Os grandes meios de comunicação empresariais estão efusivamente noticiando sem muitas problematizações, o resultado das duas eleições que ocorreram neste ano em El Salvador por terem sido ganhas novamente pelo governo do empresário marqueteiro autocrata e filho de uma família de elite da Capital, Nayib Bukele.
A família de Bukele faz parte de uma das alas da burguesia do país, proprietária de uma vasta rede de empresas dos setores de bebidas, publicidade, ramo têxtil, farmacêutico e automotivo. Foi a partir de suas empresas familiares de publicidade que ele ingressou na cena partidária e que inclusive chegou a fazer a propaganda política da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), após os acordos de desarmamento da guerrilha e legalização como partido político, nos anos 90.
O playboy chegou a ser prefeito pela FMLN, quando assumiu seu primeiro cargo público, o de prefeito de um pequeno município de cerca de 8 mil habitantes na periferia da capital e depois no governo municipal de São Salvador (2015-2018), no auge institucional da FMLN, que governou o país entre 2009 e 2019.
Após sua saída do partido, Bukele buscou criar a toque de caixa um partido novo e, numa manobra de marketing político se apresenta como “apolítico”, numa forte ofensiva pelas redes sociais como se fosse um outsider do sistema (qualquer semelhança com outras lideranças de extrema-direita não é coincidência) em uma cruzada messiânica contra os partidos Arena e FMLN, num formato de política empresarial que estava à caça de mercados, a partir do Twiter e Facebook. Tudo isso num cenário de amplas desilusões populares das massas que já tinham passado por 12 anos de guerra civil e quase 30 anos de democracia que nada resolveram de fato os problemas mais sentidos dos segmentos sociais mais explorados e oprimidos.
Já tendo se definido como radical de esquerda no passado, o qual celebrava o nascimento do Che Guevara e postado condolências pela morte de Fidel Castro, passou a afirmar pouco tempo depois que não acreditava em ideologias. Sendo que, após sua primeira eleição, em fevereiro de 2019, em um encontro com numa das mais reacionárias Fundações Norte Americanas, a Heritage Foundation, voltou mais republicano que o próprio Donald Trump, convertendo-se em amigo fiel do grande empresariado de El Salvador.
Aqui começa uma nova etapa política de uma longa saga dos trabalhadores e setores populares e subalternizados de El Salvador, pois após 12 anos de guerra civil (1980-1992) com mais de 75 mil mortos, onde a FMLN, que unificou e dirigiu várias organizações armadas revolucionárias, chegou a controlar partes do país.
Após o pacto de desarmamento, a FMLN inaugura uma fase de adaptação à democracia liberal em disputas eleitorais contra a Arena, chegando ao poder em 2009, após 3 governos sucessivos da direita, sem resolver os velhos problemas estruturais sociais e econômicos que marcam o legado estrutural do domínio colonial e imperialista na América Central e toda a América Latina.
Temos aqui um roteiro semelhante do desenlace político em alguns países, na América Latina, nos últimos 20 anos. Após as experiências com os governos denominados de progressistas que aplicaram um reformismo quase sem reformas, sem alterar as estruturas políticas e sociais dos países, como é o caso da FMLN, a direita retoma o poder em sua expressão mais extremista e protofascista, muitas vezes auxiliadas pelas igrejas neopentecostais e pela emergência das redes sociais como principais instrumentos de mobilização eleitoral e/ou golpes institucionais nos parâmetros do uso da “lawfare” que significa “guerra jurídica” ou uso manipulatório da justiça para interferir nas disputas políticas, a exemplo do que foi a falida Operação Lava Jato.
A crise dos velhos partidos, prisão em massa e neopentecostalismo fundamentalista
Além da tática fascista típica com a utilização da força física violenta com apoio de tropas policiais para fazer valer sua “maioria” (fatos não noticiados pela grande mídia empresarial), como fez em fevereiro de 2020 invadindo o Congresso com militares, ameaçando dissolvê-lo, para aprovar seus projetos, pois não tinha ainda maioria parlamentar, somente alcançada em 2021. Dois ingredientes são importantes para entender a ascensão do bukelismo como corrente de extrema-direita, com suas particularidades centro-americanas, mas conectado a um fenômeno social e político mundial fortalecido nos últimos 20 anos.
O primeiro é que a extrema-direita na América Latina não se deparada com o fluxo de ingresso de imigrantes como ocorre na Europa e Estados Unidos. De modo que o “inimigo comum” – tão usado pelas diversas correntes fascistas como fonte de unificação nacional e pavor coletivo – foi o tema da segurança pública, adotado e tratado de forma profissional e psicossocial como marketing político. A principal peça de propaganda de Bukele é a construção de uma megaprisão, que chega a confinar de forma industrial milhares de pessoas.
