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MUNDO

“Desviam a atenção”: dura resposta das comunidades mapuches após acusação de Ignacio Torres, governador de Chubut, pelo incêndio no Parque Nacional Los Alerces

O governador de Chubut culpou a Resistência Ancestral Mapuche (RAM) pelo incêndio que começou há uma semana e ainda está fora de controle no parque nacional; Indígenas falam em “discurso racista”

Por Paz García Pastormerlo, com tradução de Waldo Mermelstein

29 Conferência Industrial; Unión Industrial Argentina; Ignacio Torres governador eleito de Chubut Mauro Alfieri

SAN CARLOS DE BARILOCHE.– Depois que o governador de Chubut, Ignacio Torres, responsabilizou a Resistência Ancestral Mapuche (RAM) pelo incêndio que ainda está fora de controle no Parque Nacional Los Alerces–que está ativo há uma semana e foram consumidas mais de 2474 hectares de mata nativa–, várias comunidades mapuches vieram a público repudiar suas declarações e alertar sobre a violência racista que geram.

Historicamente, a imagem da violência foi construída sobre o povo mapuche: invasor, assassino e agora terrorista, negando sua preexistência ao Estado [argentino]. Esse discurso tem sido usado para endossar a violência estatal, que ocupou o território da Patagônia há 145 anos, após uma campanha genocida. Atualmente, a defesa do território pelas comunidades mapuche Tehuelche contra o extrativismo selvagem é classificada como terrorismo. Esse argumento é para ser usado para mandar o Exército de volta ao território”, disse o coordenador do Parlamento Mapuche Tehuelche de Rio Negro.

Por terra e pelo no ar, o combate ao fogo continua no Parque Nacional Los Alerces (Cortesia da APN)

E acrescentaram: “Nesse discurso antimapuche, o governador se arroga o direito de reconhecer quem é mapuche e quem não é, algo claramente contrário à lei. Anos atrás éramos nós que ameaçamos a soberania da Argentina, hoje somos nós que incendiamos nosso próprio território? O governador diz que a intencionalidade dos incêndios e a responsabilidade do povo mapuche Tehuelche são dadas porque por trás de cada conflito comunitário há um negócio imobiliário de terras. É ilógico, não somos nós que negociamos o território com empresários estrangeiros. Não somos os invasores. Não somos nós que ateamos fogo no nosso próprio território.”

Poucas horas após  o início do incêndio no Parque Nacional Los Alerces, Torres atribuiu o incêndio à RAM. “A RAM [é composta de] charlatões, têm de mapuches o que eu posso ter de sírio-libanês. São criminosos que têm um negócio imobiliário e que fazem essas coisas. O problema não são os povos originários, o problema são esses criminosos que tomam terras sob bandeiras falsas, é hora de acabar definitivamente com isso”, disse.

Ao mesmo tempo, o mandatário se concentrou  em uma ocupação que a comunidade mapuche Paillako realiza desde dezembro de 2020 em uma parte daquela área protegida. “Neste momento há uma ocupação no parque, o que é crime, independentemente de ter ou não a ver com o incêndio”, disse o governador de Chubut.

A ocupação do setor de El Maitenal deu origem a um processo judicial em que dois membros da comunidade Paillako são acusados. Um deles é Cruz Cárdenas, a quem alguns proprietários que tiveram suas casas queimadas em outros incêndios dentro do parque nacional apontam como o “autor intelectual” dos focos de incêndios.

O fogo está ativo há uma semana e já consumiu mais de 2474 hectares de mata nativa.

O processo por usurpação foi levado a julgamento e aguarda data. Em entrevista ao La Nacion, Laura Taffetani, advogada no caso Paillako, disse que é um “caso muito particular porque, na realidade, muitos dos membros da comunidade Paillako são filhos das famílias chamadas de povoadoras, que se estabeleceram lá antes da criação de Parques na década de 1930”. Um deles, Cruz Cardenas, era guarda florestal.

Taffetani, que é secretária-geral do Sindicato dos Advogados da República Argentina, acrescenta que muitos filhos de moradores da área protegida iniciaram um processo de recuperação da identidade mapuche: “Faz-se perícia antropológica, com as raízes mapuches. Mas esse processo foi muito mal conduzido pelos Parques e pelos próprios colegas de classe dos meninos. Houve até situações de bullying, não lhes foi permitido fazer cerimónias típicas. Então, decidiram montar a comunidade no local. Nesses anos, instâncias de diálogo foram geradas, mas não se cristalizaram em acordos. E, ao mesmo tempo, avançou o processo por usurpação da seccional.”

