No momento da escrita de “O novo curso”, Trotsky tinha um enorme prestígio como o arquiteto e o líder, com Lênin, da revolução de outubro de 1917, especialmente como o criador e o comandante do Exército Vermelho, que travara uma dura batalha e conquistara uma vitória inesperada na brutal Guerra Civil, que apenas terminou no verão de 1921.
“O novo curso” uma coleção de artigos e cartas à imprensa do comunismo Russo, que Trotsky escreveu em dezembro de 1923 e janeiro de 1924, reunindo-os em um volume. Na obra, aponta o perigo dos membros do partido se tornarem crescentemente fundidos com um aparato estatal, feito de oficiais e administradores ao invés de trabalhadores, que supostamente os representa. Esses trabalhadores representavam apenas 1/6 dos membros do Partido Comunista na época.
A maioria dos membros do partido eram burocratas do Estado, estudantes ou camponeses. Sob a pressão da Guerra Civil, que foi uma crise existencial para o novo Estado Operário, milhares de trabalhadores deixaram as fábricas para lutar e morrer a fim de preservar a revolução, milhares de outros tiveram de ser convocados para realmente conduzir a máquina estatal, eles próprios nomeados por um procedimento cada vez mais de cima para baixo.
Os conselhos operários, ou sovietes, tinham se tornado o selo de aprovação para as decisões tomadas pelo sistema de secretários do partido, que governava o Estado, com o próprio Stálin no topo da pirâmide.
Dividir entre os trabalhadores e seu partido
Trotsky identificou a urgente necessidade para regenerar a economia industrial e aumentar o número de trabalhadores, encorajando um fluxo desses para dentro do partido, então este poderia se tornar novamente o partido dos trabalhadores. Um afastamento dos trabalhadores do partido conduzira a uma clara de divisão aberta Entre os trabalhadores e seu partido, conduzindo à agitação industrial, greves e protestos.
Isso foi ainda mais crucial, já que o Partido Comunista era o único partido em um estado de um único partido, uma situação imposta durante a guerra civil e ainda permanecia. Os trabalhadores estavam deixando o partido ou até mesmo se juntando a grupos de trabalhadores “anti-partido”. Isto arriscou separar o partido das massas e enfraquecer seu caráter de classe.
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Isto ocorreu no contexto da (necessária) decisão de restaurar parcialmente alguns elementos do mercado capitalista sob a nova política econômica (NEP) a partir de março de 1921. Em dois anos, até janeiro de 1924, o número de trabalhadores desempregados aumentou sete vezes, atingindo 1 milhão e 240 mil, e houve uma diminuição dos salários à medida que os novos padrões (“Nepmen”) buscavam aumentar seus lucros.
Além disso, Trotsky observou, havia uma crescente intolerância sobre qualquer dissidência, com as decisões aplicadas por meio de exigências de uma lealdade cega à direção e de intimidação, com membros de pensamento livre acusados de “fracionismo”. Ele escreve em uma atmosfera de “seletividade, presunção e desdém”, onde as decisões são tomadas pelo “andar superior” do partido, enquanto o “andar inferior” apenas conhecendo as decisões que deverão ser implementar.
Os jovens trabalhadores e estudantes, particularmente, eram treinados em um espírito de obediência à autoridade. Aqueles que toleravam isto eram preparados para ocupar futuras posições na hierarquia, mas outros ficaram irritados e se afastaram do partido ou iam ao “fracionalismo”. É claro que os líderes bolcheviques mais antigos corretamente tinham um enorme respeito pessoal pelas suas antigas tarefas, mas, na opinião de Trotsky, isto nunca deveria significar obediência inquestionável.
Os bolcheviques mais antigos
Desde a Revolução de Outubro, os novos membros que ingressaram mais recentemente no partido tinham sua própria experiência para se basear e deveriam ter o direito de “participar de modo mais ativo” na decisão política. Os chamados “Velhos Bolcheviques” necessitavam trabalhar com estas novas camadas ou arriscavam se tornar a “expressão consumada da burocracia”.
Tanto Lênin como Trotsky estavam preocupados com esta situação em desenvolvimento e, especialmente depois de uma série de disputas com Stálin em 1922 sobre questões como o problema nacional na Geórgia, Lênin concordou em cooperar com Trotsky para reformar o partido e agir contra a concepção de Stálin de concentração do poder administrativo em suas próprias mãos e do uso indevido desse poder.
Em maio de 1922, Lênin ficou enfraquecido por conta do primeiro de uma série de AVCs, mas, mesmo assim, estava trabalhando com Trotsky para preparar “uma bomba” para Stálin no XII Congresso do Partido, em março de 1923. Em 10 de março, porém, Lênin sofreu um segundo AVC, muito pior que o primeiro, que o deixou parcialmente paralisado e incapaz de desempenhar qualquer papel ativo na política. Assim, ficou incapaz de participar do Congresso. Isto deixou Trotsky isolado e, para o bem ou para o mal, decidiu não forçar a questão com os principais dirigentes, Stálin, Zinoviev e Kamenev – a chamada “Troika” (nomeada em referência à tradicional carruagem russa de três cavalos).
