1. Encerrado o verão de 2024 permanece incerto qual será o destino do governo de coalizão liderado por Lula. A evolução das investigações pela Justiça sobre o golpismo está encurralando o bolsonarismo, após os depoimentos dos comandantes do Exército e da Aeronáutica. Mas a extrema-direita mantém uma contraofensiva depois da avalanche neofascista da Avenida Paulista, procurando nas ruas uma posição de força para incidir sobre o Congresso. Qual será a dinâmica da conjuntura? Uma possibilidade é que o julgamento dos generais e de Bolsonaro tenha um desfecho rápido com condenação e prisão. Outra é que a força social de choque da extrema-direita seja grande o bastante para alimentar uma chantagem política para ganhar, indefinidamente, tempo. A fórmula indeterminada de que “tudo pode acontecer” não é razoável. Embora o governo esteja diante de uma encruzilhada de caminhos, é possível algum cálculo de probabilidades. A reunião ministerial de 18 de março obedeceu à necessidade de responder à queda de aprovação nas pesquisas de opinião1. Lula é consciente que, se não for invertida, as condições da governabilidade irão erosionar, diminuir, fragilizar. Mas reduzir as oscilações negativas à falta de comunicação das realizações do governo é imprudente. O desafio é maior, e pede coragem.
2. O Brasil mudou nos últimos dez anos e permanece fraturado. O apoio político não depende mais somente das flutuações positivas da realidade econômica. Há uma luta política-ideológica com a extrema-direita que o governo não faz. O apoio da fração burguesa do agronegócio à extrema-direita é sólido. O deslocamento ressentido de uma maioria das camadas médias ressentidas aos neofascistas se mantém. O alinhamento da parcela da população organizada pelas igrejas-empresas neopentecostais não diminuiu. O horizonte de eleições municipais é agora a batalha central. Uma vitória eleitoral de candidaturas bolsonaristas ou cúmplices, em grandes cidades, deteriora muito a relação política de forças. Depois do fracasso da sublevação de 8 de janeiro uma nova tentativa insurrecional seria impensável. A extrema-direita decidiu se reposicionar para disputar as eleições em 2024 e 2026. O calendário eleitoral define o terreno do confronto incontornável.
3. Há três grandes cenários, grosso modo, diante do Brasil, mas, por enquanto, um prognóstico ainda é impossível. O governo pode chegar em 2026 com suficiente aprovação, como Lula chegou em 2006 e 2010, e conseguir a reeleição. O governo pode chegar em 2026 como Dilma Rousseff chegou em 2014, e o desenlace será imprevisível. Finalmente, a esquerda pode chegar em 2026 muito desgastado e alta rejeição, como foi a situação da candidatura de Haddad em 2018, e a oposição de extrema-direita pode ser favorita. Claro que há sempre que lembrar do fator Forrest Gump: “shit happens”. Merdas acontecem. Existe o acaso, o acidental, o aleatório. E dois anos é muito tempo. A presunção de que Lula já seria favorito em 2026 é uma conclusão infundada. A questão decisiva é saber se a relação social de forças desfavorável para a classe trabalhadora, desde 2016, será revertida ou não. Ainda não foi. A decisão de não se comprometer com a mobilização social porque ela permanece muito difícil e, ainda pior, a espantosa proibição de Atos antifascistas no aniversário dos 60 anos do golpe de 1964 sinaliza incompreensão do desafio.
4. Não é incomum que a análise de tendências e contratendências da evolução da situação econômica, social e política se deixe “deslumbrar” pela tentação de onipotência, e iludir pela “inércia” mental. Porque o amanhã pode não ser uma continuidade sem sobressaltos de ontem. Não é possível antecipar as mudanças na situação mundial até 2026, as oscilações da situação econômica, as reviravoltas das disputas ideológicas e culturais, as transformações nos humores das classes e frações de classe, os estratagemas, as rasteiras, os escândalos, as manobras dos partidos e lideranças, e dominar todas as variáveis. Mas o resultado das eleições na Argentina no final de 2023, e em Portugal em 2024 deveria acender um sinal de alerta amarelo. A fração liberal que tentou uma candidatura de terceira via e fracassou, mas depois se reposicionou no segundo turno e aceitou entrar no governo, exige, ininterruptamente, um giro à direita para manter o apoio: condena Lula pela denúncia do genocídio feito pelo Estado de Israel, quer a preservação da isenção fiscal para os 17 setores beneficiados pelo governo Dilma após a onda de choque da crise mundial de 2007, não aceita a tentativa de algum controle sobre a Petrobrás e a Vale, etc. Se o governo não fizer um giro à esquerda, corre o risco de perder apoio na fração burguesa que tem um pé no governo e outro fora e, simultaneamente, perder apoio na sua base social.
