A Cultura, como forma de manifestação humana, em suas diversas faces cumpre um papel fundamental na construção democrática. A partir do respeito e da valorização dos(as) trabalhadores(as) da cultura é que o direito ao acesso às fontes culturais nacional se materializa. Assim, o Estado, tal qual preconiza nossa constituição, tem o dever de garantir a todos o pleno exercício deste direito humano, difundindo suas manifestações culturais em suas diversidades.
Foram muitos os ataques à cultura nos governos federais anteriores, em especial no de Bolsonaro, que expressam uma forte ofensiva à liberdade da arte. Vale lembrar que uma das primeiras medidas tomadas nesse trágico governo foi de acabar com a pasta logo nas medidas da equipe de transição em novembro e 2018 (1), a reduzindo a secretaria. Muitos que estiveram à frente da pasta assumiram um perfil ideológico de “caça” ao que chamaram de “marxismo cultural”. Além disso, assistimos declarações truculentas, caos refletidos na estagnação das políticas que estavam em desenvolvimento no país, dentre outros retrocessos.
Foram anos de lacunas substanciais que, junto com a pandemia da Covid-19, levaram muitos artistas à marginalização e precarização do trabalho. Apesar dos ataques, foram muitas as ocupações e outras iniciativas de resistência no âmbito da cultura, incluindo pressões e mobilizações por aprovações de leis de incentivo à cultura fundamentais como a Aldir Blanc e Paulo Gustavo.
Finalmente, após 10 anos de espera, foi realizada a 4ª Conferência Nacional de Cultura, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães em Brasília-DF. O evento ocorreu entre 04 e 08 de março de 2024 após inúmeras Conferências Municipais e Estaduais, que elegeram seus delegados e delegadas. O tema da Conferência foi “Democracia e Direito à Cultura” e apresentou seis eixos de discussão, sendo eleitas, ao final, 30 propostas prioritárias que darão direcionamento à construção do Plano Nacional de Cultura (PNC) durante o ano de 2024.
Os eixos atuaram de forma transversal às Setoriais e tiveram os seguintes recortes: Eixo 1: Institucionalização, Marcos Legais e Sistema Nacional de Cultura; Eixo 2: Democratização do acesso à cultura e Participação Social; Eixo 3: Identidade, Patrimônio e Memória; Eixo 4: Diversidade Cultural e Transversalidades de Gênero, Raça e Acessibilidade na Política Cultural; Eixo 5: Economia Criativa, Trabalho, Renda e Sustentabilidade; e Eixo 6: Direito às Artes e Linguagens Digitais.
Nesses cinco dias de Conferência foi impactante presenciar (2) a movimentação de cerca de 5 mil pessoas – entre as delegações, pessoas convidadas e observadoras, além da equipe de apoio e técnica – que representou uma diversidade étnica, racial, de gênero, de sexualidade e religiosa impressionante. Esse pareceu ser o primeiro passo para uma construção efetivamente democrática das diretrizes que irão compor o PNC.
Foi possível observar que as propostas votadas pelas pessoas delegadas tiveram a preocupação de ser, ao máximo, includentes, não deixando de citar grupos minoritários e periféricos, povos indígenas e originários, povos e comunidades tradicionais, agricultores familiares, pessoas negras, quilombolas, ciganas, comunidades ribeirinhas, nômades, população fronteiriça, refugiados, pessoas migrantes, apátridas, mulheres, população LGBTQIAPN+, pessoas trans e não binárias, pessoas com deficiência, neurodivergentes, pessoas de religião de matriz africana, culturas de matrizes africanas, cultura de rua, hip hop, reggae, culturas periféricas, cultura da capoeira e outras expressões culturais.
Foi ainda de grande repercussão e aclamação nas discussões plenárias a questão previdenciária e sobre direitos trabalhistas das/dos chamadas/os “fazedoras e fazedores de cultura”. A intermitência e a sazonalidade foram apontadas como um ponto a ser considerado por meio de um sistema de previdência e seguridade social próprio à área cultural.
Um ponto sensível destacado foi a aplicação dos recursos financeiros e o planejamento junto a municípios e estados, a forma de gerir, fiscalizar e avaliar a gestão desses recursos. Uma questão fundamental levantada por alguns delegados e delegadas presentes, que vale mencionar, são a necessidade de gestores capacitados nas secretarias de cultura e de concursos públicos para setores, órgãos e instituições públicas da cultura. Isso vale a todas as esferas governamentais, onde se espera haver um plano de carreira para os/as servidores/as, única forma de manter um corpo técnico capacitado e permanente.
Outro ponto importante de notar foi a ênfase dada aos e às profissionais da área técnica, que reclamam por maior reconhecimento, formação, melhoria das condições de trabalho e de serem admitidos/as também como criadores/as.
No campo da cultura há uma tensão entre um desenvolvimento cultural voltado ao mercado e outro que pensa a cultura de forma mais ampla, voltada aos territórios e concebida de forma sustentável. A Conferência, de forma geral, apontou para um caminho que preza por um desenvolvimento baseado na sustentabilidade na perspectiva do bem viver, o que muito nos anima.
Resta-nos saber se teremos a articulação política necessária em diálogo com os demais Ministérios e Governo, já que seria impraticável uma situação distinta entre a classe trabalhadora da cultura e demais trabalhadores e trabalhadoras brasileiros/as. Impossível criar um oásis no meio cultural!
Foram cinco dias de muita festa, com apresentações de grupos culturais e artistas de diversas áreas por todo o dia, além de shows no Festival da Cultura que acontecia em paralelo. A plenária final comemorou muito a aprovação da criação de Fundos para os setores culturais e de Agências que possam gerir esses Fundos. A cultura voltou, como sempre afirma a Ministra Margareth Menezes, porém sabemos que o jogo nunca está ganho, e a vigilância e o trabalho são permanentes. Ademais, estamos ainda longe de atingir as metas propostas, de uma gestão cultural efetivamente democrática e que oportunize o Direito à Cultura de forma ampla, geral e irrestrita.
* Luciana Requião é Musicista-Docente-Pesquisadora sobre o Trabalho na Música, Professora da UFF e Assessora da Diretoria de Políticas para Trabalhadores da Cultura (DTRAC) do MinC e Diretora do Trabalho no Sindicato dos Músicos do Estado do Rio de Janeiro na Gestão 2023-2026.
** Micael Carvalho é Artista-Docente-Pesquisador da Música e Professor da UFMA, lotado no Colégio Universitário (COLUN).
Notas
1 Extinto pela Medida Provisória nº 870/2019.
2 Luciana, como assessora da DTRAC, teve a oportunidade de acompanhar a Conferência e dar suporte, em particular, ao Eixo 5.
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