Em dezembro de 2022, o Esquerda Online publicou um artigo de Paulo Aguena “Catatau” sobre as rupturas e fragmentações na esquerda socialista. O texto analisava os casos em que as minorias políticas dentro de uma organização revolucionária crescem e ameaçam a maioria constituída. Catatau afirmava que isso muito frequentemente provoca rupturas e explosões no regime das organizações, mesmo quando estas reivindicam uma tradição antistalinista. É um tema importante que reflete a realidade de muitas cisões recentes.
Mas há uma outra situação: o que dizer dos casos em que as minorias partidárias não ameaçam de modo algum a maioria da direção? São, digamos, 10%, 20% de uma corrente ou mesmo alguns poucos quadros? O problema parece simples (“se não ameaçam a maioria, nada muda!”), mas não é. Muitas vezes quadros importantes de uma organização sustentam – às vezes durante anos – posições bastante divergentes da maioria. Constituem-se em uma espécie de corrente de opinião permanente dentro de uma organização que reivindica o centralismo democrático. Não se trata de que atuam como fração clandestina ou de maneira desleal (isso seria outro problema), mas de que simplesmente expressam de forma individual suas opiniões divergentes em cada ocasião. Em outras situações, surgem divergências episódicas, porém agudas, que geram fortes crises e também ameaçam a estabilidade do tecido partidário, quebra das relações de confiança, mágoas recíprocas etc. Como uma direção baseada em princípios leninistas de organização deve atuar em tais casos? Há muitos perigos envolvendo essa situação.
O papel da direção
O primeiro perigo diz respeito ao próprio processo de discussão. Salvo casos de infiltração policial ou outras anormalidades, toda direção deve partir do princípio de que as discussões que enfrenta não são invenções arbitrárias dos indivíduos que as verbalizam, mas expressões legítimas de certos aspectos da realidade. O real é complexo e contraditório e de fato fornece material para muitas posições, matizes, nuances etc. A situação está madura para uma greve? Ora, a categoria é grande, heterogênea e certamente há elementos para uma e outra resposta, e talvez uma terceira. Assim, a primeira coisa é tratar as posições divergentes com respeito. Não ridicularizar, não menosprezar, não tratar como absurdos sem pé nem cabeça, não deixar sem resposta.
O segundo perigo é o que poderíamos chamar de massacre das posições divergentes. Em uma plenária onde há um ou dois companheiros defendendo uma posição dissidente, não é necessário que os outros 95% do auditório destruam a posição minoritária “até não restar pedra sobre pedra”. Não somos Rosa Luxemburgo polemizando contra Bernstein sobre reforma ou revolução. Não é hoje ou nunca. Não é tudo ou nada. É preciso equilíbrio. Uma direção sábia não pode nunca descartar a hipótese de estar errada em uma questão tática, em uma análise da correlação de forças. É preciso deixar uma porta aberta. Se uma direção majoritária massacra uma posição minoritária divergente, isso inibe futuras desavenças e cria na organização um clima de que toda divergência será tratada como “a divergência final”, “estratégica”, “de princípios” e outros exageros. As pessoas se sentem estigmatizadas, se desiludem e se afastam. Pode ser que estejamos diante de uma polêmica decisiva. Mas na maioria dos casos não será assim. Não se trata apenas da forma da polêmica, que obviamente deve ser respeitosa, mas inclusive do conteúdo. Procurar sínteses, mediações, acordos, mesmo quando é possível vencer no voto. Não é uma regra obrigatória (às vezes é preciso ir a voto!), mas pode ser útil na superação de crises presentes e futuras.
O terceiro perigo é o excesso de formalismo. Temos um estatuto que regulamenta as regras do debate e isso é essencial. Uma tendência tem tais direitos, uma fração tem tais prerrogativas. Mas uma direção previdente sabe ser flexível e às vezes fornecer a uma minoria mais direitos do que a ela caberia estatutariamente. Por que deixar a organização em dúvida se houve ou não espaço para o debate? Isso só abalaria as relações de confiança. Por que não permitir que a minoria desenvolva amplamente seus argumentos e sua luta política, dentro, sempre, é claro, dos limites do razoável e do saudável? Contrainformes, votações secretas, incorporação das minorias à direção durante os pré-congressos etc. – esses e outros mecanismos podem ser úteis para que na organização se desenvolva um clima de liberdade política, incentivo ao debate e valorização do contraditório.
