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EDITORIAL

O “novo normal” é a emergência climática

Enquanto o Brasil bate recordes de eventos climáticos extremos, governos insistem em negar o óbvio. 

Editorial Esquerda Online
Defesa Civil Porto Alegre

Já era noite da terça-feira, 16 de janeiro, quando a forte tempestade chegou a Porto Alegre e região metropolitana. Não se pode dizer que foi uma surpresa, ao menos 24 horas antes o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), emitiu alertas de nível vermelho para toda região, projetando chuva intensa de mais de 100mm, queda de granizo e ventos de até 100 km/h.

A prefeitura de Sebastião Melo (MDB), o governo de Eduardo Leite (PSDB), assim como o Grupo Equatorial Energia, mesmo recebendo esse “spoiler” do Inmet, seguiram o mesmo roteiro de sempre: Não foram a campo executar plano de contingência, permaneceram inertes, e na manhã do dia 17, perante um cenário onde 1,2 milhão de pessoas ficaram sem água e 714 mil imóveis sem energia, foram pra TV e internet se desresponsabilizar pelas consequências. A culpa pelo apagão e pela falta d’água, mais uma vez, foi da imponderável força da natureza.

Embora mudem os personagens, as desculpas são sempre as mesmas

No próprio Rio Grande do Sul, meses antes, em setembro, a passagem de um ciclone extratropical atingiu mais de 100 municípios, com maior gravidade na região do Vale do Taquari. Ao todo, 51 pessoas morreram e outras 30 mil ficaram desabrigadas e desalojadas. O que disseram as autoridades na época? As mesmas desculpas de agora. Em novembro, a cidade de São Paulo sofreu com um apagão que em várias regiões perdurou por uma semana, afetando um total de 2 milhões de pessoas. O que disseram o prefeito Ricardo Nunes (MDB), o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o Grupo ENEL? A mesma hipocrisia perante a tragédia e o mesmo jogo de empurra para tentar se eximir de responsabilidade.

Há quase um ano, o temporal mais intenso num período de 24 horas da história do Brasil atingiu a região de São Sebastião, no litoral paulista. Ao todo, 64 pessoas morreram. No verão anterior, entre janeiro e fevereiro de 2022, a temporada de chuvas que assolou São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia, já havia tido como consequência as mortes de 254 pessoas, e deixado outras 170 mil desabrigadas ou desalojadas. No sul da Bahia, por volta de 660 mil pessoas foram afetadas pelas fortes chuvas.

Embora mudem os personagens, as desculpas são sempre as mesmas. Por todo o Brasil, governantes insistem em negar o óbvio: As mudanças climáticas chegaram pra ficar. Segundo dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), o Brasil registrou um recorde de incidência de eventos climáticos extremos em 2023. Foram ao todo 1.161 ocorrências, uma média de 3 por dia. Os alertas de emergência emitidos também foram os maiores da série histórica, uma média de 9 por dia, totalizando 3.245 ao longo de todo o ano. São eventos de natureza hidrológica (transbordamentos de rios, inundações, etc.) e geológicas ( deslizamentos de terra) que provocaram a morte de 132 pessoas, feriram outras 10 mil, deixando 74 mil desabrigados e 524 mil desalojados. O prejuízo econômico atingiu a marca de R$25 bilhões.

O Brasil na contramão do mundo

Em 1959, o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, incorporou (estatizou) o patrimônio que a subsidiária da empresa estadunidense Bond & Share possuía no Estado, pelo valor simbólico de 1 cruzeiro. A então Comissão Estadual de energia elétrica, fundada em 1943, assumiria a operação, reorganizada e rebatizada como Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE).

Em março de 2021, 62 anos depois,  o governador Eduardo Leite (PSDB) decidiu que também entraria para a História, só que no sentido oposto, entregando a CEEE num leilão de valor único por apenas R$100 mil para o Grupo Equatorial Energia. A justificativa, ou melhor, a propaganda em favor da privatização, sustentava que somente a iniciativa privada poderia realizar os investimentos necessários para atender os parâmetros de qualidade da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). No entanto, tanto em 2022 quanto em 2023, a empresa passou longe de atingir tais parâmetros. Pior, em 2022 a CEEE-Equatorial ficou em último lugar no ranking nacional da ANEEL de continuidade de energia, uma parâmetro nacional de aferição da qualidade do serviço.

O Grupo Equatorial é a 3° maior empresa do setor no Brasil, atuando em 7 Estados – Rio Grande do Sul, Maranhão, Amapá, Piauí, Alagoas, Pará e Goiás – com uma cobertura que atinge cerca de 30% do território nacional. Outra gigante do setor é a ENEL, a mesma que deixou a população de São Paulo num apagão por uma semana, e que além do Estado de São Paulo, atua também no Rio de Janeiro e no Ceará.

