Na última segunda-feira (4 de março de 2024) o PLP 12/2024, que regulamenta a profissão de motoristas por aplicativo, foi assinado pelo governo federal e por representantes de empresas do setor e dos trabalhadores, fruto de um consenso entre as partes que o assinaram. O projeto agora vai para apreciação da câmara federal, que deve avaliar o seu conteúdo em até 45 dias. Importante destacarmos que paralelamente à tramitação do PLP, o Supremo Tribunal Federal (STF) está se debruçando sobre o tema da existência ou não de vínculo trabalhista entre as empresas e os motoristas, sendo que nos próximos dias a corte dará sua versão final sobre a questão, que deve uniformizar os julgamento dos milhares processos sobre o tema existente em território nacional.
Em que pese o slogan “autônomo com direitos” ser a principal agitação no evento de lançamento do projeto, uma análise mais minuciosa do seu conteúdo indica uma chancela do modelo de trabalho ofertado pelas empresas, representando pouca autonomia aos trabalhadores e pouquíssimos avanços na garantia de direito. A regulação dos trabalho dos motoristas e entregadores por aplicativo foi uma promessa de campanha do governo Lula. Lula e Marinho desde o período eleitoral tinham a correta preocupação da inclusão dos trabalhadores plataformizados na seguridade social, bem como de limitar as longas jornadas de trabalho e as baixas remunerações a que estes trabalhadores são submetidos e, para se debruçar sobre estes temas, no início do mandato foi criada uma mesa tripartite (com representantes do governo federal, das empresas do setor e dos trabalhadores) para construção de uma proposta. O trabalho desta mesa foi bastante duro desde o começo, com questionamentos até mesmo sobre quem deveria representar os trabalhadores neste espaço, e a postura dos representantes das empresas foi de bastante truculência para que seus interesses fossem preservados. Tal truculência saiu vitoriosa ao final do processo.
Ponto-chave para pensarmos a regulamentação dos trabalhos plataformizados é uma análise do caráter da relação estabelecida entre trabalhadores e corporações, se existe um vínculo trabalhista ou comercial entre as partes. Diversas pesquisas realizadas com esses trabalhadores já demonstraram as práticas de subordinação desempenhadas pelas empresas contra os trabalhadores, além da existência de todos os elementos que expressam a existência de um vínculo empregatício, sendo este reconhecimento o que possibilitaria a garantia dos direitos trabalhistas a esses profissionais. Assim, diversos pesquisadores da área, dentre os quais me incluo, estabelecem que o reconhecimento que a existência de uma relação trabalhista deveria ser um ponto de partida para pensar uma regulação desses trabalhos.
Entretanto, o reconhecimento de tal vínculo é visto com desconfiança pela maior parte dos trabalhadores, que defendem que seu enquadramento deveriam ser enquanto trabalhadores autônomos. Tal visão é desenvolvida principalmente por causa de dois motivos:
1) o fato de diversos empregos abarcados pela CLT receberem uma remuneração mensal menor que o dos motoristas, o que faz com eles vejam como vantajoso se manterem no atual enquadramento e 2) o medo de que o estabelecimento do vínculo empregatício retiraria parte da autonomia que possuem para organizarem suas rotinas de trabalho, sobretudo obrigando-os a aceitar todas as corridas ofertadas, a trabalharem nos horários estabelecidos pelas empresas e serem obrigado a escolherem apenas uma plataforma para prestarem serviços. Mais adiante faremos uma breve análise da repercussão do PL entre os motoristas, porém vale pontuarmos que todas essas questões não são obrigatoriedades previstas nas leis trabalhistas, sendo possível termos trabalhos abarcados com CLT e que mantenham essas características.
Em que pese a divergência existente, o grande problema do Projeto de Lei assinado é que ele não garante nem o vínculo trabalhista e nem a autonomia dos trabalhadores, e por isso está recebendo críticas de todos os lados.
Os principais pontos do Projeto de lei
a) A autonomia dentro da não autonomia
O projeto de lei cria a categoria “trabalhador autônomo por plataforma”, que se soma a uma infinidade de tipos de vínculos previstos nas leis trabalhistas pós-Reforma Trabalhista de 2017, como o trabalho intermitente e o autônomo exclusivo. Na prática, a constituição de novas categorias profissionais serve para dificultar o acesso aos direitos trabalhistas, criando trabalhadores que não são reconhecidos enquanto tal e que, portanto, podem ter menos direitos.
