Pular para o conteúdo
Colunas

O Centro Dom Bosco e sua nova cruzada I

Instituto Humanitas Unisinos

Romero Venâncio

Romero Venâncio é Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco e professor da Universidade Federal de Sergipe (Departamento de Filosofia e Núcleo de Ciências da Religião). Atua em pesquisas sobre: Marx, Sartre, F. Fanon, Enrique Dussel e o pensamento Decolonial Latino Americano.

Neste momento abordaremos a nova cruzada do Centro Dom Bosco por meio de dois textos sobre a campanha do CDB do Rio de Janeiro, a saber, “contra a comunhão na mão”. Seria uma coisa completamente ridícula e anacrônica tal campanha em pleno Século XXI se não fosse um dado conjuntural interno ao catolicismo romano a retomada do tradicionalismo como única alternativa ao modernismo. 

Só que não se trata apenas de discursos de cunho tradicionalistas e conservadores; através do uso massivo das redes digitais esses discursos se tornam práxis. E, assim, incentivam à ação. Tornam-se verdadeiras “cruzadas” sem o mundo medieval europeu como chão histórico. Há toda uma tentativa por meio de cursos em plataformas digitais, aparições de nossa senhora e suas “previsões”, retomada de livros e documentos dos Papas do Século XIX até Pio XII e um conjunto bem articulado de teorias da conspiração sobre uma “perseguição aos cristãos” que ajuda a animar os fiéis da extrema direita católica nas redes digitais, nas paróquias e dioceses.

A nossa pesquisa sobre a “Extrema direita católica nas redes digitais” tem um demarcador fundamental que foi o ano de 2013. No Brasil, a partir da efervescência daquele ano que culminou com as “jornadas de junho” e todo um desdobramento à direita que aquele fenômeno de rua trouxe. Aconteceu, durante e após as jornadas, uma reorganização das direitas no Brasil. 

Dois livros nos ajudaram muito nos estudos do ano de 2013 e seus desdobramentos na política brasileira e ainda seu impacto dentro do catolicismo romano brasileiro. O primeiro é da socióloga Angela  Alonso intitulado “13. A política de rua de Lula a Dilma” (Editora Companhia das Letras) e o segundo, uma coletânea organizada por Esther Solano e Camila Rocha, “As direitas nas redes e nas ruas. A crise da política no Brasil” (Editora Expressão Popular). Outros textos de pesquisadores(as) que focaram no ano de 2013 a partir de dados e com capacidade analítica para além dos comentários das tradicionais mídias foram de fundamental importância. A análise política e social do ano de 2013 e os atos de rua mostram que aquela conjuntura teve um impacto dentro do cristianismo brasileiro, seja católico ou protestante. 

O nosso recorte sempre foi o universo religioso católico romano. Já vínhamos estudando o pensamento católico brasileiro e suas bases conservadoras desde a fundação nos anos 20 do Centro Dom Vital e as orientações ideológicas do Cardeal Leme e o leigo Jackson de Figueiredo (sob a ótica do historiador Francisco Iglesias). Desde 2018, estávamos às voltas com o início do pensamento conservado caólico no Brasil no Século XX. Tomamos como referência os estudos de Riolando Azzi (a neocristandade como projeto restaurador), José Oscar Beozzo (o contexto do Vaticano II no Brasil), Antonio Carlos Villaça (o pensamento católico brasileiro e sua formação histórica) e Gizele Zanotto (sobre a TFP e Plínio Corrêa de oliveira). Calibrados com esses pesquisadores (as), trabalhamos as bases de um pensamento conservador/reacionário dentro do catolicismo brasileiro. E os acontecimentos de 2013,mudaram (muito) o perfil do conservadorismo católico brasileiro.

Entramos, assim, num novo projeto de pesquisa que é sobre a ação de uma extrema direita católica (ainda imprecisa sociologicamente) nas redes digitais. A influência de Olavo de Carvalho será determinante – sua influência direta (a presença de católicos de direita nos cursos de formação do Olavo) e indireta (aproveitando-se do método de Olavo nas redes digitais). Nesse sentido, uma base de apoio intelectual foi a tradução no Brasil do livro do Benjamin R. Teitelbaum “Guerra pela eternidade: retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista” (Editora da UNICAMP). Esse livro fechou um ciclo que andava buscando entender a lógica dessa extrema direita católica no Brasil pós-2013, na medida em que um “novo tradicionalismo” entra em cena a partir do crescimento da rede de telefonia celular no Brasil. Esta extrema direita católica chegou primeiro nas redes digitais que as esquerdas (sempre evitamos usar o termo “rede social” porque de social elas têm muito pouco ou nada).

Um outro acontecimento importante no catolicismo romano em 2013 é o início do Papado de Francisco. A eleição de Jorge Mario Bergoglio à condição de Papa Francisco em 13 de março de 2013, prelado de modos simples desde o seu trabalho pastoral na Argentina, carregava a esperança da renovação da Igreja diante de 34 anos de gestão da Igreja por João Paulo II e Bento XVI. 

