a prestação de trabalho por pessoa humana, com pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação. A própria Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT, em seu texto, classifica quem é o empregador, o empregado e a relação de serviço:
“Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Art. 4º – Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada.”
Ao comparar a legislação brasileira com a relação concreta desenvolvida entre a plataforma e os trabalhadores, fica nítido o vínculo empregatício. Já que parte dos motoristas registrados numa plataforma tem a habitualidade de fazer uma jornada de 40 horas semanais ou mais, conectados ao aplicativo, seja aguardando ordens de chamadas ou realizando viagens, subordinados e recebendo rendimentos com valores e regras definidos unilateralmente pela plataforma.
Nós defendemos os direitos previdenciários dos motoristas, o direito de se aposentar, auxílio maternidade para as mulheres motoristas e auxílio doença são fundamentais como mínimo de dignidade para uma categoria que sofre com alto estresse e acidentes de trabalho. Assim como defendemos a livre organização dos trabalhadores em sindicatos. Não há outro caminho que não a organização da luta coletiva, já que os próprios motoristas e entregadores sozinhos e fragmentados, sem a mobilização conjunta, não conseguirão nada, além de baixos rendimentos e bloqueio das suas contas. Toda manifestação ou iniciativa de luta que tem o objetivo de melhorar as condições de trabalho só pode prosperar se houver a participação coletiva dos trabalhadores na discussão e decisão da sua pauta e seus métodos de mobilização.
Nesse sentido, a existência de acordo coletivo nacional é o que pode, com a experiência concreta de colocar em lados opostos trabalhadores e empresas negociando temas objetivos da sua realidade, ampliar a própria consciência de classe na categoria. Existe uma campanha de oposição liderada pela extrema-direita justamente contra esses dois aspectos, com os eixos “sem sindicato” e “previdência é tributo”, com uso de fake news. Evidentemente, não temos acordo com isso e vemos com muita preocupação que a extrema direita esteja dirigindo atos da categoria e usando esse tema para sua mobilização mais geral, inclusive levantando o “Fora Lula” e fazendo campanha contra candidaturas de esquerda às vésperas das eleições municipais.
Devemos combater e não nos confundir com essa campanha, pois ela se orienta em favor de que esses trabalhadores se tornem MEI (microempresário individual) e de que as empresas não contribuam para a previdência social no país, se livrando de qualquer responsabilidade. Assim, também precisamos defender os sindicatos contra a ideia de que são “parasitas burocratas” que querem ganhar dinheiro em cima dos trabalhadores e que atrapalham o “livre mercado”. Nesse sentido, defendemos que o texto do PLP deve avançar ainda mais no sentido de não dar nenhuma brecha para que a empresa “fuja” da negociação coletiva e da sua responsabilidade na contribuição previdenciária.
Tampouco podemos cometer o erro que setores ultraesquerdistas costumam fazer ao desconsiderar a influência da extrema direita e suas ideias na categoria, que vem prevalecendo na maioria dos protestos de oposição ao PLP até agora. Bem como na sua capacidade de piorar a discussão no Congresso Nacional, evitando qualquer capitulação para propostas reacionárias em debate na categoria e no parlamento.
Defender pedagogicamente a necessidade de vínculo e exigir mais direitos além dos que estão no PLP 12/24
Este debate deve ser feito em forma de propaganda, com argumentos, defendendo nossa visão sobre o trabalho e a defesa da CLT contra os ataques que vem sofrendo. Evidentemente este debate precisa estar associado a temas concretos da realidade da categoria, com os direitos que defendemos, como, por exemplo, adicional noturno, 13º, férias e seguro contra acidentes. Nós não defendemos este PL tal como ele está. No marco geral de lutar pela regulamentação com direitos e combater a extrema direita prioritariamente no tema, devemos criticar os aspectos negativos do PL e evidenciar seus inúmeros limites, reconhecendo ao mesmo tempo os pontos positivos que existem, ainda que sejam poucos e mediados.
Pensamos que o governo acerta em retirar o regime de urgência constitucional do PL 12/2024, atendendo a reivindicação da categoria que quer mais tempo para discutir esse polêmico tema relacionado ao mundo do trabalho. Ao mesmo tempo, o melhor seria que a posição política da bancada do PSOL, neste momento, seja a de defesa de “mais direitos”, de explicar os benefícios do vínculo empregatício e de buscar dialogar pacientemente com o que é a consciência média da categoria que discorda desta visão, apresentando um projeto substitutivo.
Por fim, mas não menos importante, propomos a criação de uma plataforma federal de transporte de passageiros e mercadorias
Defendemos que o governo brasileiro lance uma plataforma digital estatal para atuar no setor, fazendo investimentos em pesquisa e inovação. O papel de uma plataforma desta natureza é criar as condições para efetivamente garantir direitos para os motoristas, sem significar aumento do valor para os passageiros. A única forma de disputar a fundo o projeto que defendemos diante das grandes multinacionais lobistas é usar o Estado como indutor dessa iniciativa com sustentabilidade econômica, que tenha como principal objetivo oferecer um serviço de qualidade e tarifas adequadas a realidade da população brasileira. Garantindo geração de empregos com qualidade e dignidade totalmente diferente do que é praticado hoje. Que ganhe assim a simpatia da população e que abra a possibilidade para também fazermos a disputa ideológica contra a propaganda do neoliberalismo radical que vem ganhando a opinião pública.
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