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MUNDO

Guerra, fascismo e resistência: perspectivas sobre o imperialismo russo

Uma atualização e perspectiva sobre a situação política atual na Rússia: estabilização da sociedade russa, conquista da Ucrânia por meio de uma guerra imperialista, estímulo ao conflito com os EUA e a OTAN, nova ofensiva bélica na primavera e manipulação das eleições.

Ilya Budraitskis, do portal Tempestmag. Tradução de Paulo Duque, do Esquerda Online.
Kremlin

A guerra do imperialismo russo na Ucrânia não mostra sinais de encerramento. Neste verão e outono, testemunhamos um duelo de ofensivas, primeiro partindo da Ucrânia para libertar seus territórios ocupados e uma contraofensiva da Rússia para tomar territórios que ainda não tinha.

Moscou lançou recentemente um ataque maciço de foguetes contra a Ucrânia, visando civis e infraestruturas na véspera de Ano Novo. A cidade fronteiriça russa de Belgorod se tornou alvo para ataques com mísseis de retaliação. A Rússia tem meio milhão de soldados na linha de frente para defender sua ocupação e precisará de mais para a completa ofensiva que pode se iniciar na primavera.

Vladimir Putin e a classe dominante russa estão determinados a continuar com essa guerra até o fim. Putin deixou isso claro em seu evento anual de perguntas e respostas, chamado “Linha direta com Vladimir Putin” em 14 de dezembro, em que respondeu cuidadosamente a perguntas selecionadas do público durante várias horas.

Ele disse que o objetivo da chamada Operação Militar Especial continua a ser a chamada “desnazificação” e “desmilitarização” da Ucrânia. Isto significa que tenciona continuar a guerra até que atinja uma mudança de regime na Ucrânia e a transformação da Ucrânia em uma semi-colônia russa.

Para conseguir isto, seu regime está tentando estabilizar a sociedade russa, alimentar o conflito político com os EUA e os países da OTAN, legitimar seu governo por meio das eleições presidenciais de março e mobilizar as tropas russas para uma nova ofensiva na primavera.

Estabilização da sociedade russa

O regime se envolveu em uma intensa campanha para estabilizar a sociedade russa depois da tentativa de golpe liderada por Yevgeny Prigozhin e seu Grupo Wagner no último verão. Putin superou o maior desafio de seu governo por meio da combinação de recompensas e punições.

Ele ofereceu acordos para que os mercenários do Grupo Wagner voltassem ao regime. Alguns generais do exército que estavam próximos do grupo Wagner foram presos. No caso do próprio Prigozhin, Putin mandou o matar em agosto em um ataque com foguetes não muito longe de Moscou que explodiu o avião do senhor da Guerra.

Então, ele separou o grupo Wagner, integrantes partes dele no Ministério da Defesa russo e permitindo que outros fossem retidos pelo filho de Prigozhin, assim como por outras empresas militares privadas.

A contínua existência de tais empresas pode representar um futuro problema para o regime, especialmente se a guerra correr de maneira ruim. Isto poderia conduzir a divisões entre o Estado e as empresas sobre quais estratégias e táticas militares poderiam desestabilizar novamente o regime.

Além disso, o golpe de Prigozhin mostrou a existência de uma dissidência oculta entre os oficiais do exército. Mas, por agora, a estratégia de cooptação e repressão de Putin superou a crise precipitada por Prigozhin.

Putin também conseguiu estabilizar a economia, pelo menos por enquanto. O regime de sanções não prejudicou a economia russa como esperado. O regime e as empresas do país têm criado modos variados de contornar as sanções.

Aumentaram o comércio e o investimento por meio de estados neutros, como os da Ásia Central, bem como a Turquia, os Emirados Árabes e muitos outros do Sul Global, particularmente. Estes países têm resistido à pressão dos EUA para manterem o regime de sanção.

