É a jornalista, Rachida El Azzouzi, franco-palestina, quem nos revela alguns impactos sobre a guerra de Israel contra as crianças palestinas em Gaza.
O artigo que traduzi e adaptei, com depoimentos de crianças, seus especialistas, e seus familiares em Gaza, explicita os terrores do extermínio de um povo:
“Em cinco meses, dezenas de milhares de crianças foram mortas ou gravemente feridas pelos bombardeios israelenses em Gaza. Um massacre maciço diante dos do mundo inteiro.”
Nesse artigo ela apresenta alguns depoimentos de crianças e jovens. Uma garota de nome Hind Rajab, encontra a equipe da Cruz Vermelha palestina, e implora por ajuda, diz estar assustada pois se encontrava em um carro bombardeado pelo exército israelense. Em sua volta estavam, os cadáveres de vários membros da sua família, e a menina dizia: ‘Estão todos dormindo! Em outros momentos ela afirmava ‘estão todos mortos, há sangue por todo o lado, há tiros” Hind Rajab é um dos rostos da infância massacrada em Gaza.
Escreve a jornalista, que o corpo sem vida, da menina de 6 anos, foi encontrado com os restos mortais dos seus familiares e de dois motoristas de ambulância que tinham tentado em vão salvá-la. Isto aconteceu em 10 de fevereiro de 2024, duas semanas após o seu pedido de ajuda. Hind Rajab foi morta na véspera do seu sexto aniversário. Com uma fita de flores no cabelo e um vestido de princesa, a sua fotografia e a sua voz aterrorizada deram a volta ao mundo.
A jornalista ainda apresenta dados do UNICEF, que a agência descreve como “uma guerra contra as crianças”.
“Esta guerra é uma guerra contra as crianças. Uma guerra contra a sua infância e o seu futuro”, acrescentou Philippe Lazzarini, Comissário-Geral da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA). O comissário cita uma estatística impressionante: o número de crianças mortas em Gaza desde 7 de outubro de 2023 é superior ao número de crianças mortas em quatro anos em todos os conflitos do mundo. Em cinco meses, dezenas de milhares de crianças foram mortas ou feridas pelos bombardeios israelenses . São elas, juntamente com as mulheres, que constituem a maioria dos mais de 31.000 mortos registados até à data, segundo o Ministério da Saúde do Hamas, ou seja, mais de 13.000 crianças. Um número considerado credível pelas Nações Unidas, mas subestimado aos olhos de várias organizações humanitárias, porque não inclui os milhares de corpos enterrados sob os escombros.
Já o historiador Stéphane Audoin-Rouzeau, no mesmo jornal Mediapart, observa:
“Com 30.000 mortes oficiais e, por definição, um número desconhecido de pessoas desaparecidas em Gaza, para não falar da mortalidade indireta ligada à subnutrição e às doenças”.
Sofrimento físico e psíquico
Aponta a jornalista Rachida, que o Dr. Guillemette Thomas, coordenadora para a Palestina, dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), que os mortos não são os únicos feridos: “É preciso imaginar as feridas. Ferimentos graves, fracturas múltiplas, queimaduras numa grande parte do corpo, membros arrancados…Imagine que lhe rebentam com uma perna quando ainda não tem idade para andar”, diz Guillemette Thomas, sublinhando “o sofrimento absoluto das crianças, as primeiras vítimas de uma guerra que não é a sua”. Chegam “em massa a hospitais onde falta tudo, onde não podem ser tratadas em condições dignas devido à falta de medicamentos e de sedativos”. O seu colega Léo Cans, chefe de missão na Palestina, contou ao Mediapart a história de Myriam, uma criança de 6 anos a quem foi amputada a perna direita. Com o rosto meio queimado, perdeu o irmão, a irmã e a mãe. O seu pai está desaparecido. A única coisa que lhe resta é a tia: “Por falta de material, tivemos de lhe mudar a ligadura sem anestesia. Durante meia hora, gritou de dor enquanto chamava pela sua mãe, que tinha morrido. Sempre que alguém entra num hospital, é apenas uma pessoa. Toda uma família foi destruída. Myriam encarna esta geração de órfãos cujo presente e futuro foram aniquilados.
