Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
Carlos Drummond de Andrade
A cerimônia do Oscar acontecerá no dia 10 de março e entre os dez indicados a melhor filme neste ano está o britânico Zona de interesse, também indicado em outras quatro categorias. Dirigido por Jonathan Glazer, o filme se passa durante a Segunda Guerra Mundial e narra a história de uma família alemã que vive ao lado do campo de concentração de Auschwitz, do qual seu patriarca, Rudolf Höss, vivido por Christian Friedel, é o comandante.
Enquanto acompanhamos a vida de privilégios dessas personagens, com imagens bucólicas e de eventos em família, a direção do longa insere, ao fundo, sons perturbadores, e quase onipresentes, como os de choros, de gritos, de tiros e de câmaras de gás em atividade. Em algumas cenas, é possível ver a fumaça e as chamas produzidas por possíveis corpos incinerados enquanto a família se diverte ou dorme. As violências nunca são mostradas diretamente, mas estão lá. A imaginação de quem assiste preenche as lacunas e tudo parece mais aterrador. Num dado momento, após a entrada de um oficial em casa, um empregado (judeu), em um gesto rotineiro, pega suas botas para lavar, fazendo escorrer o sangue antes escondido em meio à cor preta do calçado.
Certas personagens da família demonstram algum incômodo, como a criança mais nova, que encontra dificuldade para dormir. No entanto, no fim das contas, o sono chega no conforto do lar com o auxílio do pai, um conforto que custa milhares de vidas humanas. O efeito óbvio que isso produz em quem assiste à película é a sensação de que, por trás da casca do cotidiano feliz da família, há algo de podre. E não deveria ser de outra forma. Havia um genocídio em curso. Eram povos, sobretudo o judeu, e determinados grupos sociais sendo exterminados.
Porém, enquanto assistia à obra de Glazer, o incômodo gerado em mim pelos sons e pela sugestão do horror se mesclou a outro. Hoje, o Estado de Israel já matou mais de 30 mil palestinos desde outubro de 2023, incluindo mais de 10 mil crianças. Esse número segue crescendo e revelando, por um lado, a gravidade da situação de um povo que já vive tendo seus direitos mais básicos violados há mais de setenta anos, em um regime de apartheid, e, por outro, o projeto sionista de extermínio da população palestina.
Aquela situação representada em Zona de interesse, vivida nos anos 40, se transposta para os dias de hoje, coloca facilmente o povo palestino como as vítimas ocultas do outro lado dos muros e o Estado de Israel como seu algoz. Ouso dizer mais: uma grande parte do mundo, mesmo não causando diretamente o mal dos palestinos, ainda vive, como a família de Zona de interesse, de forma conivente com ele, habituada às notícias sobre bombas e contagem de corpos justificadas por uma suposta perseguição ao Hamas. Nesse sentido, é lícito perguntar: quantos corpos valem essa perseguição a terroristas? A totalidade do povo palestino? É para esse desfecho que tudo se encaminha. E mais: se o Hamas é terrorista porque mata civis inocentes, o Estado de Israel, que faz isso numa escala muito maior e há muito mais tempo de maneira sistemática, é o quê?
Assim, deveria ser – muito embora não seja – de se espantar a reação da mídia hegemônica nacional e internacional à fala do presidente Lula, que, em um evento na Etiópia no último domingo, 18, declarou que “o que está acontecendo na faixa de Gaza com o povo palestino” só “existiu quando Hitler resolveu matar judeus”. Trata-se, como pudemos constatar, de um paralelo lúcido, o horror de um genocídio comparado ao horror de outro genocídio. As vozes contrárias à carnificina são fundamentais. Lula, felizmente, tem sido uma delas. Porém, para determinados setores da sociedade, denunciar um genocídio é mais grave do que cometê-lo.
É normal em algum momento olharmos para o que foi o holocausto e nos perguntarmos como o mundo permitiu que se chegasse àquele ponto. A resposta está no cinismo monumental das reações negativas à corajosa fala de Lula contra o massacre na Palestina.
É importante que mais uma narrativa fílmica sobre os horrores do nazismo ganhe o mundo, mas é no mínimo revoltante que o genocídio em curso do povo palestino se desenrole diante de nossos olhos com o endosso da grande mídia aliada do sionismo, sem que certas autoridades internacionais de peso façam algo de significativo para impedir e sem sequer um filme sendo prestigiado que o represente, ao menos de forma direta. Os agentes do lobby sionista vivem em suas casas confortáveis ouvindo ao fundo os sons das bombas, dos choros das crianças e dos gritos além-muros, observando as consequências da explosão justificável e os escombros necessários como parte da paisagem do Oriente Médio no feed do Instagram enquanto um povo desaparece.
Se o objetivo de obras como Zona de interesse é o de que aquilo que está ali não se repita, temos falhado com louvor.
Comentários