Além disso, as empresas estatais de petróleo russas têm estabelecido novos acordos de exportação com muitos países, especialmente com a China, o que também manteve a economia impulsionada. Assim, as sanções não lançaram a economia russa em uma crise, nem impediram o Estado de continuar a guerra na Ucrânia.

Apesar da resiliência da economia russa, esta enfrenta numerosos problemas. Por exemplo, a inflação está crescendo e colocando sérias dificuldades econômicas para a maioria dos russos comuns.

Em resposta, o Banco Central russo acaba de aumentar as taxas de juros para mantê-las sob controle. Mas isso pode causar, ao contrário, uma desaceleração da economia, aumentando o desemprego e atacando ainda mais a classe trabalhadora.

Para manter a hegemonia sobre a população, Putin recorreu à repressão e à ideologia neofascista. Ele tem reprimido quase toda a dissidência de esquerda, especialmente os ativistas antiguerra.

Ao mesmo tempo, tentou conquistar o consenso da população por meio do nacionalismo étnico russo, demonizando qualquer grupo que ameaçasse isso. Por exemplo, alertou que os imigrantes muçulmanos da Ásia Central na Rússia ameaçavam o equilíbrio étnico no país.

O líder da Igreja Ortodoxa Russa, o Patriarca Kirill, ultrapassou Putin neste tipo de Islamofobia. Em recente discurso, que poderia ter sido feito por Trump ou Enoch Powell, alertou para a ameaça civilizacional representada por muçulmanos e imigrantes em geral.

Enquanto o regime e a Igreja estão usando tal nacionalismo étnico para trazer coerência para sua base, isto pode não ser o esperado. Tal fanatismo pode provocar a dissidência entre os 15 milhões de cidadãos muçulmanos do país, que compreendem cerca de 10% da população.

Putin também lançou uma campanha intensa para impor os chamados valores tradicionais e familiares. Ele tem como alvo as feministas e LGBTI+, consideradas ameaças à sociedade russa.

O regime está prestes a impor um total proibição do direito ao aborto, após recentemente retirar a permissão em clínicas privadas. Também foi anunciada uma total proibição de grupos, eventos e clubes noturnos LGBTI+.

Nesse ponto, Putin tem conseguido estabilizar a sociedade russa por meio da repressão e tais campanhas ideológicas.

Conquista da Ucrânia

Baseado nessa busca de estabilidade, Putin quer fazer uma escalada da guerra na Ucrânia. Seu objetivo imediato é tomar o resto da região de Donbas, que possui um significado simbólico no imaginário imperialista de Putin e suas justificações para a guerra.

A provável ofensiva da primavera se desdobrará em etapas. O objetivo é tomar Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia, e estabelecer uma nova fronteira no Rio Dnipro.

O plano seria dividir a Ucrânia em duas partes. Primeiro, a Rússia anexaria todo o território ao leste do rio Dnipro. Segundo, buscaria estabelecer o resto do país a oeste do rio Dnipro como um Estado neutro “desnazificado” (dependente da Rússia).

Mas isso seria apenas um objetivo temporário. O Estado russo permanece determinado a expandir seu império para o resto do espaço pós-soviético.

Fomento do conflito com os EUA e a OTAN

Putin está apostando na ascensão da extrema-direita nos EUA e na OTAN para minar a oposição ao seu expansionismo imperialista. Durante seu evento de perguntas e respostas, Putin também enfatizou que o Ocidente está muito dividido sobre a ajuda à Ucrânia.

Citou especificamente o conflito entre os Republicanos e a administração Biden em relação ao pacote de ajuda proposto para o país. Putin deixou evidente que poderia saudar uma vitória republicana, especialmente de Trump, na eleição presidencial dos EUA, já que a nova administração provavelmente reduziria, se não interrompesse, todo o apoio à Ucrânia e até mesmo sair da OTAN.