De acordo com os MSF, mais de 17.000 deles perderam um ou ambos os pais desde 7 de outubro de 2023, um número sem precedentes. Léo Cans contou também a história de Malak, a neta de um motorista dos MSF. Tinha 5 anos“, explica ao Mediapart. Foi morta por um ônibus que caiu sobre um salão de casamentos no sul de Gaza, que alugávamos para as nossas equipes que tinham sido evacuadas e já não tinham casa. O exército israelita tinha sido informado do local e sabia que só estavam lá civis dos MSF com os seus familiares diretos, filhos e pais”. O projétil arrancou-lhe a perna. A menina morreu dois dias depois no hospital.
As crianças vivem com medo iminente de morrer.
Como todos os médicos entrevistados pelo Mediapart a partir de Gaza ou no regresso da missão, que não escondem que estão “afectados” pelo que viram, a Dra. Guillemette repetiu o quanto ficou impressionada com o número de crianças gravemente feridas, órfãs ou mortas, bem como de mulheres e idosos: “Na maior parte das guerras, são os combatentes que são feridos ou mortos. Eles “nunca viram nada assim”. Guillemette Thomas pergunta “que nível de horror será necessário para que isto acabe”, falando de “gerações inteiras sacrificadas”, de “uma guerra contra a população civil palestina”. Guillemette Thomas (MSF) não está surpreendida com o elevado número de crianças mortas, porque “50% da população de Gaza [ tem 2,4 milhões de habitantes – nota do editor] tem menos de 18 anos”.
Os sobreviventes, privados da inocência despreocupada da sua idade, “um luxo que perderam há anos”, continuam e continuarão a sofrer “um ambiente extremamente perigoso e traumático”, “com sequelas físicas e mentais para toda a vida”, adverte Guillemette Thomas. A deputada condena “a destruição física e psicológica de uma população civil, metade da qual é constituída por menores”.
Guillemette Thomas relata ainda o testemunho de um de seus colegas palestinos, um enfermeiro que assiste impotente, todas as noites, aos gritos dos seus filhos ao mais pequeno ruído: “Pensam que se trata de um bombardeio e perguntam: “Vamos morrer agora?’ Quando se está debaixo das bombas há cinco meses, todos os minutos contam. As crianças vivem no medo iminente de morrer. Cada batida de porta, cada trovoada, cada ruído inofensivo, é equiparado ao medo, faz emergir o terror”.
Destaca o artigo da jornalista Rachida El Azzouzi, que, além de perderem as suas casas e famílias, as crianças estão perdendo partes do seu corpo. Ela registra o depoimento da Dra Audrey McMahon, psiquiatra infantil de Médico Sem Fronteiras. Mais de um terço da equipe palestina de MSF foi deslocada. Muitos perderam membros da família. Como muitos, escrevem os nomes dos seus filhos com a caneta nos braços e nas pernas, para que possam ser identificados em caso de bombardeio . “Isso não é suficientemente traumático?”. Nos últimos cinco meses, dezenas de crianças tiveram de ser submetidas a amputações a frio, sem sedação ou anestesia, suportando dores físicas e emocionais difíceis de imaginar. Para além de perderem as suas casas e famílias, estão perdendo partes do seu corpo”, explica Audrey McMahon. Elas têm de aceitar o facto de serem fisicamente incapacitadas, de já não poderem deslocar-se ou viver de forma independente. O trauma físico é uma lembrança constante do trauma psicológico e cultural.
‘Assim, as crianças palestinas acumulam camadas de risco, medo e luto, exatamente o oposto do que precisam para se desenvolverem adequadamente”, continua Audrey McMahon. Suportam o stress constante da violência, a fome, a sede, o frio do momento, a necessidade de se protegerem, bem como o sofrimento psicológico associado aos múltiplos lutos da perda dos pais, da família, dos amigos, de partes do corpo, da casa, dos brinquedos e do mundo. As imagens de crianças com olhos encovados e corpos emaciados estão a proliferar nas redes sociais.
