O revolucionário russo não deve(ria) ter por ideal o secretário do sindicato, mas o tribuno popular, que sabe reagir contra toda manifestação de arbitrariedade e de opressão, onde quer que se produza, qualquer que seja a classe ou camada social atingida, que sabe generalizar todos os fatos para compor um quadro completo da violência policial e da exploração capitalista, que sabe aproveitar a menor ocasião para expor diante de todos suas convicções socialistas e suas reivindicações democráticas, para explicar a todos e a cada um o alcance histórico da luta emancipadora do proletariado1
Lenin
Marx fez questão de escrever com todas as letras no Manifesto Comunista de 1848, um documento programático elaborado para a Liga dos Justos, que a emancipação dos trabalhadores seria obra dos próprios trabalhadores. Existem duas ideias poderosas e indivisíveis nesta palavra de ordem. A primeira é a ideia de emancipação. Para emancipar-se é necessário tornar-se livre. Para tornarmo-nos livres precisamos ser independentes. Ser independente significa agir de acordo com os seus próprios interesses, e não os de outros. A segunda ideia é que nada, nem ninguém pode substituir os trabalhadores como sujeitos de sua própria libertação. Quando elaboradas estas ideias eram somente uma aposta estratégica. Mas podemos dizer hoje que elas passaram a prova da história.
Estas ideias não autorizam, contudo, qualquer idealização da classe operária. Não autorizam qualquer romantização do que defendem líderes sindicais somente porque são de origem operária. Não legitimam a conclusão de que o lugar dos intelectuais na direção de organizações socialistas deveria ser marginal. A epígrafe com a citação de Lenin não deixa margens para a dúvida sobre o que ele entendia como sendo o papel dos revolucionários: lideranças operárias devem se transformar em intelectuais populares, e intelectuais profissionais devem se transformar em ativistas populares. Há lugar para todos.
Recordemos que a Liga dos Justos era uma organização operária, mas Marx era um intelectual com origem na classe média, e Engels era um intelectual com origem burguesa. Determinismo sociológico obreirista é, portanto, mal conselheiro. O obreirismo se manifesta em parcelas do movimento sindical, e em outros movimentos sociais, como desconfiança ou hostilidade pela presença de intelectuais na liderança de organizações de trabalhadores. No entanto, nem sequer a direção do bolchevismo em 1917, uma inspiração para os marxistas revolucionários do século XXI, tinha maioria operária2.
É verdade que o conceito “obreirismo” permite diferentes leituras. Mas prevalecem, frequentemente, aquelas que se inspiram na ideia de que a autenticidade ou popularidade seriam critérios supremos, em função de pressões mais estreitas. Ter origem popular e ser oprimido, ou ter popularidade não significa ter razão.
Em certa dimensão, o marxismo sempre foi obreirista. Porque ser marxista sempre significou unir o sentido da luta pelo socialismo ao destino da luta dos trabalhadores. O marxismo afirma que o proletariado é uma classe que sofre a dominação em todos os terrenos3. Em poucas palavras: explorada economicamente, oprimida culturalmente, e politicamente dominada. Brutalizada, alienada e resignada pela exploração, pela opressão e pela dominação. Porque é despojada de presente a classe trabalhadora é portadora da esperança de futuro, porque é aquela que tem tudo a ganhar com a derrota do capitalismo.
Diferente da burguesia no interior da sociedade feudal, que podia construir a sua subjetividade a partir do material humano destilado de suas próprias forças, as organizações dos trabalhadores, sob o capitalismo, não devem prescindir da capacidade de atrair intelectuais de outras camadas da sociedade para a sua causa.
Seria, é claro, superficial ignorar que um fenômeno semelhante a esse, também, ocorreu na transição do feudalismo para o capitalismo. Ao longo dos quase quatro séculos da transição burguesa não foram poucos os “trânsfugas” da nobreza que se uniram à causa revolucionária burguesa. Essa capacidade de polarização das classes revolucionárias, em cada época, revela, portanto, mais da sua força do que da sua fraqueza.
Pode parecer um paradoxo ou “ex-abrupto” afirmar que a presença de alguns intelectuais à frente da maioria dos partidos operários ou movimentos camponeses traduz mais da sua força do que da sua fraqueza, mas não é. A força de atração de uma classe explorada se expresse, também, na sua capacidade de atrair para a sua causa os quadros intelectuais mais sensíveis e abnegados que rompem, ideologicamente, com sua classe de origem.