Também está cortejando a extrema-direita dos demais países da OTAN. Está fomentando as tensões com a Finlândia, um novo membro do pacto. Seguindo o exemplo do presidente da Bielorrússia, Lukashenko, Putin deu as boas-vindas aos imigrantes do Iraque, Afeganistão, Líbia e outros países, os encorajando a entrar na União Europeia pela fronteira finlandesa.

Ele está fazendo isso para provocar uma crise na atual política dominante, proporcionando o crescimento da política anti-imigração da extrema-direita na Finlândia e na União Europeia em geral.

Espera que seu crescimento e sucesso enfraqueçam a OTAN a partir de dentro. Assim, os meios de comunicação oficiais russos celebram a recente vitória do político de extrema-direita Geert Wilders nas eleições holandesas, que concorreu com uma plataforma islamofóbica e anti-imigrante.

Por último, Putin está tentando explorar a brutal guerra de Israel em Gaza em seu proveito contra os EUA e seus aliados da OTAN, que têm armado e dado suporte a Israel. Oficialmente, a Rússia apela para uma solução entre os dois Estados, apoia um cessar-fogo e a ajuda humanitária da ONU.

De fato, tudo isso é hipócrita. A Rússia está engajada exatamente no mesmo movimento de guerra de anexação na Ucrânia que Israel faz com Gaza. E, por trás dos apelos, Putin mantém relações políticas, diplomáticas e econômicas com Israel.

No entanto, está explorando a horrível guerra de Israel para se reabilitar, especialmente no Sul Global, e enfraquecer os EUA e a OTAN. Ele espera que isso lhe permita ter mais espaço para prosseguir sua própria ambição imperialista na Ucrânia e no resto da Europa do Leste e na Ásia Central.

Mobilização e recrutamento para a ofensiva na primavera

O compromisso de Putin com esse projeto exigirá que imponha uma ampla mobilização de tropas e, possivelmente, um recrutamento. Ele terá de recrutar centenas de milhares para equipar as forças armadas e realizar novas conquistas. Isto poderá representar sérios problemas políticos para Putin.

Putin não fará nada disso antes das eleições presidenciais em março. Ele e o resto do Estado querem manter um espírito positivo na sociedade russa até esse momento.

Depois das eleições, é muito provável que aumentarão a mobilização no fronte [de guerra]. Até o momento, cerca de apenas 40% das tropas russas na Ucrânia vieram do recrutamento, enquanto o restante são os chamados voluntários, constituídos por pessoas comuns que se juntaram às forças armadas para ganhar uma vida melhor.

Os soldados ganham mais do que se fossem trabalhadores comuns. O salário médio oficial é de cerca de 600 dólares, mas a maioria das pessoas ganha cerca de 300 dólares por mês. Nas forças armadas, por outro lado, os soldados podem ganhar entre 2 mil e 3 mil dólares por mês.

Então, para milhões de russos, especialmente nas desesperadas cidades industriais das províncias, ser militar é uma oportunidade para escapar da pobreza. Isto explica o sucesso da garantia dos chamados voluntários.

Na realidade, isto é um projeto de pobreza, mas o governo usa isso para redistribuir a riqueza e criar um amplo setor da população que se beneficia da guerra. De fato, muitos pagaram caro, perdendo sua saúde mental, membros e vida.

A situação para as pessoas recrutadas é e será totalmente diferente. Elas não são muito bem pagas e, ao contrário dos soldados profissionais, sua permanência nas forças armadas e seus turnos de serviço não são limitados.

Então, a convocação já tinha provocado alguns protestos, especialmente de familiares e parentes daqueles obrigados a cumprir o serviço militar. Organizam petições e até enviaram centenas de questionamentos no evento “Linha direta” de Putin. É claro, estas questões são selecionadas e não colocadas para ele.

Isto mostra a base de oposição a qualquer novo projeto. Provavelmente assumirá a forma de um protesto espontâneo e auto-organizado. Isso pode fornecer uma abertura para construir um movimento antiguerra na Rússia.

