A figura grotesca do “Padre Kelmon”, que figurou como candidato presidencial em 2022 parece ter saído dos mesmos programas de auditório que tornaram Bolsonaro nacionalmente conhecido há mais de dez anos. Seria algo como um Inri Cristo, que simulando de um suposto renascimento de Jesus, também se popularizou nos mesmos programas de auditório? Na verdade, desde a performance tumultuando os debates eleitorais ficou claro que o tal Kelmon era uma linha auxiliar do bolsonarismo, como ele praticamente confessou.
Agora, o mesmo personagem se lança como pré-candidato à Prefeitura de São Paulo e não é possível esperar que seu comportamento não seja outro senão o de uma linha auxiliar do candidato da extrema-direita apoiado pelo ex-presidente inelegível. Mas essa figura grotesca é bem mais perigosa do quê um folclórico “padre de festa junina”, ou simplesmente um falso padre.
Aliás, se perdeu muito tempo investigando afinal de que suposta igreja seria o tal padre, mas nessa investigação uma revelação parece ter ganhado pouca atenção da esquerda: o sujeito é na verdade um militante vinculado a uma das organizações neointegralistas que orbitam em torno ao bolsonarismo, a Frente Integralista Brasileira (FIB), conforme assinalaram pesquisadores acadêmicos e o jornalista Chico Alves1.
O neointegralismo
De acordo com o historiador Odilon Caldeira Neto é possível caracterizar a existência de um neointegralismo a partir da reorganização do legado da antigo Ação Integralista Brasileira (AIB) após a morte do seu fundador e principal liderança, Plínio Salgado, em 19752. A AIB que funcionou entre os anos 1932 e 1938 no Brasil foi a maior organização fascista fora da Europa naquele contexto. Após o seu fechamento, o movimento se dispersou e Plínio Salgado se exilou no Portugal do Estado Novo de Salazar. Mas quando o Estado Novo de Vargas foi derrubado, Plínio Salgado voltou ao Brasil e em 1946 organizou o Partido da Representação Popular, talvez um dos primeiros exemplos de pós-fascismo, posto que mantendo-se como agremiação de extrema-direita adequou-se ao regime da República de 1946. Esse PRP durou até 1965, quando a ditadura militar dissolveu o sistema partidário anterior, criando o bipartidarismo da ARENA e o MDB. Apoiadores do golpe de 1964 e do regime ditatorial que foi implantado, os seguidores de Plínio Salgado ingressaram na ARENA, tendo exercido o próprio Plínio o cargo de deputado federal.
Evidentemente, os integralistas de Plínio Salgado não foram a força política determinante da ditadura militar, embora tenham conseguido emplacar algumas de suas ideias como a introdução de cursos de Educação, Moral e Cívica nos currículos escolares. A morte de Salgado levou a dispersão do grupo em torno ao líder integralista que, anos depois, buscaram reorganizar-se politicamente num contexto de aparição de outros grupelhos de extrema-direita entre o fim da ditadura militar e o início da República de 1988.
Estimulados pela emergência da internet e posteriormente pela nova esfera pública criada pelas redes sociais, os neointegralistas buscaram unificar-se com outros grupos de extrema-direita (como uma malograda tentativa de fusão dos remanescentes da Tradição, Família e Propriedade no início dos anos 2000). Concretamente hoje o neointegralismo não é um fenômeno unificado, existindo mais de um grupelho, dentre os quais está a Frente Integralista Brasileira (FIB), onde se encontra o Padre Kelmon, mas também outro personagem da órbita do bolsonarismo, como o agora deputado federal distrital Paulo Fernando Melo da Costa, que trabalhou como assessor da ex-ministra Damares Alves. Aliás, a presença de um declarado integralista naquele ministério levou a que Damares declarasse se identificar com os princípios do integralismo3. Ademais, o próprio bolsonarismo resgatou o velho slogan integralista “Deus, Pátria e Família” acrescentando (cinicamente) o termo Liberdade, mesmo sendo o bolsonarismo um movimento evidentemente comprometido com a implantação de um regime ditatorial.
O bolsonarismo e a atualização do fascismo
Para uma parte dos analistas do fenômeno do bolsonarismo este pode ser considerado um fenômeno de atualização do fascismo, o que recorrentemente tenta ser expresso com o termo “neofascismo” adotado por muitas organizações da esquerda. Sem querer entrar no mérito do termo, o que também parece importante assinalar é o que o bolsonarismo é a fusão de várias tendências da extrema-direita, do fundamentalismo cristão às correntes mais radicais do neoliberalismo, como o bisonho anarcocapitalismo, e nesse sentido busca traduzir a composição de forças existentes também no trumpismo. Por outro lado, existem outras tendências que são mais claramente identificadas com o fascismo, boa parte das quais encontrava-se dispersa em diversos grupelhos, mas que estabeleceram e estabelecem variadas relações com o bolsonarismo.
Organizado por ruralistas bolsonaristas em oposição ao MST, aos povos indígenas e quilombolas, em janeiro deste ano o grupo “Invasão Zero” assassinou a liderança Pataxó Hã Hã Hãi, Maria de Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó. Trata-se de uma ação tipicamente fascista, à maneira do squadrismo do fascismo italiano da década de 1920, em que a ação paramilitar é apoiada com a conivência das forças regulares estatais, no caso a Polícia Militar do Estado da Bahia.
Além dos neointegralistas da FIB, podemos lembrar do grupelho neonazista “ucranizante” da Sara Giromini, que também teve guarida no ministério da Damares durante boa parte do governo Bolsonaro. Além disso, o horizonte estratégico da guerra civil (característico do fascismo) manifesta-se no bolsonarismo com a política armamentista, que além de ser bem recebida pelo mercado do crime organizado, estimulam ações de grupos paramilitares que continuam a marcar a cena política. Organizado por ruralistas bolsonaristas em oposição ao MST, aos povos indígenas e quilombolas, em janeiro deste ano o grupo “Invasão Zero” assassinou a liderança Pataxó Hã Hã Hãi, Maria de Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó. Trata-se de uma ação tipicamente fascista, à maneira do squadrismo do fascismo italiano da década de 1920, em que a ação paramilitar é apoiada com a conivência das forças regulares estatais, no caso a Polícia Militar do Estado da Bahia.
Os grupos de CACs espalhados em todo o território brasileiro constituem material humano para iniciativas fascistas desta natureza, daí que quando se fala que o inimigo do momento é o fascismo deveríamos levar bem a sério. Em suma além mesmo do destino do clã Bolsonaro, que ainda cumpre o papel de catalisar todo esse fenômeno mórbido, cumpre atentar para as diversas formas como a ideologia fascistas e suas práticas proliferam.
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