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MUNDO

Em Caxemira, como na Palestina, um compromisso decolonial com a justiça é crucial

Devido a questões de segurança para o autor, este artigo foi publicado anonimamente

Em 11 de dezembro de 2023, a Suprema Corte indiana declarou seu veredito sobre a legalidade da revogação pelo governo do «estatuto especial» de Jammu e Caxemira (J&K). Em 5 de agosto de 2019, o governo indiano tirou de operação o artigo 370 de sua Constituição, que anteriormente dava uma aparência de autonomia à região após uma contestada adesão à Índia em 1947. A turma de cinco juízes da Suprema Corte confirmou por unanimidade a decisão do governo, observando que J&K não manteve nenhuma soberania quando aderiu à Índia.

Três dias antes desta “esperada” decisão, os Estados Unidos vetaram uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) para um cessar-fogo humanitário imediato na Palestina, e o Reino Unido se absteve. Uma única mão erguida longe dos corpos, ruínas e escombros em Gaza determinou que os palestinos, que muitas vezes foram referidos como menos humanos, continuariam a ser bombardeados.

Em outros processo em relação à Caxemira, a Suprema Corte indiana confirmou aquilo que os caxemiras sempre souberam – que a “desonestidade generalizada” é simbólica da conduta judicial da Índia dentro e sobre a Caxemira. À medida em que a retórica oca sobre a paz duradoura continua, temos de perguntar que vias de justiça permanecem para os povos ocupados – de Caxemira à Palestina!  Mesmo que essas guerras – sobre corpos, casas, narrativas e memórias – aconteçam “em outros lugares”, torna-se crucial identificar a cumplicidade de múltiplas instituições e mecanismos de “justiça” globalmente em infligir injustiças.

Longa história de violência

Após o veredicto da Suprema Corte (SC) sobre a Caxemira, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, classificou o episódio como uma “declaração retumbante de esperança, progresso e unidade para nossas irmãs e irmãos”. Essa narrativa faz parte da política do Estado indiano de implantar os tropos do desenvolvimento para encobrir a violência.

Mesmo em agosto de 2019, quando a Caxemira testemunhou um toque de recolher e o desligamento de internet mais longo do mundo, foi celebrado na Índia em nome do desenvolvimento, do empoderamento das mulheres e dos direitos das minorias sexuais. É um reflexo de Complexo do Salvador1 e Pinkwashing2, enquanto o Estado se projeta como protetor das mulheres e das minorias sexuais, contra os perigosos e selvagens homens muçulmanos da Caxemira.

Quando uma luta popular armada pela liberdade (Azaadi no léxico local) irrompeu no final da década de 1980 contra o domínio indiano na Caxemira, a resposta da Índia foi brutal tática de contra-insurgência. Grupos de direitos humanos documentaram que assassinatos generalizados, prisões, uso de tortura, violência sexual, desaparecimentos forçados marcam essa fase. No início dos anos 2000, o estado estava mudando sua linguagem para a de paz e diálogo, nas suas tentativas de “integração” da Caxemira, mesmo quando a intensa militarização continuava.

Entre 2008 e 2010, mais de cem meninos foram mortos quando protestos de massas irromperam na região. As pessoas referiram-se amplamente a esta fase como a segunda de Intifada da Caxemira – tomando emprestado o termo da resistência palestina, como forma de sacudir o império que enfrentava. Em 2016, Caxemira testemunhou o “Ano dos olhos mortos” já que centenas de pessoas ficaram total ou parcialmente cegas pelo uso de armas de pellet “não letais” pelo Estado. As formas espetaculares e cotidianas de violência são reveladoras do enquadramento de um corpo caxemira como do tipo próprio para ser morto no imaginário indiano e como ele se torna um local para reproduzir a soberania da Índia.

Nos últimos anos, houve um silenciamento absoluto de quaisquer narrativas em torno do direito à autodeterminação. Jornalistas, defensores dos direitos humanos e acadêmicos foram presos por reportar violações de direitos humanos ou ter opiniões contrárias às narrativas do Estado. Tais incidentes tiveram um efeito aterrador sobre a liberdade de expressão. De muitas maneiras, as formas de violência refletem experimentos do “Laboratório da Palestina” trazidos para a Caxemira através de um complexo militar-industrial-vigilância.

As falhas dos mecanismos jurídicos “domésticos” e internacionais

A (des)ordem legal indiana na Caxemira impôs, ao longo das décadas, uma emergência permanente na região marcada por “normalização dos decretos de guerra.” Leis como a de Poderes Especiais das Forças adas (AFSPA)e a Lei de Prevenção de Atividades Ilícitas (UAPA)permitiram, respectivamente, poderes excessivos e impunidade às forças armadas para resultar em longos anos de encarceramento sob acusações vagas de terrorismo utilizadas contra dissidentes.

