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MUNDO

Estrangulada por Israel há décadas, o futuro de Gaza deve começar com a livre circulação

Por Noa Galili, com tradução de Waldo Mermelstein, do Esquerda Online
Attia Muhammed/Flash90

Trabalhadores palestinos na passagem de Erez, em Beit Hanoun, no norte da Faixa de Gaza, esperando para entrar em Israel para trabalhar, 13 de março de 2022.

Nos últimos meses, a atenção mediática internacional tem sido justificadamente dedicada ao alcance sem precedentes da morte e destruição provocadas pelos militares israelenses na Faixa de Gaza. Os boletins diários de notícias estão cada vez mais preocupados com a privação de alimentos, água, medicamentos e outros suprimentos básicos resultante da intensificação do cerco que Israel impôs logo após os ataques liderados pelo Hamas em 7 de outubro.

No entanto, grande parte desse foco tende a ver as atuais políticas de restrição e privação de forma isolada. Trata-se de um erro profundo.

De fato, o domínio israelense sobre os palestinos em Gaza foi gradualmente reforçado ao longo de décadas, como meio de controle, pressão e punição coletiva. Mesmo em tempos “comuns”, entre suas ofensivas militares periódicas na Faixa, as amplas restrições de Israel à circulação de pessoas e bens há muito prejudicam minam  as condições básicas de vida em Gaza e violam outros direitos humanos que dependem dela – como os direitos à vida familiar, à educação, ao tratamento médico e à busca dos meios de subsistência.

A situação catastrófica hoje deve ser compreendida no contexto das políticas de Israel anteriores a 7 de outubro, inclusive em relação à liberdade de movimento dos palestinos entre Gaza, Israel e a Cisjordânia. Ao longo de mais de meio século, a violência da ocupação em curso de Israel, os repetidos ataques militares e a “política de separação” entre Gaza e a Cisjordânia criaram um pedaço de terra destruído e ensanguentado. Essas políticas forjaram e mantiveram um desastre humanitário; separam os palestinos em Gaza dos de Israel e da Cisjordânia; e promovem os objetivos políticos e demográficos ilegítimos de Israel.

O nascimento de um regime de autorização para circular

A Faixa de Gaza nunca foi concebida para existir como uma unidade territorial distinta. Não há recursos suficientes na sua pequena área para apoiar uma economia independente e ,muito menos, a economia de 2,3 milhões de pessoas que estão privadas do direito básico de circular livremente. Mas, durante décadas, as restrições israelenses à circulação de pessoas e bens levaram à deterioração das condições de vida na Faixa de Gaza e a isolaram do mundo exterior.

Em 1948, durante a Nakba, aproximadamente 200.000 refugiados foram forçados a fugir para o que se tornou a Faixa de Gaza. Isso quase quadruplicou a população da área, que até então estava concentrada principalmente na antiga cidade de Gaza. A crise humanitária provocada por este súbito afluxo de refugiados persiste até hoje.

Crianças palestinas em um campo de refugiados em Gaza, 1º de novembro de 1956. (Pridan Moshe/GPO)

Desde que ocupou a Cisjordânia e Gaza em 1967, os militares de Israel desenvolveram um complexo sistema de regras e punições para controlar o movimento dos milhões de palestinos que vivem nessas áreas, bem como daqueles que vivem dentro das fronteiras de Israel em 1948. Inicialmente, Israel instituiu uma “visto geral para sair”, permitindo que os palestinos viajassem relativamente livremente entre Israel e o território ocupado, mas isso foi cancelado em 1991.

Em seu lugar, Israel começou a exigir que os palestinos obtivessem autorizações de viagem individuais das autoridades israelenses, estabelecendo assim o regime de visto através do qual continuou a restringir o movimento e o acesso palestino até hoje. Previsivelmente, isso levou a uma diminuição constante no movimento de e para Gaza.

Em 1993, durante o processo de Oslo, Israel decretou pela primeira vez um fechamento geral de semanas no território ocupado, bloqueando todas as viagens, independentemente de seu propósito. Pouco depois, começou a construir uma cerca elétrica e segmentos de um muro de concreto ao redor da Faixa de Gaza.

Estas tendências agravaram-se após o fracasso das negociações de Camp David e o início da Segunda Intifada no final de 2000. Nos meses anteriores ao início da Intifada, mais de 26.000 moradores de Gaza tinham visto para trabalhar em Israel, registrando cerca de 500.000 saídas para Israel através da Passagem de Erez a cada mês. Depois que a Intifada eclodiu, Israel revogou e cancelou inúmeros vistos para viagem – não apenas como um método de combater ameaças à segurança, mas como um meio de punição coletiva.

