Por Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA)
Este documento resulta de um processo de debates tecidos a partir do compartilhamento das impressões de militantes da RENILA que estiveram presentes na V CNSM, sobre a operacionalização da mesma, realizada de 11 a 14 de dezembro de 2023, em Brasília, cujo tema foi “A Política de Saúde Mental como Direito: Pela defesa do cuidado em liberdade, rumo a avanços e garantia dos serviços da atenção psicossocial no SUS”.
Todas as considerações avaliativas apresentadas a seguir decorrem da compreensão da importância do controle social para a construção, implantação, fiscalização e aprimoramento de políticas públicas no país, sendo as conferências um instrumento fundamental para o seu exercício, constituindo-se também espaços de encontros, diálogos e afetos. Assim, decorridos 13 anos desde a IV CNSM-Intersetorial, era significativa a expectativa em torno da realização da V CNSM, cujo objetivo era “propor diretrizes para a formulação da Política Nacional de Saúde Mental e o fortalecimento dos programas e ações de Saúde Mental para todo o território nacional” (Art. 1 do Regimento da V CNSM, apresentado pela RESOLUÇÃO Nº 660, DE 05 DE AGOSTO DE 2021 A retomada da realização de conferências, no caso, a V CNSM, é um convite à participação popular como eixo central para a construção de políticas públicas no campo da Saúde Mental, que esteve inviabilizado no governo Bolsonaro.
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Contudo, algumas pontuações e críticas se fazem indispensáveis, como salientar e reconhecer que o processo de convocação e realização da V CNSM ocorreu em contexto turbulento, em plena pandemia de COVID-19, tendo início no governo já citado, e se arrastando por longos e difíceis anos. Desde a convocação, feita pela Resolução CNS nº 652, de 14 de dezembro de 2020, e sua realização, no final de 2023, houve indefinições (em especial, quanto ao seu financiamento), discordâncias quanto ao melhor momento para que ocorresse, adiamentos, alterações em certas pactuações, eleições e mudança de governo, trazendo um enorme desgaste com prejuízos que, obviamente, repercutiram durante a realização da V CNSM.
A 17ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida previamente à da Saúde Mental, imprimiu um modo operacional, apresentado como eficiente e eficaz, que acabou guiando a dinâmica da V CNSM e, infelizmente, trouxe problemas. Por exemplo, a metodologia definida pela Comissão Organizadora de que todos os Grupos de Trabalho (GT) se debruçassem sobre todos os quatro eixos norteadores, tornou completamente inviável a discussão de todas as propostas. Embora reconhecendo que a metodologia usada nas conferências anteriores estava defasada e não mais nos atenderia, o novo processo de trabalho proposto, além de extenuante, excluiu a possibilidade de diálogo. Vale destacar que a própria Comissão de Relatoria não pôde ter acesso às propostas aprovadas ou rejeitadas automaticamente dentro dos GT (em função do cálculo indicado no regimento e realizado pelo sistema), e que as propostas que chegaram para a sintetização foram em número reduzido, o que refletiu no pequeno número de propostas que seguiu para a plenária final.
Uma inovação bem vinda e interessante foi a inserção de delegados/as das conferências livres/CL, diversificando bastante o debate, contudo, algumas propostas advindas de CL, por mais que representem uma abertura democrática no debate sobre a saúde mental, eram descontextualizadas e tinham pouca coerência com a luta antimanicomial e os princípios da RAPS, sendo um exemplo a proposta de “centro de tratamento” específico para autistas, caracterizando um retrocesso na política de reforma psiquiátrica antimanicomial.
O coletivo da RENILA compreende que algumas outras expectativas das entidades antimanicomiais foram frustradas, entre elas, o reduzido número de usuários/as da saúde mental na V CNSM, transformando-a, basicamente em uma conferência de gestores/as, trabalhadores/as e conselheiros/as. Também decepcionante foi a constatação da restrição ao diálogo e da possibilidade de fala dos/as usuários/as da saúde mental durante as plenárias, uma vez que o microfone não foi ofertado, e, quando eles/as tentaram se manifestar, foram silenciados/as. Ao menos para quem carrega a militância nas veias, reconhecendo a força do campo da Luta Antimanicomial para avançar na construção de uma Rede de Atenção Psicossocial compromissada com o cuidado em liberdade, a postura da Comissão Organizadora revelou falta de compromisso e conhecimento com a história das conferências de saúde mental e com o imprescindível protagonismo das pessoas em sofrimento mental, causa e efeito de nossa luta. A plenária final, com uma condução insatisfatória, deixou um sabor amargo, longe das imensas e emocionantes filas que se formavam de usuários/usuárias da saúde mental tomando o microfone e a palavra, marca-cidadã de todas as conferências de saúde mental anteriores.
Cabe também um chamamento ao Conselho Nacional de Saúde/CNS, que coordenou a Comissão Organizadora do evento, e se mostrou pouco aberto a uma participação efetivamente coletiva na realização da V CNSM, centralizando decisões e parecendo tomar as subcomissões, a exemplo da Comissão de Relatoria, como cumpridoras de tarefas, havendo um grau praticamente inexistente de autonomia, além de não se dedicar a um envolvimento orgânico da diversidade dos movimentos sociais na definição das atividades, provocando o sentimento de não pertencimento.
A militância da Saúde Mental, acostumada a habitar espaços reais de debates de propostas, no contexto de um processo de reforma psiquiátrica ainda em curso, com retrocessos significativos desde o final de 2015, estranhou a impossibilidade – ou desestímulo – a operar nessa frequência durante o evento. Em linhas gerais, a avaliação converge para a compreensão de que na V CNSM predominou um caráter protocolar e burocrático, não garantindo o espírito livre, irreverente, consistente, alegre e ousado, típico das conferências de saúde mental, onde os delegados/as efetivamente discutem e aprofundam propostas, estreitam laços, ocupam espaços, que serão a base da construção e efetivação da política pública.
Enfim, a RENILA participou da organização da V CNSM, inclusive compondo duas comissões que lhe foram oferecidas pela Comissão Organizadora, e da conferência propriamente dita, se fazendo presente em quase todos os grupos e momentos do evento, fazendo valer seu histórico de ativismo em movimentos sociais, defendendo propostas compatíveis com a reforma psiquiátrica antimanicomial e respeito ao modus operandi que a caracteriza, exercitando escuta política e construção coletiva de cidadania e autonomia aos diretamente interessados: as pessoas em sofrimento mental. Portanto, sentimo-nos autorizados, enquanto movimento social, a fazer a presente avaliação, não apenas como um dever, mas como um alerta e um convite para que o amplo coletivo antimanicomial brasileiro e seus parceiros retomem a sua essência de luta, coerência e respeito aos princípios que nos fundam.
Louvamos a participação de todos/as delegados/as da V CNSM, que a despeito das dificuldades enfrentadas no processo, defenderam o caráter popular e democrático que toda conferência deve ter e pautaram e defenderam propostas condizentes com a construção de uma sociedade justa, solidária, inclusiva e sem manicômios.
Por uma sociedade sem manicômios!
Nenhum passo atrás, manicômios nunca mais!
Saúde não se vende, gente não se prende!
Janeiro 2024
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