Manipulação das eleições para legitimação do regime

Mas tudo isto só se desenvolveria após as próximas eleições presidenciais. É claro que não será nada genuíno. Não haverá campanhas ou debates verdadeiros e o resultado é preordenado. Putin irá vencer.

Apesar disso, a eleição é importante para dar ao seu governo um ar de legitimidade e demonstrar apoio popular a ele e à sua guerra. A mídia do Kremlin já prevê os melhores resultados de sua carreira política.

As estimativas são de que cerca de 70% dos cidadãos comparecerão às eleições e, entre estes, 80% provavelmente voltarão em Putin. É claro que não devemos confiar nestes números, nem nos resultados das eleições.

Todo o processo se baseia na retirada da genuína oposição e na exclusão e prisão de dissidentes como Alexey Navalny. É claro que haverá candidatos cuidadosamente controlados e autorizados a concorrer para dar uma aparência de democracia.

A votação propriamente dita acontecerá durante três dias, presencial e eletronicamente. Essas duas formas serão fortemente policiadas pelo Estado, sem qualquer controle de observadores independentes.

Todas as redes de monitoramento eleitoral foram destruídas. Por exemplo, neste verão, a maior rede chamada Voice foi proibida e um dos seus principais organizadores preso.

Assim, estas eleições são o oposto de eleições livres, abertas e justas. Na verdade, são um meio para o Estado coagir a população à obediência política.

A maioria das pessoas empregadas no setor público e nas empresas estatais será forçada a votar eletronicamente nos seus locais de trabalho. Caso alguém vote dessa forma, todos seus dados pessoais ficarão à disposição do Estado.

Assim, as autoridades estatais e os patrões poderão monitorizar os votos e “corrigir” o resultado, se necessário. No entanto, os eleitores terão a ilusão de escolha.

Haverá outros candidatos, cuidadosamente avaliados, autorizados a concorrer em partidos da pseudo-oposição leal, como o Partido Comunista. Todos os candidatos autorizados a concorrer têm posições agressivas e pró-guerra.

Nenhum candidato e partido verdadeiramente anti-guerra será permitido nas urnas. Portanto, não representam realmente nenhum desafio a Putin, nem mesmo darão voz a qualquer sentimento anti-guerra. Eles concorrerão uns contra os outros, dividindo os 20% dos votos que não irão para Putin.

A oposição russa, que está na clandestinidade ou no exílio, está debatendo como abordar as eleições. Os apoiantes de Navalny já apelaram ao voto em qualquer candidato além de Putin.

Esta não é uma estratégia ruim. Pelo menos oferece às pessoas, que estão muito atomizadas e com medo, uma oportunidade de expressar a sua oposição de alguma forma, ainda que distorcida.

Resistência à guerra e ao fascismo

As pessoas têm toda razão para ter medo do regime. Este esmagou qualquer expressão pública de dissidência sobre a guerra e levando à clandestinidade. Também fez o mesmo com grupos ativistas de qualquer origem.

Trata-se de parte do processo de fascistização do regime. Não é apenas propaganda, mas uma tentativa de impor uma forma brutal de ditadura e mudança da sociedade de uma maneira fundamental. A proibição das LGBTI+ e as restrições do direito ao aborto, a histeria anti-imigrante e a rigorosa censura contra qualquer crítica ao regime buscam uma sociedade homogeneizada e transformar a Rússia em um “Estado civilizatório” fechado.

Nessas condições, a tarefa da esquerda internacional permanece a oposição ao imperialismo russo, a solidariedade com a resistência ucraniana, oposição ao imperialismo ocidental e o apoio à luta que vem do povo na Rússia contra o regime neofascista de Putin.

Original em Perspectives on Russian imperialism: War, fascization, and resistance
O artigo acima representa a opinião do autor e não necessariamente corresponde às opiniões do EOL. Somos um portal aberto às polêmicas e debates da esquerda socialista
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