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Colunas

Ministério da Saúde cede à pressão e revoga documento elucidativo aos parâmetros técnicos de aborto legal

Quanto vale a vida das pessoas aptas a gestar e a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos no jogo de negociação institucional?

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Saúde Pública resiste

Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde:

Ana Beatriz Valença – Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;

Jorge Henrique – Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;

Karine Afonseca – Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;

Lígia Maria – Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;

Marcos Filipe – Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;

Rachel Euflauzino – Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;

Paulo Ribeiro – Técnico em Saúde Pública – EPSJV/Fiocruz, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana – PPFH/UERJ e doutorando em Serviço Social na UFRJ;

Pedro Costa – Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;

Por Lígia Maria

Às portas do Março de Lutas das Mulheres, o Ministério da Saúde divulgou, no dia 28 de fevereiro de 2024, a Nota Técnica Conjunta nº 2, elaborada pelas Secretarias de Atenção Primária à Saúde (SAPS) e Atenção Especializada à Saúde (SAES). No intento de revogar nota técnica produzida no governo de Jair Bolsonaro e tornar sem efeito manual atenção aos casos de abortamento elaborado em 2022, documentos repletos de conceitos defasados ou simplesmente falsos, além de técnicas proscritas, a NT nº 2/2024 cumpriria importante papel na elucidação de diretrizes para a atenção ao abortamento – sobretudo no tocante à garantia do acesso aos serviços especializados nos casos previstos em lei.

A discussão se dá no cenário de restrição do direito ao aborto legal. A interrupção voluntária da gestação é permitida em território brasileiro pelo Código Penal (1940), nos casos de violência sexual e risco de vida à pessoa gestante, e pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54/2012, nos casos de anencefalia – abrindo prerrogativa para outras malformações fetais. Nenhuma dessas normativas legais estabelece limite de idade gestacional para a interrupção, considerando que são condições impositivas de riscos biopsicossociais à pessoa gestante ou inviabilidade de vida extrauterina do concepto.

Na mesma perspectiva, materiais técnicos de organismos internacionais e nacionais de saúde evidenciam, a partir de robustas pesquisas e trabalho técnico e científico de profissionais com grande expertise na área de saúde sexual e reprodutiva, a ausência de recomendação de limite de idade gestacional para interrupção voluntária. Organização Mundial da Saúde (OMS), Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), Federação Nacional de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) possuem vasta produção teórica e técnica no tema, enfatizando que a imposição de limite de idade gestacional não só é incipiente na prevenção de casos de abortamento, como promove situações de abortamento inseguro, além de prejudicar mais intensamente pessoas que gestam jovens, moradoras das periferias urbanas ou áreas rurais, negras, sem escolarização e com baixo letramento em saúde – sobretudo no que diz respeito à educação sexual e ao planejamento reprodutivo.

Entretanto, em vários serviços especializados para interrupção gestacional prevista em lei existe a imposição de limite de idade gestacional. Tal medida restritiva do acesso à saúde é justificada pela interpretação equivocada da norma técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, divulgada em 2005 e atualizada em 2012. O documento define, de maneira errônea, que abortamento “é a interrupção da gravidez até a 22ª semana de gestação e com produto de concepção pesando menos de 500g”. Contudo, a definição se aplica apenas aos casos de abortamento espontâneo. Tratando-se de abortamento induzido, aplicável aos casos de interrupção voluntária da gravidez, tal conceito não é pertinente, de acordo com os organismos nacionais e internacionais de saúde e com as evidências científicas mais atualizadas.

No contexto da ADPF 989, que pede ao Supremo Tribunal Federal (STF) que determine a adoção de providências para assegurar a realização do aborto nas hipóteses permitidas no Código Penal e no caso de gestação de fetos anencéfalos, o Ministério da Saúde se posicionou desmistificando e adequando conceitos técnicos através da NT Conjunta nº 37/2023, a fim de amparar a garantia do serviço de interrupção gestacional nos estabelecimentos de saúde. Dado o contexto da ADPF, que não foi concluída, muitos serviços interpretaram a medida como insuficiente, mantendo barreiras de acesso amparadas nos conceitos obsoletos e evidências científicas defasadas que justificam fragilmente o limite de idade gestacional.

Vale salientar, ainda, que a imposição de limite de idade gestacional é colocada, sobretudo, para os casos de interrupção de gestações decorrentes de violência sexual, dificilmente sendo um imperativo aos casos de risco de vida à pessoa gestante e malformações fetais, embora estes passem por outras barreiras de acesso. Reflete-se, dessa forma, sobre o teor revitimizador que a restrição assume, consistindo em uma expressão da penalização social que envolve o tema do aborto no Brasil.