Apesar da enorme popularidade de Trotsky após a Guerra Civil, especialmente no Exército Vermelho, e apesar, ou mesmo por causa, do seu carisma e boa oratória, aqueles que queriam se envolver numa disputa fracional contra ele no próprio Partido Comunista, que detinham todos os reais poderes, poderiam se concentrar em várias fraquezas. Fizeram isso de modo implacável e mais facilmente na ausência de Lênin. Afinal, Trotsky entrara no Partido Bolchevique apenas em julho de 1917 e alguns dos “velhos bolcheviques” – aqueles que eram membros bolcheviques nos longos anos antes e durante a Primeira Guerra Mundial – o encaravam com desconfiança.
A “Troika” vasculhou os debates e polêmicas entre Lênin e Trotsky para encontrar quaisquer citações para prejudicar sua reputação, apesar dessas disputas terem se tornado inteiramente acadêmicas por Lênin e Trotsky, que concordavam sobre as principais questões da revolução. Por exemplo, a teoria da “revolução permanente” de Trotsky (melhor traduzida como “revolução contínua ou ininterrupta”) foi usada contra ele, apesar de Lênin ter concordado com Trotsky em 1917 e, essencialmente, ter implementado a teoria, assim pressionando por uma revolução operária em outubro.
Manchas
A popularidade de Trotsky levou a acusações de que ele causava disputas de frações apenas para se tornar o único líder depois de Lênin e o respeito no Exército Vermelho levou a sugestões de que ele tomaria o controle militarmente, assim como Napoleão Bonaparte depois da Revolução Francesa. Não existem evidências disso, mas as manchas serviram ao seu propósito. Sua oratória e mente perspicaz, entretanto, o levaram a ser descrito como arrogante.
Para além disso, Trotsky e sua esposa, Natália Sedova, contraíram malária e, durante longos períodos de 1923, durante esta intensa luta de frações, foram forçados a fazer tratamentos de repouso e prolongar as pausas na atividade política.
Mas a principal arma da Troika, como é frequentemente o caso da direção burocrática que visa manter sua posição, era manter constantes demandas de “unidade do partido”, já que o tempo todo sorrateiramente usava seu controle da administração do partido e do Estado para se mover contra seus críticos numa aberta luta de frações.
Trotsky se viu em uma posição desconfortável. Estava comprometido com a necessidade de manter o Estado de partido único durante “o período da ditadura” do proletariado e considerava que uma divisão no partido traria consequências perigosas para toda a revolução. Além disso, apoiou entusiasticamente a proibição de frações organizadas em março de 1921, após a derrota da fração chamada “Oposição Operária” de Shlyapnikov e Kollontai, que consequentemente não o apoiou nas suas batalhas contra a Troika. Frações posteriores, como o “Grupo de Trabalhadores” de Gavril Myasnikov, foram expulsas do partido e Myasnikov chegou a ser detido e preso em 1923.
Portanto, Trotsky era muito sensível a qualquer acusação de fomentar uma divisão ou que ele próprio formasse uma fração e continuamente tinha que jurar que não estava fazendo isso. Apesar de reconhecer o papel central dos trabalhadores industriais na restauração da situação do Estado operário, ele não podia dar qualquer apoio a greve de trabalhadores ou que a protestos contra o regime fora dos limites do próprio Partido Comunista.
É por isso que no “O novo curso” delicadamente tenta, de um lado, equilibrar as frações condenatórias, enquanto faz campanha contra a direção, por outro. Basicamente, ele diz que o fracionalismo é “um flagelo”, mas o comportamento arrogante da direção estava conduzindo membros ao silêncio ou formando frações, já que não podiam expressar suas sérias questões e dúvidas de outra forma.
As estruturas democráticas
A solução de Trotsky para esta crise foi o rejuvenescimento das estruturas democráticas do partido, a redução do poder do secretariado e o ativo envolvimento de todos os membros, especialmente os trabalhadores e os jovens, na elaboração de políticas.
Negando a frequente acusação de que as frações do partido representam “forças de classe alienígenas” de algum modo, ele inverte a situação e acusa os burocratas de serem eles mesmos uma fração, perguntando quais “interesses de classe” representam. É a própria burocracia, diz ele, sendo a principal ameaça à unidade partidária. A proibição de frações é uma “letra-morta” quando isolada de uma direção forte, mas também receptiva, que se ocupe com a origem da disputa por meio de uma plena discussão democrática.