Esta nova categoria profissional terá autonomia para escolherem quais plataformas irão utilizar – bem como o fato de poderem utilizar mais de uma ao mesmo tempo – e a inexistência de quaisquer exigências relativas à jornada de trabalho, como desejado pelos motoristas. Porém, dentro desta autonomia, o projeto também garante que as empresas podem bloquear e desligar trabalhadores unilateralmente caso infrinjam seus termos de uso; utilizarem sistemas de acompanhamento em tempo real da execução dos serviços e sistemas de avaliação dos trabalhadores e usuários e é de ser de sua responsabilidade a determinação do preço do serviço. Ou seja, é mantida uma situação de uma autonomia subordinada, com os trabalhadores ficando constantemente vigiados e com a possibilidade de serem punidos caso descumpram qualquer recomendação empresarial.
b) A remuneração mínima dos trabalhadores
De acordo com o projeto, ficará estabelecido por R$32,10 o valor mínimo por hora de trabalho, sendo que este valor é composto por R$ 8,03 referente ao pagamento do trabalhador (valor este igual ao valor-hora do salário mínimo nacional) e por R$ 24,07 de ressarcimento dos custos do trabalhador para prestarem o serviço (gastos com gasolina, desgaste do carro, planos de internet etc). Ou seja, tirando os custos que são repassados aos trabalhadores nesta modalidade de trabalho, os motoristas deveriam receber pelo menos o valor-hora do salário mínimo. Porém, isto na prática não irá ocorrer, pois só será contado como tempo de trabalho o período efetivamente trabalhado, isto é, aquele gasto pelo trabalhador realizando uma corrida, e não todo o período de tempo em que o motorista está disponível para a empresa, sendo possível, por exemplo, um motorista ficar nas ruas por 8 horas e receber somente por 4 horas de trabalho.
O projeto também prevê que o valor de R$ 8,03 será reajustado anualmente na mesma quantia do aumento do valor-hora do salário mínimo, porém não é previsto a correção inflacionária do valor destinado a cobrir os custos do trabalho, fazendo com que eventuais aumentos da gasolina ou de outros gastos sejam repassados aos trabalhadores. Além disso, segundo relato de motoristas, os que trabalham nos grandes centros urbanos já recebem por hora mais do que R$32,10, com este valor não representando uma melhoria para eles.
c) A jornada de trabalho
O projeto de lei prevê uma jornada máxima de trabalho diária de 12 horas, jornada está superior ao limite previsto em nossa constituição, e que pode ocorrer 7 dias por semana. A escolha por uma jornada tão longa de trabalho deriva do modelo de remuneração adotado, já que para que o trabalhador receba um salário mínimo no fim do mês, ele deve necessariamente fazer uma jornada superior ao previsto na constituição.
O limite de jornada foi um dos pontos mais destacados pelos defensores do projeto, porém a própria Uber já impedia que seus motoristas ficassem trabalhando mais de 12 horas por dia, obrigando-os a deslogarem do aplicativo quando este período de trabalho é atingido devido aos riscos contra a saúde dos trabalhadores. Assim, mais uma vez, o projeto não trouxe nenhuma novidade para os motoristas.
d) A inclusão nos direitos previdenciários
A maior novidade deste projeto é a inclusão dos motoristas no regime geral da previdência social, que garante aposentadoria, auxílio saúde, licença-maternidade e pensão em caso de morte. Para tanto, as empresas serão obrigadas a contribuir com uma alíquota de 20% e os trabalhadores de 7,5%. Ainda que seja um importante avanço para o conjunto desses trabalhadores, a inclusão na previdência social já poderia ser realizada via MEI pelos motoristas. De todo modo, se a inclusão for aprovada, os trabalhadores terão um seguro social para cobrir os riscos decorrentes do trabalho e a garantia do direito à aposentadoria, uma importante medida para garantir algum grau de segurança a esses profissionais.
e) Os direitos sindicais
Outra novidade do projeto de lei é a garantia dos direitos sindicais aos trabalhadores, que passarão a poder ser representados por sindicatos nacionais, com a possibilidade de estabelecerem acordos coletivos. Ainda que o direito à livre associação e de estabelecimento de entidades representativas dos trabalhadores já fosse previsto em nossa constituição, as empresas proibiam que isso fosse realizado pelos motoristas. Ou seja, tal medida representa, na prática, que um direito já existente na nossa constituição será cumprido.