Nos casos em que as pessoas recorreram aos tribunais, foram anos de processos legais exaustivos, raramente resultando na condenação de pessoal das forças indianas acusadas de violência. Em uma audiência judicial de 2014 de um caso amplamente relatado de violência sexual em massa pelas forças indianas em 1991, o advogado do exército se referiu aos testemunhos das mulheres como “sons estéreo gravados detestáveis que são de estupros uma e outra vez.”

Os tribunais continuaram a ser locais de mais violência e desumanização para os caxemires, sustentando a ocupação militar. O Estado reinscreve a violência por meio de estruturas hiperlegais3 e “performances” reinseridas de forma reiterativa do Estado de Direito. Isso é verdade para o recente veredito da Suprema Corte, um “endosso categórico” ao uso da lei pelo Estado como um agente de guerra para subjugar as aspirações de liberdade do povo.

Sob a roupagem de ser a “maior democracia do mundo”, a Índia conseguiu que a Caxemira fosse vista pela comunidade internacional como uma questão de direitos constitucionais internos à Índia, permitindo-lhe recusar a supervisão internacional, bem como a aplicação de leis de conflito armado a ela.

Não apenas o regime jurídico “doméstico” em tais contextos, até mesmo a arena internacional é um local de violência imperial. No que diz respeito aos sistemas e mecanismos internacionais, nunca foi tão claro como no momento atual como as potências imperiais são capazes de desempenhar um papel hegemônico neles, efetivamente fechando qualquer meio de responsabilizar as partes violadoras.

Mesmo enquanto funcionários das Nações Unidas têm defendido repetidamente o cessar-fogo na Palestina, invocando disposições “poderosas” da Carta da ONU, soando alarmes de uma ameaça global da guerra, Israel continuou com sua violência implacável. Não é surpresa, portanto, que os jornalistas palestinos que relatam do terreno denunciem a apatia do mundo e nos lembrem poderosamente: “Não vamos perdoá-los… Mesmo que morramos, a história nunca esquecerá.”

Justiça para os povos ocupados?

À medida em que os assassinatos na Palestina continuam, o objetivo deste artigo sobre os recentes acontecimentos na Caxemira não é desviar a atenção de um genocídio que todos estamos assistindo se desenrolar em tempo real. É o de nos levar a pensar sobre esses desenvolvimentos atuais e eixos de opressão que se cruzam para construir solidariedades e resistências transnacionais.

A ONU, onde uma mão levantada desta vez significava que nenhuma resolução seria aprovada para um cessar-fogo, foi a mesma plataforma onde uma resolução para o plebiscito na Caxemira foi aprovada em 1948 – para nunca ser cumprida. As pessoas sob ocupação militar abordam essas plataformas com cautela, esperando pouco, mas também agudamente conscientes da falta de vias alternativas para a responsabilização [dos opressores].

Numa altura em que as pessoas estão cada vez mais desesperançosas de vias de direito e justiça, tanto “em nível interno” como em nível internacional, os nossos compromissos decoloniais com as ideias de justiça exigem que elas sejam divorciadas de uma função do direito. Em vez disso, nosso senso deve centrar as lutas das pessoas para desmantelar as múltiplas estruturas de opressão e violência, bem como seus apelos por libertação.

Lembro-me constantemente das pessoas com quem trabalho em Caxemira, muitas das quais sublinham a incapacidade dos sistemas existentes para fazer justiça e recusam-se conscientemente a envolver-se com eles. Outros veem o engajamento como uma forma de expor violações sistêmicas e desafiar os apagamentos impostos pelo império. A luta pela justiça e pela libertação radica no testemunho e nesta recusa constante ao esquecimento.

1 O Complexo de Salvador é uma condição psicológica na qual uma pessoa sente a necessidade de ajudar os demais constantemente. Essa forma de ser leva o indivíduo a agir de formas um pouco extremas, até o ponto em que seus atos podem ser muito prejudiciais. https://amenteemaravilhosa.com.br/complexo-de-salvador/
2 Pinkwashing (lavagem rosa ou lavagem de imagem rosa) é um empréstimo linguístico (do inglês pink, rosa, e whitewash, branquear ou encobrir) para referir-se, no contexto dos direitos LGBT, à variedade de estratégias políticas e de marketing dirigidas à promoção de instituições, países, pessoas, produtos ou empresas apelando a sua condição de simpatizante LGBT. A expressão é especialmente usada paras se referir à lavagem da imagem do Estado de Israel que, promovendo a sua população LGBTI, disfarça a violação sistémica dos direitos humanos da população palestina.: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pinkwashing
3 O hiper-legalismo é uma um enfoque excessivamente de má-fé para interpretar a legislação internacional.
Original em In Kashmir, like in Palestine, a decolonial commitment to justice is crucial. Tradução de Waldo Mermelstein, do Esquerda Online.