A eleição do cardeal Bergoglio veio após uma renúncia papal (coisa rara na Igreja, já que o cargo de Papa é vitalício). Ou seja, veio de uma profunda (e obscura) crise interna na Igreja Católica. Os primeiros gestos do Papa e seus primeiros escritos apontavam para mudanças profundas que poderiam dividir ainda mais o catolicismo no mundo. O Papa Francisco indicava que tomaria o rumo inaugurado pelo Concílio Vaticano II. E aprofundar o Concílio tem sido o grande projeto do papado de Francisco. Vemos isso agora em 2024 de maneira nítida e incontornável.

O combate cerrado ao Concílio Vaticano II e seus desdobramentos na Igreja passou a ser o objetivo dos grupos da extrema direita católica. Fizeram toda uma plataforma de formação nas redes digitais com esse objetivo paranoico. Todas as contemporâneas teorias da conspiração partem de algum ponto do Concílio Vaticano II. Acrescentamos um ponto a mais na pedagogia da extrema direita católica que é o combate ao papa Francisco, por mais paradoxal que isso pareça, uma vez que o Papa é símbolo de unidade da Igreja e é tratado como “Santo padre”, seja quem for o Papa eleito. Virou drama nesta extrema direita católica a maneira de lidar com o Papa Francisco. Mas esse é um tema para uma outra pesquisa.

Nesse intervalo entre 2013-2016 nasceu o Centro Dom Bosco do Rio de Janeiro. Na página que qualquer um pode ter acesso público, eles se definem da seguinte forma: 

“desde a fundação em 17 de setembro de 2016, o Centro Dom Bosco é uma associação de fiéis católicos que se reúnem para rezar, estudar e defender a fé. Nossa missão é ajudar a resgatar a bimilenar Tradição da Igreja por meio de livros, aulas e iniciativas apologéticas. Homens e mulheres na condição de leigos católicos que, unidos, buscam levar uma vida a serviço da Santa Igreja. Acreditamos que o Brasil é uma nação católica que foi adormecida pelo veneno liberal das casas maçônicas e, para contrapor o erro, seguimos os passos de nosso patrono, São João Bosco.”

Tradicionalismo, integralismo e conservadorismo por todos os poros. Eles se gabam de afirmar nas redes digitais que já publicaram mais de 170 livros, 4 documentários e centenas de horas de formação tradicionalistas disponíveis gratuitamente no Youtube. 

Desde 2016, criaram problemas com o pessoal do “Porta dos Fundos”, com Pe. Julio Lancellotti, Leonardo Boff, Frei Betto, Dom Vicente Ferreira, Dom Joaquim Mol. Desenvolvem cursos sobre Bíblia, teologia e política. Tudo baseado num pensamento conservador tradicionalista onde indicam livros, textos e filmes nessa linha. Pedagogicamente, sempre inventam uma “cruzada nova” a combater. Para manterem os seus milhares de seguidores atentos e ocupados inventam sempre uma narrativa para promover o engajamento. 

A mais nova cruzada nasceu, segundo um dos membros fundadores do Centro, o Álvaro Mendes, de uma fato que “rejeição na fila da comunhão” – rejeição de receber a “Hóstia na boca e ajoelhado”. Os dois fatos, segundo o Mendes: um movimento de não mais ter como cultura a “entrega da comunhão na boca” e uma rejeição vivida pelo próprio Álvaro Mendes numa das missas em que ele frequenta. O Centro Dom Bosco fez todo um barulho nas redes digitais quando o bispo auxiliar de Belo Horizonte Dom Joaquim Mol “negou” a comunhão na boca para uma adolescente em uma paróquia local. O fato ocorreu na capital mineira, particularmente na paróquia de Santa Maria Estrela da Manhã, em agosto de 2023. Como existe um vídeo gravado num celular pela mãe da menina, nas redes sociais da extrema direita católica virou uma febre contra o bispo, ele foi massacrado nestas redes. O Centro Dom Bosco liderou o massacre, por meio de vários depoimentos e supostas “análises teológicas” do ocorrido. Pronto, nascia mais uma cruzada do Centro Dom Bosco como tantas outras desde 2016.

O filme. Após o massacre do Bispo Mol nas redes digitais, o Álvaro Mendes e o Centro Dom Bosco tiveram a ideia de fazer um documentário sobre esta situação e na leitura deles. O filme tem um ponto de vista definido: o do Centro. O filme foi lançado em forma privada no ano passado e tornou-se público no Youtube este mês de fevereiro de 2014. Tem como título “Comunhão na Mão: O Triunfo da Desobediência” (direção de Luis Piccinali e argumento de Álvaro Mendes e produção original do Centro Dom Bosco).

Na sequência, vamos analisar o filme e seu contexto o próximo artigo, intitulado A nova cruzada do centro dom bosco II – A missão e demonstrar o filme como um grande equívoco teológico, cinematográfico e pastoral.