No primeiro ano da Segunda Intifada, a Travessia de Erez foi fechada aos palestinos em 72% do tempo. No final de 2000, o número de residentes com autorizações de trabalho israelenses caiu para menos de 900.

Trabalhadores palestinos se reúnem na sala de espera para entrar na reaberta Passagem de Erez para Israel, depois que Israel encerrou a proibição de trabalhadores de Gaza, na Cidade de Gaza, em 28 de setembro de 2023. (Atia Mohammed/Flash90)

A ilusão do “desengajamento”

Desde a implementação do “plano de retirada” de Israel no final do verão de 2005, muitos israelenses e internacionais acreditaram falsamente que Israel tinha renunciado seu controle sobre Gaza, livrando-se assim das responsabilidades que devia aos moradores da Faixa como potência ocupante.

Mas, apesar de retirar suas tropas e cidadãos de dentro do enclave, Israel continuou a exercer controle sobre quase todos os aspectos da vida em Gaza em virtude de suas restrições contínuas à circulação de pessoas e bens dentro e fora da Faixa.

Após a vitória do Hamas nas eleições parlamentares palestinas em 2006, Israel endureceu ainda mais essas restrições, impondo um fechamento total. A entrada de mercadorias em Gaza foi limitada ao que Israel definiu como o “mínimo humanitário”. A saída de mercadorias da Faixa para serem comercializadas em Israel e na Cisjordânia – para a qual Gaza até então exportava 85% de seus produtos – era totalmente proibida. A entrada de combustível foi substancialmente reduzida. E o movimento de pessoas para dentro e para fora de Gaza foi virtualmente interrompido.

Em setembro de 2007, poucos meses depois que o Hamas assumiu o controle exclusivo da Faixa, o gabinete israelense declarou Gaza um “território hostil”. A partir daí, Israel tem insistido que não tem obrigação de permitir sequer um acesso humanitário mínimo à Faixa de Gaza — e que qualquer decisão nesse sentido é tomada ex gratia (graciosamente), não como resultado de qualquer obrigação jurídica.

Desde então, Israel impôs amplas restrições de viagem que bloquearam o acesso dos residentes de Gaza a emprego, educação e tratamento médico, bem como a seus familiares que vivem em Israel, na Cisjordânia e no exterior. Israel também restringiu severamente a entrada de mercadorias em Gaza.

Caminhões com ajuda humanitária chegam ao lado palestino do posto fronteiriço de Kerem Shalom, no sul da Faixa de Gaza, em 18 de dezembro de 2023. (Abed Rahim Khatib/Flash90)

Em 2012, uma prolongada batalha legal da Gisha, organização de direitos humanos onde trabalho, levou o Ministério da Defesa de Israel a revelar um documento intitulado “Consumo de alimentos na Faixa de Gaza – Linhas Vermelhas”, que incluía informações sobre a política de restrição à entrada de alimentos em Gaza entre 2007 e 2010. O documento continha, entre outras coisas, cálculos da quantidade de calorias permitidas para entrar em Gaza por morador.

Mesmo depois de se retratar dessa política, Israel continuou a proibir a entrada de inúmeros itens e matérias-primas que definiu como de “uso duplo” – o que significa que Israel os considera como tendo usos civis e militares. Isso efetivamente baniu muitos bens que são essenciais para o desenvolvimento da infraestrutura civil e o avanço da economia local, como fertilizantes, betoneiras e qualquer tipo de maquinário pesado. Israel também continuou a determinar quais produtos poderiam sair de Gaza, e onde poderiam ser vendidos, quanto deles e quando.

Além disso, décadas após a assinatura dos Acordos de Oslo, que incluíram um acordo para passar o controle sobre o registro da população palestina para a Autoridade Palestina, Israel continua a controlar o registro na prática. Como tal, mantém o poder de designar os palestinos como residentes de Gaza ou da Cisjordânia – ditando onde eles podem viver, trabalhar e constituir uma família.

O controle contínuo de Israel sobre Gaza também se estende ao território marítimo e ao espaço aéreo da Faixa. Contrariamente aos acordos alcançados nos Acordos de Oslo, Israel proibiu a construção de um porto marítimo e impediu a reconstrução do aeroporto internacional de Gaza, destruído  pelos bombardeios israelenses em 2001. Bloqueou o espaço aéreo de Gaza e aprofundou o controle sobre suas telecomunicações, limitando as frequências disponíveis para privar os palestinos de tecnologias de terceira e quarta geração. Israel também impõe violentamente uma “zona de pesca” de 10 a 15 milhas náuticas da costa de Gaza, e estabeleceu uma “zona tampão” ao longo da barreira de separação, restringindo o acesso à área onde a maioria das terras agrícolas da Faixa está localizada.