Bukele aumentou sua popularidade com ações espetaculares relacionadas ao combate da violência e homicídios perpetrados pelas milícias que controlavam vários territórios nas cidades do país, resultando – segundo os dados do próprio governo que não foram verificados por fontes independentes – numa redução drástica das taxas de homicídios.
Sua principal obra foi a construção da megaprisão, inaugurada em janeiro de 2023, o chamado Centro de Confinamento do Terrorismo – CECOT, cujas fotos que circulam o mundo – tiradas sob fiscalização – revelam as incontáveis milhares de presos amontoados e semidespidos.
El Salvador sempre foi considerado um dos países mais violentos do continente com os maiores indicadores de homicídios, resultante das altas taxas de pobreza, precarização do trabalho e da vida social, além do controle amedrontador dos territórios pelas milícias e os dois governos anteriores ao de Bukele, tanto da Arena (pós-guerra civil) quanto da FMLN, nunca resolveram nem trataram com seriedade o tema.
O segundo fator é bem comum a alguns países latino-americanos como Brasil, Peru, Bolívia e outros, que é a conexão da extrema-direita com importantes segmentos das igrejas neopentecostais fundamentalistas, incorporados inclusive em discursos messiânicos de alguns líderes, a exemplo de Milei que disse ter recebido uma mensagem do espírito do seu cachorro Conan para assumir uma missão, ou no caso de Bolsonaro que foi “batizado” no Rio Jordão em Israel pelo Pastor Everaldo (este depois preso pela PF em operação policial contra esquemas de corrupção), então Presidente Nacional do PSC (2016), além de suas conexões com líderes como Malafaia (Pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo) e Edir Macedo (Bispo da Igreja Universal de Reino de Deus).
Bukele igualmente se diz “um instrumento de Deus” e com apoio de segmentos evangélicos que se mobilizaram para suas eleições conectou sua experiência de marqueteiro empresarial, seu messianismo político populista de direita a uma teologia do domínio que igualmente se reforça com temas morais.
Ante um terremoto social marcado pela desmoralização das FMLN que jogou fora uma gigantesca oportunidade para resolver temas sociais e o surgimento de uma nova geração de jovens millennials (nascidos entre 1981 e 1995) que de desconectaram das batalhas sociais anteriores, soma-se o componente religioso neopetencostal que penetra nas grandes massas periféricas.
Várias características do neofascismo na América Latina estão postas: a criação de um inimigo comum da nação como componente ideológico de mobilização para buscar forjar uma unidade nacional entre as classes sociais; violência política física e digital com segmentos da sociedade civil e das forças armadas contra opositores e contra as organizações dos movimentos sociais; mobilizações via redes sociais; fundamentalismo evangélico e, quando chegam ao poder, mudanças progressivas do regime político rumo a autocracias ditatoriais, aprofundamento do neoliberalismo e da semicolonização nas medidas econômicas que chegaram a acabar com a moeda nacional e instituir a dolarização e o uso do bitcoin.
Estado de exceção, reeleição inconstitucional e manipulação das regras eleitorais e dos Tribunais
El Salvador tem, segundo o seu Tribunal Superior Eleitoral (controlado por Bukele), um registro de 6.214.399 eleitores, sendo o Departamento de São Salvador, onde fica a capital, o maior colégio eleitoral com 1.468.767 eleitores.
No ano passado, sob ofensiva do decreto do Estado de Exceção, o Congresso foi reduzido de 84 para 60 legisladores, e o número de municípios modificado de 262 para 44 para facilitar o controle das instituições e representação dos partidos opositores, além de introduzir mudanças nas circunscrições eleitorais para favorecer ao governo.
As denúncias relativas às modificações e manipulações das regras para forjar uma maioria absoluta são fartas. Mesmo que ele tenha conseguido uma maioria no país, após sua primeira eleição iniciou uma cruzada para controlar de forma absoluta os tribunais e o Congresso, inclusive na metodologia de como se calcula a composição da proporcionalidade para ocupar as cadeiras no parlamento, como detalhou bem o jornal El Faro, manipulações das regras eleitorais que fizeram elevar sua maioria de 67% para 90%. Além das restrições de fiscalizações das mesas coletoras dos votos, houve uma série de irregularidades na totalização dos votos.
Neste 4 de março, ocorreu eleições para o Parlamento Centro Americano (PARLACEN) e para os Conselhos Municipais que controlam os governos das prefeituras. A estimativa é que o partido do governo, Novas Ideias e seus aliados venceram (as atas ainda não foram totalizadas) em 43 dos 44 municípios, segundo fontes partidárias e jornalísticas.