5. No caminho de 2026, o segundo semestre de 2024 será determinado pelas eleições municipais. Serão, simultaneamente, três eleições muito diferentes: (a) serão eleições nas capitais, metrópoles e cidades das regiões metropolitanas; (b) serão eleições nas grandes cidades com mais de 50.000 eleitores; (c) serão eleições nos pequenos municípios. Três desafios táticos deverão estar no cálculo da esquerda, preservando o sentido das proporções: (a) nas grandes metrópoles, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre, Recife, Fortaleza e Belém o maior desafio será a disputa com o bolsonarismo, a nacionalização da luta incontornável, e a decisão de lutar com vontade de vencer; (b) nos pequenos municípios a capilaridade e implantação social da direita e da extrema-direita é muito superior à de toda a esquerda social e política, e a tarefa central é travar o bom combate e acumular forças, buscando eleger, corajosamente, vereadores; (c) nas grandes cidades, uma localização intermediária, existirão algumas disputas mais próximas às das capitais, e outras mais próximas dos pequenos municípios.
6. Outra questão é a linha de campanha. Nos setores mais combativos da esquerda já há alguma frustração com os limites do governo Lula. Diante de impasse “minimalista” do reformismo do governo Lula uma parcela da esquerda radical se inclina pela defesa do programa máximo. A emulação de um “belo programa”, grandioso, imponente, utópico: igualdade, socialismo, revolução, nacionalização de empresas estratégicas, conselhos populares. Ou se deixa seduzir pela radicalização de métodos de luta e propostas de mobilização. Não são bons caminhos. As eleições devem ser uma oportunidade para a educação política de milhões. Manter o diálogo com as amplas massas populares exige um programa de transição com propostas concretas par mudar a vida que responda às necessidades mais sentidas nas cidades, mas respeitando o nível de consciência. O Brasil não está em uma situação pré-revolucionária. Ainda está em uma situação reacionária. O programa não pode ser o mesmo, não importa qual a situação.
7. O projeto do governo Lula é aproveitar o contexto internacional de recuperação econômica após o impacto da pandemia com a esperança que se mantenha puxado, outra vez pela China e agora, também, a Índia. Ambiciona manter um pacto com a fração burguesa que o apoiou no segundo turno de 2022 contra Bolsonaro e integrou o ministério, a governabilidade no Congresso com o centrão, para garantir a continuidade do crescimento e a realização de reformas. No primeiro ano de mandato a PEC da transição permitiu crescimento próximo a 3% e elevação da renda do trabalho em 12%, a ampliação do programa Bolsa-Família que em 13 dos 27 Estados beneficia mais pessoas que aqueles trabalhadores com carteira assinada, a recuperação do salário-mínimo, a reestruturação do IBAMA e da FUNAI, o novo programa Pé de Meia para os estudantes do ensino médio, a recuperação do Plano Nacional de Vacinação, o apoio dos Bancos públicos para o Desenrola que favorece as famílias endividadas, a ampliação de acesso ao crédito com a queda das taxas de juros, a expansão de mais 100 unidades dos Institutos Federais, além de outras iniciativas que beneficiam as massas populares. Ambiciona o crescimento preservando controle da inflação dentro da meta, insistindo em um ajuste fiscal gradual, apostando na elevação do investimento privado estrangeiro e, também, nacional através do arcabouço fiscal que substituiu o Teto de Gastos. Em resumo, uma aposta em um reformismo “fraco”, mais fraco que entre os anos 2003/10, ou quase sem reformas, mas a garantia da preservação da democracia, e da Frente Ampla contra a extrema-direita. Só que no Brasil, mesmo pequenas reformas mudam a vida de milhões.
8. A estratégia repete, essencialmente, o projeto que foi sendo construído após a vitória eleitoral de 2002, e permitiu as vitórias eleitorais de 2006, 2010, 2014 e, perigosamente, de 2022. As premissas que o sustentam repousam em três cálculos. O primeiro é uma aposta de que o perigo de uma nova conspiração, como aquela que resultou no golpe institucional que derrubou o governo Dilma Rousseff, estaria descartado. O segundo é a avaliação de que a derrota eleitoral da extrema-direita e a inelegibilidade de Bolsonaro tornam a hipótese de uma vitória de um herdeiro bolsonarista em 2026 muito improvável, senão impossível. O terceiro é a previsão de que a divisão burguesa sobre a necessidade de preservar o regime democrático-eleitoral é irreversível e que, em um segundo turno em 2026, a fração capitalista que se expressa através de Geraldo Alckmin e Simone Tebet, voltará a defender Lula, porque não está disposta a correr o risco de uma segunda presidência da extrema-direita.