É importante ressaltar que Trotsky deixou claro que este problema não era um resquício das necessidades da Guerra Civil, mas, de fato, piorou desde seu fim, quando o poder foi concentrado nas mãos dos secretários do partido por meio do sistema de partidos e promoções, transferências e nomeações no Estado. Pelo contrário, apontou que, durante a guerra, houve discussões mais abertas. Então, apela ao regresso à “crítica livre e camarada, sem medo”.
Em retrospectiva, em uma frase totalmente assustadora, ele exige que, “de agora em diante, ninguém aterrorizará o partido”. Na verdade, em 1923, como poderia alguém ter imaginado as profundezas do horror e de assassinatos que a burocracia stalinista iria entrar nas décadas seguintes.
No entanto, o constante refrão de “unidade do partido” impediu Trotsky de travar toda uma guerra contra a direção. “O Novo Curso” não “cita nomes” e suas fortes críticas são amenizadas por muitas ressalvas. Ele não queria arriscar ser rotulado como alguém que divide o partido, já que significava tudo para ele, e sua visão era que a toda burocracia ainda não estava, naquele momento, além da redenção. Em retrospectiva, pode-se argumentar que os processos já estavam muito avançados e o partido se tornava o problema e não a fonte da solução.
No outono de 1923, um grupo de comunistas proeminentes, incluindo muitos dos aliados próximos de Trotsky, produziu a “Declaração dos 46”, fazendo ecoar quase todas as críticas de Trotsky. No entanto, também solicitou o fim da proibição das frações. Trotsky não apoiou isto e, de fato, não assinou o documento, ainda que tenha sido severamente criticado, em qualquer caso, por estar “por trás dele” de alguma forma.
Unidade do partido!
Então, a Troika e seus aliados agiram com uma má-fé cínica ao aprovarem uma moção no Comitê Central que parecia, em termos gerais, apoiar sua linha, mas era limitada em detalhes e não se comprometia a encerrar o controle central do secretariado. Isto também condenou duramente as frações. O convidaram para assinar e ele fez isso — em prol da unidade do partido!
A tática de Trotsky, percebendo que ignorariam as belas palavras da resolução e neutralizar sua implementação, foi saudar entusiasticamente a resolução e tentar fazer com que a direção a cumprisse – manter seus pés no fogo, por assim dizer.
Esta é a razão para o título do livro – “O novo curso”. Trotsky polemicamente tentava forçar a direção a implementar seu próprio “novo curso”, tal como acordaram na resolução. Mas não tinham a intenção de fazer isso e os argumentos de Trotsky talvez eram muito sutis para muitos membros do partido, que apenas viam os dirigentes apresentarem uma fachada de unidade.
Um grande golpe nas esperanças de Trotsky de restaurar o regime interno do Partido Comunista foi, certamente, a morte de Lenin, em 21 de janeiro de 1924. Ao invés de Trotsky poder usar o prestígio e o respeito de Lênin para o ajudar a agir contra a Troika, a morte de Lenine permitiu que Stálin e outros dirigentes se associassem diretamente à sua memória conforme Lênin era elevado, contra sua vontade expressa, como um pai da nação, quase semelhante a Deus.
Qualquer um como Trotsky, que debateu e discutiu com Lênin de boa-fé, era percebido automaticamente como um elemento pouco fiável e perigoso. A Troika redobrou suas calúnias mesquinhas sobre o chamado “trotskismo”, particularmente enfocando na sua teoria da “revolução permanente”.
No XIII Congresso do Partido, em maio de 1924, com muitos delegados agora sendo escolhidos a dedo pela burocracia, Trotsky foi claramente derrotado. O agora famoso testamento de Lênin, no qual critica duramente Stálin, foi lido, mas depois mantido em segredo e não publicado. Em fevereiro desse mesmo ano, a chamada “imposição de Lenin” trouxe centenas de milhares de novos membros “brutos” que podiam ser manipulados para apoiar a direção.
Este Congresso também lançou a completamente nova teoria do “Socialismo em um só país”. Na realidade, se tratava do início de um processo de colocação dos interesses puramente nacionais da Rússia (e depois da União Soviética) antes dos interesses de uma vitória de uma revolução internacional dos trabalhadores – que Trotsky reconheceu como o único modo de construir o verdadeiro socialismo na União Soviética. Depois do Congresso, Stálin ainda teve a coragem de rotular o “trotskismo” como um “desvio pequeno-burguês”!
Apenas quatro anos depois, Trotsky foi expulso do partido que co-liderara praticamente. Ele foi enviado para o “exílio interno” no Cazaquistão em 1928 e deportado da União Soviética um ano depois.
Ele passou o resto de sua vida construindo a Oposição de Esquerda Internacional contra Stálin, enquanto toda uma geração de bolcheviques que lideraram a Revolução de Outubro, incluindo os próprios Zinoviev e Kamenev, eram exterminados – executados sob acusações absurdas de “Trotsky-Fascismo” e centenas de milhares de pessoas morreram no Grande Expurgo no final da década de 1930.
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