Além de deixarem duas capitais brasileiras (Porto Alegre e São Paulo) sob um apagão, Equatorial e ENEL possuem entre elas outras coincidências. Ambas são questionadas pela qualidade dos seus serviços, precarização de trabalho, e inflacionamento dos preços, bem como pela ausência de planejamento de contingência para lidar com eventos climáticos extremos. No entanto, a coincidência que mais interessa a ambas são os lucros. No caso da Equatorial, o lucro líquido consolidado do 3° trimestre de 2023 foi de R$927,7 milhões, alta de 58,7% em relação a 2022. Já a ENEL, só em São Paulo, saltou de R$777 milhões em 2019 para R$1,4 bilhão em 2023.

Parece contraditório empresas que lucram tanto não serem capazes de se estruturar para lidar com os efeitos das mudanças climáticas, ou, ao menos, para elaborar e executar planos de contingência para responder de forma mais assertiva a eventos climáticos extremos. Na verdade, a contradição de ferro está na natureza dessas empresas, naquilo que elas qualificam como rentabilidade operacional. No caso da ENEL,  para dobrar os lucros em São Paulo em 4 anos, foi preciso elevar a rentabilidade operacional de 16,1% para 22,2%. Na prática isso significou, entre outras medidas, a demissão de 35% do quadro de funcionários. No Rio Grande do Sul, o Grupo Equatorial seguiu a mesma cartilha, aplicando um plano de desligamento voluntário (PDV) que resultou na demissão de 998 trabalhadores.

Não é preciso dizer que o lucro  é o objetivo de toda e qualquer empresa privada. No entanto, o problema, neste caso, é quando a atividade fim dessas empresas está vinculada a setores estratégicos como é o caso de energia, água e saneamento. Acesso a luz , água e tratamento de esgoto, não poderiam de forma alguma tornar-se cativos dessa lógica obsessiva do lucro. Segundo levantamento do banco de dados Public futures, os principais questionamentos feitos pela população atendida por empresas desse tipo no mundo todo são: Piora nos serviços, inflacionamento dos preços, falta de investimentos, ausência de transparência.

O mesmo levantamento indica que, por exemplo, entre 2000 e 2023, 1.400 empresas públicas foram criadas ou reestatizadas. O setor de energia elétrica respondeu por 27% desse total, somando 374 reestatizações. Já no setor de águas e saneamento foram um total de 344. Em ambos os setores, a ampla maioria dos casos ocorreu na Europa. No entanto, existem exemplos do sul global, como Lagos e La Paz, capitais da Nigéria e Bolívia, onde os movimentos sociais integrados à população derrotaram a privatização.

Aqui no Brasil, em 2023,  os sindicatos e movimentos sociais de São Paulo organizaram um plebiscito popular contra o plano de privatizações do governador bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos). Após meses de campanha e debates promovidos nas comunidades, locais de estudo e trabalho, as urnas foram distribuídas em pontos de grande circulação como estações de metrô e terminais de ônibus. Ao todo, cerca de 897 mil votos foram coletados, sendo 97% destes contrários a entrega dos trens de passageiros e do metrô, bem como da SABESP (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) para as mãos da iniciativa privada.

Já em Porto Alegre, a sequência de tragédias anunciadas levou a população ao limite. De junho de 2023 a janeiro de 2024, foram ao menos 4 eventos extremos onde a história se repetiu: transtornos de todo tipo (inundações, apagão, falta d’água, deslizamentos), autoridades inertes, e a população pagando o preço. O prefeito bolsonarista Sebastião Melo (MDB), que se orgulha da marca de “Zelador da cidade”, parece esquecer que nessa cidade tem povo. Após o último temporal a indignação da população foi além e a revolta com o descaso se traduziu em manifestações que se espalharam por diversas comunidades da cidade, ao todo mais de 120 pontos de manifestação ocorreram durante os dias de apagão. A ampla maioria desses atos foram espontâneos, alguns reunindo dezenas, e os maiores algumas centenas de pessoas.

Agora, inspirados na experiência de São Paulo, movimentos sociais de Porto Alegre começam a se articular na perspectiva de organizar um plebiscito popular que objetiva questionar a entrega de empresas de setores estratégicos, como a CEEE-Equatorial e a CORSAN (Companhia Riograndense de Saneamento), para as mãos da iniciativa privada.

A lição que podemos extrair em todos esses casos aponta para o necessário questionamento do mito da eficiência do setor privado em detrimento do público; Este mito, aliás, está no coração da propaganda neoliberal exaustivamente repetida no Brasil seja pelos governos, seja pela mídia empresarial, seja pelos lobistas de Brasília e os farialimers.