O quarto perigo é a deslealdade no debate. Nas plenárias e reuniões abertas, reconhecemos o valor daqueles que divergem e a legitimidade das questões que levantam, mas nos corredores da organização faz-se uma campanha secreta contra a minoria: são oportunistas, são sectários, suas posições nos levarão ao abismo, são reformistas etc. Isso é agir deslealmente. Pode ser que uma minoria desenvolva posições deletérias em uma organização. Se isso acontece, o problema precisa ser tratado abertamente, não nos corredores e pelas costas daqueles exatamente que apresentam tais posições. Mais grave ainda se a deslealdade no debate é acompanhada de medidas organizativas igualmente desleais: punições morais ou disciplinares às vésperas do congresso para desmoralizar os oponentes, mudanças de local de militância para isolar os dissidentes, troca de tarefas para confundir balanços etc. Toda medida organizativa, mesmo quando necessária e justa, precisa ser muito bem pensada à luz do debate em curso e subordinada à saúde do regime partidário.
O quinto perigo é o isolamento das posições derrotadas. Realizou-se o congresso. A minoria foi derrotada. O que fazer agora? É verdade que a condução da organização é prerrogativa da maioria, mas isso diz respeito fundamentalmente à linha política, não às pessoas em si. Uma organização saudável deve incluir em sua direção membros da minoria derrotada. É preciso estender a mão aos camaradas derrotados e incorporá-los em posições de responsabilidade. Os dissidentes devem ser valorizados pela batalha que deram, não punidos com a exclusão das equipes. A minoria deve ter a mesma oportunidade que a maioria de aplicar como direção a linha vitoriosa e fazer o balanço depois. Se a incorporação da minoria se dará via proporcionalidade ou representação especial, é secundário. Depende do estatuto e da tradição política da organização. O fundamental é que a direção não abra mão da presença dos quadros da minoria. É preciso confiar que a realidade resolverá as diferenças em um ou outro sentido. O objetivo não deve ser ter razão, mas sim acertar na linha. Para isso, precisa-se de todos.
A responsabilidade da minoria
Para se tornar um dia maioria, é preciso saber ser minoria. Ser minoria implica responsabilidades. Ser um quadro com peso suficiente para arrastar atrás de si outros militantes é uma condição que também demanda sabedoria. As diferenças são importantes durante os períodos pré-congressuais. Mas, uma vez tomada a decisão, a dialética partidária exige que predomine o trabalho conjunto, mais do que a polêmica interna. Isso não quer dizer que não haja luta política entre congressos. Há, mas ela está subordinada à aplicação da linha votada.
Assim, uma minoria se dissolve como tendência ou fração depois do congresso, mas os indivíduos que a compõem não abrem mão de suas opiniões. Que bom que é assim. Isso torna a organização viva, com debates permanentes e sempre com algum grau de luta política sobre as mais variadas questões. Mas também aqui é preciso equilíbrio. Uma organização pode ter debates permanentes, mas não pode viver em estado contínuo de deliberação. São coisas diferentes. O estado de deliberação significa a paralisia relativa da organização enquanto uma decisão não foi tomada. Isso é admissível de tempos em tempos, quando se está em período pré-congressual. Mas uma vez tomada a decisão, é preciso seguir adiante.
Uma minoria deve, portanto, vigiar a maioria e lutar por suas posições individualmente. Mas não pode transformar a vida interna de uma organização em um pré-congresso sem fim. Certas questões precisam ser superadas e a organização deve seguir adiante e aplicar a linha votada. Não há fórmula exata. É preciso inteligência. Seria equivocado, a cada questão colocada, tentar “empurrar um pouquinho” a organização em direção às posições derrotadas. O melhor que uma minoria pode fazer, ao ser derrotada, é oferecer sua leal colaboração na aplicação da linha vitoriosa. Isso tornará o balanço menos confuso, os erros aparecerão com mais evidência e o próximo congresso poderá realmente avançar em conclusões.
A organização que queremos
Por que isso tudo é importante? Porque a organização socialista que precisamos construir neste século 21 deve ser necessariamente heterogênea, mas ao mesmo tempo fortemente centralizada para a luta política. Essa combinação, tão simples na teoria, é uma das coisas mais difíceis de se obter na prática. Até agora, a esquerda antistalinista fracassou neste quesito. Mesmo reivindicando as melhores tradições democráticas da fração bolchevique, construiu, na maioria das vezes, organizações cuja direção era extremamente homogênea, avessa ao debate polêmico, e mais se assemelhava a uma fração contraposta a qualquer outra fração que surgisse. Isso levou à explosão ou simples desagregação de dezenas de valiosas correntes e é parte da explicação para a lamentável situação do movimento socialista contemporâneo.
De alguma forma, a esquerda antistalinista absorveu o mito stalinista da infalibilidade da direção e criou regimes partidários muito pouco saudáveis, onde prevalece a autoproclamação, a autoindulgência e a autossatisfação com a mera sobrevivência ou, na melhor das hipóteses, com os pequenos acertos e pequenos ganhos.