Ante ao exposto, nota-se que a NT nº 2/2024, revogada pelo Ministério da Saúde diante da resposta reacionária e fundamentalista de setores da extrema direita e de profissionais de saúde objetores aos direitos sexuais e reprodutivos, poderia solucionar um imbróglio interpretativo que tem vitimado milhares de pessoas aptas a gestar por todo o País, sobretudo crianças e adolescentes, mulheres negras e pobres vítimas de violência sexual. Em nenhum momento se tratou de ampliação dos permissivos legais para o abortamento, mas sim da ratificação das prerrogativas legislativas vigentes e da elucidação de conceitos teóricos e técnicos sobre a atenção clínica à interrupção voluntária da gravidez.

A ação do Ministério da Saúde de divulgar posicionamento técnico firme, coerente, amparado na postura política assertiva e progressista de garantia de direitos, cientificamente atualizado e sistematicamente transformador da realidade da oferta do direito ao aborto legal no País foi corajosa e estava sendo esperada há muito tempo pelos servidores públicos dedicados firmemente à execução da interrupção gestacional prevista em lei enquanto direito fundamental nas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) estabelecidas como referência para os procedimentos.

Por outro lado, a fragilidade na manutenção da iniciativa demonstra a indisposição do atual governo de manter firmeza na resposta política para a qual foi eleito, abrindo mão de institucionalizar um compromisso de Estado que firme os primeiros passos na adoção da justiça reprodutiva como balizadora da equidade em saúde para todas as pessoas que gestam. As consequências são parte da realidade epidemiológica, sanitária e social do Brasil: o abortamento inseguro é a quarta causa de morte materna no País; 44 partos de nascidos vivos de adolescentes são realizados por hora no Brasil, sendo que, dessas 44, duas pessoas tem entre 10 e 14 anos; apenas 4% dos municípios brasileiros possuem serviço de interrupção gestacional prevista em lei, sendo que a maior concentração está na região Sudeste, em capitais e metrópoles; os recursos inseguros e mal geridos de abortamento são a ferramenta utilizada pelas parcelas mais vulnerabilizadas da população, desvelando a realidade classista, racista e misógina que perpassa o acesso – ou a falta dele – aos direitos sexuais e reprodutivos.

Para mais, a revogação da nota mantém em insegurança, desgaste, perseguição e violência institucional dezenas de profissionais que constituem equipes especializadas nos serviços de interrupção gestacional prevista em lei. São servidores e servidoras do SUS que optam por permanecer nos serviços de aborto legal sob o compromisso do atendimento humanizado, da equidade em saúde, da garantia dos direitos sexuais e reprodutivos. Além dos aspectos técnicos e sociais, a imposição de limite de idade gestacional empurra, também, profissionais de saúde à infração ética, uma vez que os códigos de ética profissional preconizam o atendimento das normas técnicas e evidências científicas mais atualizadas. A obrigatoriedade de seguir um arcabouço teórico equivocado, superado por diretrizes internacionais e nacionais atualizadas, impacta frontalmente o exercício profissional. Neste sentido, vale considerar que normas técnicas são infralegais, não possuem força de lei. Por outro lado, a legislação brasileira que versa sobre os permissivos legais para o abortamento também tem sido infringida mediante as restrições de acesso.

Coadunando com o posicionamento das entidades nacionais e internacionais de saúde; de coletivos profissionais organizados, como a Rede Médica pelo Direito de Decidir, a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras e a Rede de Assistentes Sociais pelo Direito de Decidir; dos movimentos sociais, reunidos nas frentes pela legalização do aborto e em outras redes populares de luta pela garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, é necessária a exigência ao Ministério da Saúde do atual governo de que mantenha postura firme na atualização técnica e científica das diretrizes para atenção ao abortamento. Esta medida significa o avanço no compromisso político com o direito à saúde, a ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos, a segurança profissional, a equidade social e a justiça reprodutiva.

A vida de milhares de pessoas que gestam, a dignidade de crianças e adolescentes em situação de violência sexual, o fortalecimento do SUS e de um modelo de atenção assertivo no sentido da garantia de direitos não pode ser moeda de troca nas bancadas de negociação institucional e pressão política

A vida de milhares de pessoas que gestam, a dignidade de crianças e adolescentes em situação de violência sexual, o fortalecimento do SUS e de um modelo de atenção assertivo no sentido da garantia de direitos não pode ser moeda de troca nas bancadas de negociação institucional e pressão política, sobretudo quando esta parte de setores da sociedade contrários aos direitos fundamentais sob amparo de notícias falsas e sensacionalistas, de teor misógino, racista, fundamentalista e discriminatório.

A aposta eleitoral foi feita pela população brasileira, sob campanha intensa do movimento feminista e de outros movimentos sociais e iniciativas populares, para uma resposta política que tenha como compromisso factível as mudanças necessárias apontadas pelos setores organizados da sociedade civil, aproveitando o exercício do poder institucional por um governo eleito pela classe trabalhadora, pelas mulheres, pelas pessoas negras e pela juventude. A resposta ao questionamento inicial deste texto deve ser dada pelo governo federal, acrescida à solução da indagação: a maré verde avançará pelas mãos das pessoas aptas a gestar, das feministas, das negras, das LGBT+ no Brasil, será este governo um aliado ou um opositor com as mãos sujas de sangue?