Continua a jornalista informando que no início de março, uma equipe da Organização Mundial de Saúde visitou os hospitais do norte pela primeira vez desde outubro e constatou que dez crianças tinham morrido de subnutrição. Sitiada e bombardeada incessantemente, a Faixa de Gaza está a morrer de fome, com Israel a permitir a entrada de ajuda internacional apenas aos poucos, organizando assim uma fome deliberada. O jurista canadense Michael Fakhri, relator especial da ONU para o direito à alimentação, descreve a situação como “um crime de guerra e mesmo um genocídio”. De acordo com as Nações Unidas, quase todos os habitantes de Gaza estão ameaçados de fome. 90% das crianças com idades compreendidas entre os 6 e os 23 meses, bem como as mulheres grávidas e as que amamentam, enfrentam “graves carências alimentares”, segundo as ONG que trabalham com a UNICEF e o Grupo de Nutrição Global.
No Norte, lugar onde um massacre provocou a morte de mais de uma centena de pessoas durante uma distribuição de alimentos em que o exército israelense disparou contra a multidão, “15% das crianças com menos de 2 anos sofrem de subnutrição aguda”, segundo a UNICEF. Imad Dardonah, pediatra do hospital Kamal Adwan, declarou à AFP que a profissão médica é impotente para tratar as vítimas da subnutrição, que tem consequências devastadoras a longo prazo (atraso no crescimento, no desenvolvimento cognitivo, etc.). “Não temos nada para lhes dar, o melhor que podemos fazer é dar-lhes uma solução de sal ou uma solução de açúcar.’
Israel está atacando as crianças, que constituem metade da população, para destruir o seu futuro e o futuro da Palestina, diz Zouhair Lahna, médico regressado de Gaza.
Mais um testemunho que confirma as informações da jornalista Rachida El Azzouzi!
Tal como a de Hind Rajab, a agonia de Yazan al-Kafarna, de 10 anos, deu a volta ao mundo. Morreu no dia 4 de março num hospital de Rafah, no sul da Faixa de Gaza, devido à falta de alimentos e medicamentos. Sofria de paralisia cerebral e precisava de uma alimentação equilibrada que se tornou impossível. Vivia de restos de pão que encontrávamos com grande dificuldade e que obtivemos a preços extremamente elevados”, disse um membro da família a vários meios de comunicação social. Se não conseguíssemos encontrar comida, dávamos-lhe açúcar para o manter vivo.
As crianças sobreviventes
Em seu artigo, Rachida El Azzouzi interroga sobre as possibilidades de se desenvolver nessa atmosfera, nesse ambiente tão destrutivo. “Como aliviar, proteger e permitir que as crianças sobreviventes continuem a crescer apesar de tudo?
A questão deixa perplexos os profissionais entrevistados pelo Mediapart, que não vêem saída para já, na ausência de um cessar-fogo e perante a dimensão da destruição, não só de vidas humanas, mas também de infra-estruturas essenciais, casas, hospitais, escolas, etc.
“O que constrói a resiliência nas crianças é ter adultos para as proteger, para as confortar, para as reconectar com as suas forças”, diz Audrey McMahon. A psiquiatra infantil dos MSF descreve como os profissionais humanitários, tal como os particulares, tentam aliviar as situações de emergência e oferecer às crianças um espaço de segurança emocional, mesmo que limitado, pegando-as ao colo, cantando para elas, organizando ações educativas, como circenses, desenhos, jogos, etc. De regresso de uma missão no sul, o médico francês Raphaël Pitti falou ao Mediapart sobre a miséria das crianças de Gaza: “O único lugar onde se podem distrair é nos hospitais. Conhecem-nas do avesso, observam as operações a partir do chão, vão buscar luvas e seringas usadas para encher de água estagnada e brincam de guerras, salpicando-se umas às outras. Estão sujas e mal nutridas. Graças ao hospital, há comida, mas não é uma comida equilibrada, só comem cereais e açúcar. Os legumes e os ovos são demasiado caros”.