9. Os três cálculos têm até mais do que um “grão de verdade”, mas desconsideram, seriamente, os terríveis riscos colocados. Esquecem as lições do golpe de 2016 contra Dilma Rousseff. As mais importantes são cinco: (a) a primeiro é a subestimação da corrente neofascista, o erro mais catastrófico dos últimos sete anos, a sua audácia, sua implantação social e cultural, sua disposição de luta frontal, a confiança na liderança política de Bolsonaro, portanto, a resiliência do apoio social da extrema-direita que revela que a disputa não se reduz somente à percepção de melhoras nas condições de vida, porque tem na sua raiz, também, uma feroz luta política-ideológica e até cultural de visão de mundo reacionária; (b) a segunda é fantasia de que é possível manter, indefinidamente, uma governabilidade a “frio”, e a idealização da Frente Ampla, acreditando que as lideranças burguesas incorporadas ao ministério vão manter lealdade, esquecendo o papel de Michel Temer e exagerando a confiança na estabilidade do governo que repousa nos acordos com o Centrão no Congresso Nacional, esquecendo o perigo de ameaça por chantagens inaceitáveis; (c) o terceiro é a subestimação pessoal de Bolsonaro como líder da oposição e pré-candidato, mesmo na condição de inelegível, porque, se necessário, podem substituí-lo por outro(a) – Tarcísio, Michelle, ou até outro “personagem” – confiando que a capacidade de transferência de votos permanece possível; (d) o quarto é a desvalorização da emergência das reivindicações populares, dos negros, das mulheres, dos LGBT’s, dos ambientalistas e da cultura, um erro que foi fatal para o peronismo na Argentina, porque a confiança na continuidade do crescimento econômico, condição da turbinação de reformas progressivas, pode se frustrar, porque o arcabouço fiscal limita o papel dos investimentos públicos e o cenário internacional de demanda de commodities pode mudar; (e) o quinto é a possibilidade da eleição de Trump nos EUA que geraria um efeito catalizador mundial, também no Brasil, e vitórias da extrema-direita nas próximas eleições europeias, além de uma agudização dos conflitos no sistema internacional com a China.
10. Por último, quando pensamos o futuro, estamos diante do problema do papel dos indivíduos na história. A situação inelegível de Bolsonaro diminui, mas não anula o papel que terá no Brasil até 2026. Seria muito menor se viesse a ser condenado e preso. Os três cenários esboçados – favoritismo de Lula, eleição em disputa acirrada ou favoritismo da oposição de extrema-direita- dependem de tantos fatores, que não é possível fazer um cálculo de probabilidades com antecedência. Uma análise marxista não pode perder o sentido das proporções. As lideranças fazem representação de forças sociais. Mas seria uma superficialidade imperdoável diminuir o protagonismo de Bolsonaro: a presença dele fez diferença. A extrema-direita teria se transformado em um movimento político, social e cultural com influência de massas, mesmo sem Bolsonaro, depois de 2016? Trata-se de um contrafactual, mas a hipótese mais provável é que sim. O neofascismo é uma corrente internacional. Não se pode explicar como uma coincidência a força simultânea de Donald Trump nos EUA, de Marine Le Pen na França, de Giorgia Meloni na Itália, de Santiago Abascal no Estado Espanhol e agora de André Ventura em Portugal e Javier Milei na Argentina. As condições objetivas impulsionaram uma fração da classe dominante a abraçar uma estratégia liberal de choque frontal. Mas a forma concreta que assumiu o neofascismo dependeu muito do carisma de Bolsonaro. Bolsonaro é tosco, bruto, intempestivo, mas não é um idiota. Um imbecil não se elege à presidência em um país complexo como o Brasil. Bolsonaro não tem muita instrução ou repertório, mas é esperto, astuto, ardiloso, velhaco. Nenhum energúmeno conquista a posição de liderança que ainda usufrui hoje, depois de tantas denúncias: desprezo pelos riscos de vida de milhões, apropriação pessoal de joias da presidência, conspiração militar golpista, etc. A chave de explicação de seu papel é o desconcertante carisma que impulsiona uma identificação apaixonada. Ele uniu a representação dos interesses da fração burguesa do agronegócio negacionista do aquecimento global, com o ressentimento dos militares e das polícias, o rancor das camadas médias com a desconfiança popular manipulada pelas empresas-igrejas neopentecostais, o reacionarismo saudoso da ditadura militar com o machismo, racismo, e a homofobia. Não precisou dos cabelos desgrenhados e da retórica anticasta anarco-capitalista de Milei, nem do nacional-imperialismo xenófobo de Trump, nem da fúria islamofóbica de Le Pen. Se viesse a ser condenado e preso sua autoridade irá diminuir.
1 A reprovação ao governo Lula (PT) na cidade de São Paulo cresceu 9 pontos em um intervalo de pouco mais de seis meses, e sua aprovação caiu 7. No total, dizem considerar a gestão do petista ótima ou boa 38% dos entrevistados. Outros 28% a avaliam como regular, e 34% como péssima. Consulta em 18/03/2024.
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