Atualmente, além de proibirem o estabelecimento de sindicato pelos trabalhadores, diversas práticas anti-sindicais já foram relatadas contra as empresas plataformizadas, como a manipulação do valor das tarifas em dias de manifestações e a realização de bloqueios branco (quando o trabalhador para de receber pedidos de trabalho ainda que permanecesse cadastrado na plataforma) contra lideranças. Além disso, o próprio designer dos aplicativos impede que os trabalhadores conversem entre si, uma tentativa de diminuir as práticas de solidariedade no interior da categoria e aumentar o grau de isolamento dos trabalhadores. Assim, fomentar práticas coletivas com esses profissionais é uma importante medida para ir na contramão do que as empresas defendem, ainda que os sindicatos sejam vistos com bastante desconfiança pelos motoristas, como demonstraremos.
A resposta dos motoristas ao projeto de lei
Como pontuado anteriormente, qualquer medida para regulamentar o setor é vista com bastante desconfiança pelos motoristas, que acreditam que isso impactará a autonomia que valorizam em seu trabalho, aumentando as obrigações que teriam com as empresas. Deste modo, a criação deste projeto de lei permeou inúmeros desafios, que poderiam ser minimizados caso o governo optasse por primeiro ouvir os trabalhadores e suas demandas ao invés de estabelecer de partida uma mesa de negociação com representantes das corporações.
Ainda que o diálogo com a categoria seja difícil, os motoristas organizam há pelo menos cinco anos manifestações por melhorias em suas condições de trabalho. No último ano, as manifestações dos trabalhadores teve as seguintes pautas: 1. valorização do trabalho (tarifa mínima de R$10,00 por corrida e de R$2,00 por km rodado); 2. Aumento da segurança (verificação mais rigoroso dos passageiros para evitar contas fakes; diminuir o tempo que os motoristas são obrigados a esperar os passageiros antes de iniciar viagem; melhorias nos mecanismos de segurança feito pelas plataformas em cada corrida); 3. maior transparência dos dados em posse das plataformas (em especial sobre os números de casos de violência e assédios) e 4. melhoria nos atendimentos das plataformas, com canais mais eficientes e que funcionem 24 horas. Nenhum desses pontos foi abarcado satisfatoriamente no projeto de lei e ter dialogado com as pautas já levantadas pelos trabalhadores poderia ser um primeiro passo para que temas mais de fundo pudessem ser debatidos com a categoria, como a questão do vínculo trabalhista, os aspectos positivos da associação sindical, as consequências do gerenciamento algorítmico das para restringir a autonomia dos trabalhadores, entre outros temas.
Com a ausência deste diálogo, a grande maioria dos trabalhadores estão se posicionando contrariamente ao projeto de lei. No geral, a crítica tem dois motivos: 1. a não garantia de um aumento salarial real aos trabalhadores e 2. a compreensão de que o projeto servirá apenas como uma forma para o governo e as centrais sindicais taxarem o serviço. Como resposta, os motoristas se mobilizaram para ocupar a enquete aberta no site da câmara federal, que tem como resultado parcial a desaprovação do projeto por 98% dos respondentes, e estão organizando para o fim do mês uma manifestação nacional da categoria, que terá como pauta principal a recusa do projeto de lei e a tarifa mínima de R$10,00 por corrida e de R$2,00 por km rodado.
Ainda que discordemos de parte das críticas, ouvir esses trabalhadores se faz importante para não serem formulados projetos de regulamentação de “cima para baixo”, que desconsidere os pontos valorizados pelos trabalhadores sobre a sua condição. Aumentar os canais de diálogo com esses trabalhadores e fomentar na categoria mecanismos de auto-organização são medidas urgentes para que possamos combater o isolamento desejado pelas empresas e avançarmos na conquista de direitos.
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