Ataques à dignidade infantil – destrói o futuro da palestina
Zouhair Lahna, obstetra e ginecologista franco-marroquino, acaba de regressar de um mês em Gaza com a associação de médicos palestinos PalMed. Na sua mente, os rostos de dezenas de crianças, bebês e respectivas mães, “todos destruídos”, “reduzidos a seres que não são humanos”, devido à guerra, à falta de alimentos, às deslocações forçadas e aos bombardeamentos incessantes. Zouhair Lahna, que conhece os conflitos mais violentos há mais de vinte anos, também “nunca viu nada assim”: “Gaza é o mais terrível. 2,4 milhões de pessoas estão aprisionadas num pequeno pedaço de terra, sem qualquer possibilidade de fuga. Presas num massacre, são deliberadamente mortas de fome, sede, e feridas”. Na sua opinião, “Israel ataca as crianças, que constituem metade da população, para destruir o seu futuro e o futuro da Palestina“.
‘É um trauma permanente”.
Audrey Mcmahon, de MSF, concorda. ‘As crianças palestinas vivem um trauma permanente que é cultural, histórico, psicológico, físico, íntimo e coletivo, com consequências devastadoras”, explica. Correm o risco de tudo: perturbações do comportamento, ansiedade, pânico, perturbações do sono, depressão… São crianças que vivem e continuarão a viver num estado de pavor, de medo intenso, presas a um sentimento de injustiça que pode virar-se contra elas com pensamentos suicidas”.
Muito antes da guerra, em 2022, um relatório da Save the Children, intitulado “Trapped”, revelava que quatro em cada cinco crianças de Gaza sentiam um estado permanente de medo, tristeza ou ansiedade. Resultado de quinze anos de bloqueio israelense ao território, segundo a ONG. Urinar na cama, dificuldades de fala, mutismo, pensamentos suicidas, auto-mutilação… o relatório descreve em pormenor as múltiplas repercussões.
A psiquiatra Audrey McMahon é confrontada com esta situação diariamente.
As crianças palestinas crescem sob discriminação e opressão constante, com sonhos e planos limitados. Já passaram por várias guerras e bombardeamentos.
De acordo com a UNICEF, mais de um milhão delas precisam de assistência médica e social – imaginem que são todas as crianças de Gaza. Descreve a impotência das equipes humanitárias no terreno para se ocuparem da saúde, nomeadamente da saúde mental, num lugar onde já havia muito poucos intervenientes antes da guerra. “Já não se trata de reduzir o impacto, mas sim de estar presente, de testemunhar, de denunciar, de os apoiar pelo simples facto de estar presente, de apelar ao cessar-fogo e à ajuda humanitária.
Os profissionais de saúde mental de Gaza também vivem em constante stress e terror. ‘ É muito complicado pedir-lhes que sejam capazes de lidar com a dor dos outros”, diz Audrey McMahon. Nem sequer podemos substituí-los porque, dado o elevado nível de insegurança, não podemos enviar profissionais internacionais. Trabalhando com várias crianças e adultos em Gaza, a psiquiatra dos MSF sente a sua “raiva contra a humanidade”: “Eles perguntam se ainda pertencem à raça humana. O simples facto de terem de exprimir as suas necessidades é um ataque profundo à sua dignidade, quando as imagens do massacre e da fome estão mesmo à frente dos nossos olhos. Estão dizendo: ‘não nos cabe a nós dizer, cabe a vocês agir’, estão dirigindo à comunidade internacional, a toda a humanidade“.
O direito à existência.
Cada um deles, com as suas próprias palavras, sejam eles muito jovens ou adolescentes, exprimiu a extrema violência do ataque ao seu direito à existência. Com esta pergunta: “Como posso existir quando me dizem que não tenho o direito de existir e que sou vítima de um massacre coletivo?’
Termino essa tradução convicta que as crianças, desde bebês devem ser ouvidas, sempre e em qualquer parte do mundo. Já as crianças palestinas, nessas situações extremas precisam, e com urgência, serem escutadas – assim todo Mundo deve prestar atenção naquilo que se ouve das e sobre as crianças, em Gaza!
Ana Maria Mello, Membro do CINDEDI (Centro de Investigação sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil – Membros – Cinded) – USP RP, SP. 31/03/24
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