Evidentemente, tão perigoso quanto o obreirismo são os excessos do intelectualismo. Uma organização socialista não pode ser uma confraria acadêmica, um clube literário, ou um círculo de discussão de ideias. Uma organização marxista revolucionária deve ser uma ferramenta de luta contra o capitalismo. Só pode se construir inserida no movimento prático da experiência de organização dos trabalhadores, da juventude, dos negros, das mulheres, dos LGBT’s, e de todos os oprimidos. Intelectual
A caracterização de classe de um partido não pode ser feita, portanto, exagerando a importância da natureza social de sua direção. Deve se buscar coerência social entre o programa e a direção de uma organização de trabalhadores, claro. Esse é um dos fatores que ajuda a compreender a dinâmica das organizações políticas, mas está longe de ser a determinação fundamental. Outros elementos são, na verdade, fundamentais: a composição social do conjunto desses partidos, o seu programa, a sua gênese histórica e dinâmica, a sua localização política, seu financiamento, suas relações internacionais.
A questão da relação das classes com as suas representações políticas, portanto, não é simples. O marxismo, como se sabe, considera que os partidos expressam, em última análise, interesses de classe, mas não se deve concluir que essa relação seja harmoniosa. Esta mediação do “em última análise” não deve ser descartada com ligeireza. Existem os erros, os desencontros, os conflitos: afinal as classes não são homogêneas. Esta “discordância dos tempos” entre as classes, suas camadas e frações internas, e os vários partidos que pretendem ser seus porta-vozes, define o ritmo da política. Esse ritmo tem os seus tempos: eles se definem na luta de classes.
Mas, se o tempo é a medida da história – um tempo histórico que não se confunde com o tempo linear e homogêneo da física, nem com o tempo mágico e escatológico da religião – mais importante é que ele é também uma expressão de uma relação social em movimento que lhe atribui valor e sentido. Entre os inúmeros conflitos que dilaceram a sociedade, o marxismo elege as contradições de classe como a determinação fundamental. Sendo a mais importante, não é, contudo, a única.
O que nos coloca o problema da deserção. Muitos ativistas foram, são e serão cooptados pelas diferentes burocracias e aparelhos que a burguesia estimula direta ou indiretamente para bloquear a luta dos trabalhadores: essa é uma das desvantagens comparativas que uma classe explorada tem que enfrentar na construção de sua representação. Mas não há fundamento algum que permita concluir que as deserções serão mais numerosas entre os intelectuais do que entre os proletários. As pressões sociais inimigas se abatem, indistintamente, sobre todos.
As relações da classe trabalhadora com a sua vanguarda, os elementos mais ativos ou mais determinados que nascem, espontaneamente, em cada luta e se colocam na primeira linha da defesa dos interesses da maioria, não são simples. Cada classe ou fração de classe explorada ou oprimida gera na luta de classes um setor mais avançado e determinado, mais disposto ao sacrifício. São os mais inteligentes ou mais altruístas que surgem como lideranças naturais. Conquistam autoridade moral pela sua capacidade de traduzir em ideias ou em ações as aspirações das massas. Será neste material humano que serão selecionados e se formarão as direções das classes populares.
Já a burguesia, como as outras classes proprietárias da história, descobriu outros caminhos para resolver o problema da formação dos seus quadros dirigentes. Quando não os encontram pela tradição de comando, ou pela seleção de talentos em suas próprias fileiras irão buscá-los na “inteligência disponível”, protegê-los, encorajá-los e, sobretudo, remunerá-los muito bem.
O proletariado e as classes populares, não podem depender desse recurso. Os trabalhadores têm que formar as suas lideranças, arduamente, nas lutas: Mas nas condições de uma situação reacionária, ou seja, de defensiva, não se forma uma grande vanguarda ativista. Quando muito surgem alguns poucos ativistas de suas fileiras. A confiança dos trabalhadores em si mesmos, ou seja, uma maior ou menor fé na vitória de suas lutas dependerá da capacidade da vanguarda de tomar as iniciativas que estão ao alcance da maioria.
A vanguarda das lutas, as lideranças enraizadas nas fábricas, escolas, empresas, bairros ou faculdades só se formam nos processos de mobilização e podem ou não avançar até à organização sindical e política permanente. Frequentemente, uma maioria desta vanguarda retrocede ao final da luta, em maior medida ainda, se esta for derrotada.
Porque a vanguarda é um fenômeno, no sentido de que é transitória, uma dimensão subjetiva da realidade em movimento, e pode tanto se organizar em um movimento, corrente ou partido da classe já existente, quanto pode voltar a se integrar na massa, e abandonar a luta ativa ao final do combate. Para que estas energias não se dissipem é necessária a luta por um programa.
E os intelectuais marxistas têm como principal responsabilidade ser úteis na educação dos melhores líderes naturais populares no programa socialista. Não diminui ninguém ser “professor”. Mas ensinar o que se deve fazer não é o mesmo que saber fazer.
O maior desafio dos intelectuais é cultivar a humildade de aprender com os lutadores populares a ser militantes da causa socialista.
Notas
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