A lição que podemos extrair em todos esses casos aponta para o necessário questionamento do mito da eficiência do setor privado em detrimento do público; Este mito, aliás, está no coração da propaganda neoliberal exaustivamente repetida no Brasil seja pelos governos, seja pela mídia empresarial, seja pelos lobistas de Brasília e os farialimers.

E o que tudo isso tem a ver  com as mudanças climáticas? Essas experiências de reestatização têm funcionado como um ponto de partida na criação de uma nova cultura de conscientização não apenas do consumo de água e energia, mas da conexão de ambos com a sustentabilidade e a mitigação dos efeitos da emergência climática. No caso imediato dos eventos climáticos extremos, a diferença entre a gestão pública e a privada pode ser decisiva na definição de quem vai viver ou morrer, no estabelecimento de planos de contingência que almejem o cuidado com a população, no caso da gestão pública, ou a fria redução de custos de manutenção e operacionalidade no caso da gestão privada.

Um vilão chamado El niño?

O El Niño é um fenômeno climático natural caracterizado pelo aquecimento anormal das águas do oceano pácífico na sua faixa equatorial. No Brasil, o fenômeno é conhecido por provocar maior incidência de secas longas no norte e nordeste, e chuvas mais intensas no sul. Isso acontece porque o El Niño modifica os regimes de chuva, interferindo no clima das regiões sob o seu domínio.

Cientistas alertam que a incidência desses fenômenos, amplamente conhecidos, não pode ser justificativa para o despreparo das autoridades perante os eventos climáticos extremos. Na verdade, eles não podem sequer serem apontados como as causas dos eventos gravíssimos que vivenciamos em 2023.

Esse foi o caso da seca histórica que devastou a bacia amazônica entre junho e novembro do ano passado. O volume dos rios atingiu os níveis mais baixos em 120 anos de medição. No entanto, contrariando as expectativas, estudo divulgado no último dia 24/01 por uma comissão de cientistas do Brasil, Dinamarca, Reino Unido e Holanda, aponta que os efeitos do El Niño foram menos decisivos para a ocorrência da seca. O fator crucial teria sido o aumento dramático de temperatura na região, sendo este resultado das queimadas e do desmatamento. Ou seja, foi a ação humana e não um fenômeno natural o agente causador do evento. Por ação humana, leia-se a ação predatória do agronegócio e da mineração, em sua busca insaciável por expandir a fronteira agrícola e explorar inadvertidamente novas jazidas minerais.

Vivemos um mundo sem tempo

Em março de 2023, o IPCC (Painel Intergovernamental sobre mudanças climáticas), órgão vinculado à ONU, divulgou o relatório síntese de avaliações sobre o aquecimento global. A mensagem é dramática, para evitar que a temperatura se eleve 1,5° até o fim do século, seria necessário diminuir as emissões de gases em no mínimo 48% até 2030. O IPCC reconhece, no entanto, que estamos muito longe disso. Ano após ano, os relatórios das COPs soam como cartas de intenções, pouco capazes de produzir ações concretas sequer de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.

Após derrotar Bolsonaro nas eleições, o presidente Lula se engajou na busca por refazer a imagem internacional do Brasil também no âmbito da agenda climática. Nas COPs 27 e 28, o discurso do “Brasil voltou” teve como centro o compromisso com o desmatamento zero até 2030. De fato, de janeiro a julho de 2023, o desmatamento na região amazônica reduziu 42%, resultado de uma mudança de orientação em relação ao governo Bolsonaro. No entanto, ainda que a redução do desmatamento seja crucial para o Brasil, e a Amazônia seja um símbolo, outros biomas também precisam de socorro, a exemplo do cerrado, ou mesmo do Pampa, o menor, mais degradado,  e mais desprotegido dos biomas brasileiros.

Além disso, no caminho até a COP 30, que será realizada na cidade de Belém em 2025, vai ser preciso integrar à agenda de combate aos efeitos da emergência climática, temas como o controle estatal da gestão de áreas estratégicas como energia, água e saneamento. Nesse ponto, há muito a ser feito para limpar o entulho tanto de medidas do governo Bolsonaro, a exemplo da lei 14.026/2020, que estimula a privatização do setor de saneamento; bem como romper com a lógica de décadas de influência do neoliberalismo na formulação de políticas públicas que por adotarem orientação privatizante, contribuem para deixar a União, os Estados e Municípios vulneráveis na hora de agir perante os eventos climáticos extremos,  que são os efeitos imediatos de uma mudança climática que chegou pra ficar.