O partido bukelista, Novas Ideais, à semelhança de outras lideranças de extrema-direita na América Latina, foi criado de forma apressada como uma carcaça cartorial com objetivo de garantir o registro do então aspirante a ditador, em 2018, que ainda assim por impedimentos jurídicos, se inscreveu por outra legenda desconhecida, o Grande Aliança pela Unidade Nacional – GANA, derrotando os dois partidos que polarizaram a política nos últimos 30 anos, a ARENA (direita) e FMLN (esquerda).
Novas Ideias, controlará 61% das prefeituras do país. Há ainda 15 municípios (34%) que serão governados por partidos aliados, PCN, PDC, Força Solidária e Gana. Significa quase todas as cidades alinhadas ao governo. A ARENA, velho partido da direita tradicional, ganhou 1 prefeitura e a FMLN não elegeu nenhuma prefeitura.
A votação para o PARLACEN, já com quase 98% de apuração, o resultado foi o seguinte para a circunscrição nacional, segundo dados oficiais do TSE:
Em 4 de fevereiro, Bukele, que anunciou sua vitória antes da proclamação do Tribunal Superior Eleitoral do país, levou 54 das 60 cadeiras do Congresso, além de sua reeleição de Presidente com mais de 80%. O candidato da oposição da FMLN obteve pouco mais de 6% para presidente, mas não elegeu nenhum parlamentar, conforme gráfico abaixo:
Bukele se reelegeu para um segundo mandato manipulando a legislação e os Tribunais Superiores, hoje controlado por aliados fiéis, pois foi permitido contra o que reza a Constituição, conforme o Artigo 152 da Carta Magna do país: “No podrá ser candidato a Presidente de la República el que haya desempeñado la Presidencia de la República por más de seis meses, consecutivos o no, durante el periodo inmediato anterior, o dentro de los últimos seis meses anteriores al inicio del periodo presidencial”.
Mas Bukele substituiu todos juízes da Corte Suprema por nomes fiéis a ele. O bonaparte governará de forma absoluta, em regime quase de partido único, mas ainda não foi adjetivado pela Globo e CNN como ditador, como fazem de forma abusiva contra Maduro, visto que Bukele é um fiel aliado de Donald Trump, aplicando um programa neoliberal de agrado ao grande empresariado utilizando um regime de terror policial.
Pois bem, quem decreta Estado de Exceção por 2 anos e caça direitos constitucionais fundamentais, em nome de combater a violência das gangues, deve ser chamado de ditador. Desde março de 2022, o país vive um regime de exceção permanente o qual vigora até o presente.
Esses dois resultados eleitorais favoráveis, tende a aprofundar El Salvador num caminho autocrático rumo a uma ditadura, ou seja, está em pleno curso uma mudança do regime político do país. Bukele já controla os tribunais superiores, a Procuradoria, o Congresso e agora a maioria dos municípios. O próprio já se descreveu com o “ditador mais descolado do mundo”.
Neste período, o governo prendeu mais de 75 mil pessoas, inclusive crianças, numa onda repressiva com os órgãos policiais e judiciais dotados de superpoderes combinando buscas sem mandados, prisões arbitrárias inclusive de opositores, torturas, julgamentos coletivos com até 900 presos de uma só vez, isolamento dos presos sem notícias aos familiares por meses, acesso irrestrito do governo às comunicações privadas, prisões sem acusações formais e perseguição a jornalistas.
Há várias denúncias das organizações de Direitos Humanos como a Anistia Internacional, de que grande parte dessas prisões são de jovens pobres da periferia que não tem nenhuma relação com as gangues que ele diz combater e não tem nenhuma assistência judicial ou familiar para acompanharem suas defesas. A taxa de encarceramento em El Salvador alcançou desde 2021 o triplo das taxas do México e Colômbia, por exemplo. Sem falar que a taxa de pobreza extrema no país subiu de 5,6% a 8,7% da população, segundo a CEPAL, ou seja, um aumento de 200 mil pessoas.
O desafio, sem dúvidas, é entender que a ascensão do bukelismo é o produto da derrota da revolução na América Central, inclusive a partir do retrocesso da revolução nicaraguense e do alargamento da influência imperialista norte-americana no continente, que se utiliza inclusive da Organização dos Estados Americanos – OEA como instrumento de sua geopolítica. A partir daí poderá se encontrar novas alternativas buscando que não se repitam os erros do passado recente dos governos progressistas, pois com se diz no provérbio popular, “quem não faz gol, leva”.
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