O advogado lembrou que, no verão passado, o então ministro do Meio Ambiente, Juan Cabandié, também culpou Cruz Cárdenas pelos incêndios em Los Alerces: “A verdade é que, como Torres agora, nunca houve queixas concretas. São saídas em que desviam a atenção, além de fomentar uma atitude racista, sem falar no problema real, sejam quais forem as causas dos incêndios florestais.”

Segundo Taffetani, “quando se fala em terrorismo, não se admite defesa, é um termo que deslegitima ao máximo”. E acrescentou: “O tema da RAM já passou pelos tribunais e ficou demonstrado que não existe, que é uma invenção. Na Argentina, a realidade dos povos indígenas é diferente da do Chile, onde desenvolveram outro tipo de luta. Além disso, de onde eles tiraram isso? Não há provas, é porque lhes vêm à cabeça”.

“Luta histórica”

Enquanto isso, o pessoal da comunidade Paillako disse: “Queremos deixar claro que o povo mapuche tem lutado  pela ñuke mapu (terra mãe, no idioma mapuche) historicamente, as florestas são uma parte essencial de nossa biodiversidade e nunca as prejudicaríamos”. Eles também repudiaram o que consideram uma tentativa de Torres de “dividir nosso povo, tentando estabelecer mais uma vez a ideia de ‘bons e maus mapuches'”.

Na mesma linha, membros da comunidade Pillañ Mawiza realizaram uma coletiva de imprensa na qual repudiaram as declarações de Torres. A guerreira e ativista mapuche Moira  Millán, que pertence àquela lof (organização territorial tradicional dos mapuche), disse que “o governador está desviando o foco de onde o crime de terricida se origina no Parque Nacional Los Alerces”.

Devido ao novo incêndio no Parque Nacional Los Alerces, o governador apontou para a RAM (Gentileza APN)

Millán destacou que a acusação do governador de Chubut “é um absurdo e  essas declarações representam um perigo, têm uma clara conotação racista, sem perguntar quem são os beneficiados pelos incêndios. Quem se beneficia dos incêndios? É óbvio que o povo mapuche não.”

Enquanto isso, o Movimento de Mulheres e Diversidades Indígenas pelo Bem Viver denunciou uma “operação midiática contra Moira Millán, acusando-a de ser a nova chefe da RAM”. Eles alertaram que “precisam de um inimigo interno para justificar o ódio e a espoliação territorial contra a população mapuche, e também contra os não-mapuches, que acompanham a luta pela recuperação das terras roubadas e contra o terricida”.

As diferentes comunidades mapuche vêm apontando que, por trás dos múltiplos incêndios ocorridos nos últimos anos no Parque Los Alerces e em outras áreas da Patagônia, há interesses comerciais. “Sabemos dos interesses extrativistas que, por exemplo, o magnata latifundiário Lewis realiza dentro do parque nacional. Há algumas semanas anunciaram a construção de uma hidrelétrica, entre outros interesses imobiliários que existem bem na área onde o fogo começou”, disse a comunidade Paillako.

Questionados sobre a dura resposta causada pelas palavras de Torres, porta-vozes do governador lembraram o esclarecimento já feito pelo mandatário, que disse ser “claro na hora de falar” e acrescentou que não generalizou: “Temos que separar os povos originários dos criminosos que não estão legalmente constituídos, como é o caso da ocupação no Parque.  Isso não tem nada a ver com os povos originários.” Em relação a isso, ele afirmou que “eles falsamente se envolvem em uma alegação que é legítima“.

Notas

1 Termo cunhado pela guerreira mapuche e que tem ampla aceitação no movimento indígena argentino (https://www.prensalatina.com.br/2021/04/25/moira-millan-persevera-contra-o-terricidio-na-argentina/)

Original em: https://www.lanacion.com.ar/sociedad/desvian-la-atencion-dura-respuesta-de-comunidades-mapuches-tras-la-acusacion-de-torres-por-el-nid01022024/

Marcado como:
Argentina / Incêndio