É provável que a superação completa da fragmentação da esquerda socialista já não seja possível, mas talvez seja possível diminuir a sua dramaticidade. Pelo menos em médio prazo. Não podemos ter uma única organização unificada, mas quem sabe não precisemos ter centenas de microgrupos “tão marginais que nem sabem que são marginais”. A responsabilidade está com as direções, mas também com as minorias. A complexidade da situação política neste século 21 tende a fazer aumentar nossas diferenças, não diminuir. Se não pararmos de ceder ao impulso da ruptura, será o nosso fim. Buscar sínteses, unificações, trabalhar conjuntamente, romper com o ultimatismo, o catastrofismo e o impressionismo, entender que a nossa luta é de longo prazo e exige firmeza, mas também paciência histórica. Esses talvez sejam alguns mecanismos a serem utilizados para se avançar na construção de nossas organizações.
Um exemplo instrutivo
Passou-se um século desde a morte de Lênin, mas a melhor referência que temos na construção de organizações socialistas radicalmente democráticas segue sendo o partido bolchevique. Não porque ele tenha sido perfeito ou porque deva ser copiado à exatidão neste século 21, mas apenas porque, aparentemente, foi a experiência mais rica. Ela até hoje fornece material para a reflexão e quase tudo de importante que se fez depois tem como inspiração essa fração interna do Partido Operário Social-Democrata Russo.
O stalinismo nos oferece o mito do partido bolchevique monolítico, dirigido com mão de ferro por um secretariado homogêneo. Acusamos Stálin de ter mandado matar Zinóviev e Kámeniev e ouvimos em resposta: “Aqueles fracionalistas?”. É incrível o que se vê pela internet…
Mas o verdadeiro partido bolchevique não é aquele nascido da reação termidoriana a Outubro na segunda metade dos anos 1920 e 1930, e sim a fração não-dogmática surgida ao longo de toda a luta revolucionária russa, desde o final do século 19 até o início dos anos 1920, com seu regime plástico, suas polêmicas permanentes, seus congressos frequentes e seu clima de liberdade, crítica e elaboração coletiva.
Tal fração surgiu, por um lado, das condições da luta, mas por outro, da cabeça do homem que a construiu, dirigiu e conduziu à vitória. Lênin se preocupava particularmente com a construção da direção. É notória sua capacidade de agrupar em torno de si pessoas extremamente diversas, fazendo-as trabalhar em equipe e colaborar de maneira produtiva. Em particular, sabia lidar com as minorias (em alguns casos até maiorias!) que surgiam ao longo do caminho. Em O partido bolchevique, o historiador francês Pierre Broué destaca a capacidade de Lênin de lidar com o contraditório:
“Entretanto, nunca perde de vista a necessidade de conservar a colaboração e o trabalho em equipe com aqueles com quem está mantendo um duelo dialético. Durante a guerra, Bukhárin e ele não chegam a um acordo a respeito do problema do Estado; Lênin lhe pede então que não publique nenhum trabalho sobre esta questão para não acentuar os desacordos sobre alguns pontos que, em sua opinião, nenhum dos dois estudou suficientemente”. (Pierre Broué, O partido bolchevique, 2014, p. 67)
Em outra obra, o próprio Lênin enfatiza a necessidade de integrar sem ressalvas à direção mesmo companheiros que cometeram importantes erros políticos:
“Não seguirei caracterizando os demais membros do CC por suas características pessoais. Recordarei apenas que o episódio de Zinóviev e Kámeniev em Outubro não é, naturalmente, uma casualidade, mas que disto não se pode culpá-los pessoalmente, assim como a Trótski pelo seu não-bolchevismo”. (Lênin, Últimos escritos e Diário das secretárias, 2012 p. 75)
Lênin se refere aqui ao fato de que Zinóviev e Kámeniev se posicionaram contrariamente à tomado do poder pelos sovietes em outubro de 1917 e inclusive vazaram o debate interno para a imprensa burguesa como forma de pressionar o Comitê Central bolchevique. Qual foi a postura de Lênin? Ficou furioso, é verdade. Mas após a vitória da insurreição, Zinóviev se tornou presidente de III Internacional, enquanto Kámeniev assumiu a condução da organização moscovita do partido bolchevique. Nenhuma mágoa, nenhuma vingança pessoal. Apenas bola pra frente e trabalho conjunto em benefício da causa.
Na construção de nossas modestas organizações, temos o enorme desafio de reproduzir pelo menos parte da ampla democracia interna que caracterizou a verdadeira fração bolchevique. Nesse esforço, uma das questões mais importantes é o trabalho com as minorias, a valorização de seus quadros, a superação das diferenças e a integração às tarefas de direção.
Referências
LÊNIN, Vladimir. Últimos escritos e Diário das secretárias. São Paulo: Editora Sundermann, 2012. 160 p.
BROUÉ, Pierre. O partido bolchevique. São Paulo: Editora Sundermann, 2014. 536 p.
Comentários