Portanto, apesar das persistentes alegações em contrário, o controle contínuo de Israel equivale efetivamente a uma continuação da ocupação – e tal controle implica obrigações morais e legais para com a população civil. Mas, em vez de reconhecer seu dever fundamental de proteger os direitos humanos dos palestinos, Israel sempre rejeitou sua responsabilidade e optou por punições coletivas e guerra econômica, violando o direito internacional.

Veículos militares israelenses vistos perto da cerca israelense-Gaza, 28 de fevereiro de 2024. (Tomer Neuberg/Flash90)

Isolamento, separação e fragmentação

O cerco de Gaza sempre fez parte de um conjunto mais amplo de restrições de movimento impostas como parte da “política de separação” de Israel, cujo objetivo é isolar e separar o território da Cisjordânia e de Israel. Israel justificou a política como uma necessidade de segurança, mas suas amplas restrições a viagens e bens não podem ser explicadas apenas pela segurança.

Em vez disso, essas restrições são impostas para promover os objetivos políticos e demográficos ilegítimos de Israel: minar as instituições nacionais que deveriam sustentar um Estado palestino, fragmentar a sociedade palestina e sua economia, promover a anexação de fato da Cisjordânia e limitar o acesso dos palestinos a ela e manter o controle israelense sobre a região como um todo.

Como resultado da política, a economia palestina foi efetivamente dividida entre Gaza e a Cisjordânia. Estudantes de Gaza foram impedidos de estudar em universidades da Cisjordânia. Equipes médicas, acadêmicos, funcionários de organizações da sociedade civil e profissionais de todas as áreas não puderam se deslocar entre as duas áreas, nem mesmo para reuniões ou treinamentos. As famílias divididas entre Gaza e a Cisjordânia não podiam reunir-se, exceto nas mais críticas circunstâncias.

Nos últimos anos, os poucos palestinos que obtiveram autorizações para sair via Erez pertenciam a uma ou mais de três categorias: comerciantes ou trabalhadores (sujeitos a cotas estreitas ditadas por Israel), pacientes (e seus acompanhantes) que precisam de tratamento médico urgente que não está disponível em Gaza, e um punhado de outros casos definidos como “humanitários e excepcionais”, ” como pessoas que procuram ir a um casamento, visitar um parente doente ou ir a um funeral – mas apenas de um membro da família de primeiro grau.

As viagens pelo Egito, outro vizinho de Gaza, também foram restringidas ao longo dos anos, assim como o acesso a mercadorias. O Egito também tem obrigações para com os palestinos em Gaza decorrentes de sua proximidade física, incluindo facilitar a entrada de acesso humanitário e, como todos os outros países do mundo, prevenir ativamente violações do direito internacional. Mas, ao contrário de Israel, o Egito não deve obrigações aos palestinos sob a lei de ocupação, nem controla o acesso dos moradores de Gaza às outras partes dos territórios ocupados.

As tentativas de desviar a responsabilidade para o Egito – uma figura de linguagem comum e de longa data no discurso israelense – fazem parte de um projeto mais amplo de obscurecer e fugir da própria responsabilidade de Israel para com os moradores de Gaza. Independentemente das políticas do Egito em relação à Faixa, Israel tem o dever, no mínimo, de permitir o acesso a tudo o que é necessário para garantir condições normais de vida para toda a população sob seu controle.

Cinco meses após a guerra mais sangrenta e destrutiva que Gaza já conheceu, é difícil, mas de vital importância, lembrar que qualquer plano “day after” deve incluir o acesso entre Gaza, Israel, Cisjordânia e o resto do mundo. Voltar ao status quo ante – uma vida de fechamentos, separações, permissões e guerras intermináveis – não é uma opção.

As ameaças israelenses de cortar Gaza “permanentemente” podem decorrer do medo, mas isso não tornará ninguém mais seguro. O futuro de todas as pessoas que vivem entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo depende da liberdade e dos direitos humanos, incluindo a liberdade de circulação, para todos.

Noa Galili promove relações governamentais, pesquisa e advocacia no Gisha – Legal Center for Freedom of Movement.
Texto original em +972 Magazine.