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MUNDO

Geopolítica sob alta tensão: uma 3º Guerra Mundial se aproxima?

Gibran Jordão, historiador e colaborador do Esquerda Online

Em fevereiro de 2022, Putin anunciou uma “operação militar especial” contra o território ucraniano, as tropas russas atravessaram a fronteira e passaram a controlar cidades pró-russia na região de Donbas. Houve ataques em várias cidades, incluindo a capital Kiev, com mísseis hipersônicos “Kinzhal” de longo alcance e alta precisão. A guerra entre a Rússia e Ucrânia/Otan fará aniversário de dois anos sem perspectivas de apaziguamento via diplomacia a curto prazo, e pior, outros conflitos de alta tensão surgiram na geopolítica global, como a guerra de Israel contra a resistência palestina, todas  com poder de escalar e expandir envolvendo mais nações e regiões do globo. 

A eclosão de guerras num espaço de tempo tão curto, cruzada com o acirramento das disputas pelo controle comercial e político em várias regiões do mundo, tem levantado a preocupação sobre as possibilidades de uma guerra generalizada de consequências imprevisíveis para a ordem mundial. Diante de uma situação como essa, não podemos mais tratar como alarmismo as chances de uma expansão de regiões conflagradas que possa fugir ao controle completo dos organismos multilaterais ligados a ONU. Trata-se de analisar com seriedade como essas questões geopolíticas estão se desenvolvendo, se elas se articulam entre si, quais as suas consequências econômicas e se estamos diante de uma transformação incontornável nos polos de poder global com potencial de levar a humanidade para uma terceira guerra mundial ou se essas mudanças para um mundo cada vez mais multipolar poderá se dar por acordos e negociações diplomáticas. 

A ONU está mais frágil como espaço de dialogo e promoção da paz… 

Nesse momento existem guerras e conflitos armados abertos ou em situação de crise latente em varias regiões do globo, demonstrando um abalo sísmico da autoridade política dos EUA/OTAN, expondo a um intenso desgaste os fóruns da ONU como espaço de negociação. Ao que parece, já podemos ouvir os primeiros estertores anunciando o início de uma inflamação mais sensível da ordem entre estados como conhecemos desde o final da segunda guerra mundial. 

Destacamos a guerras e conflitos na Ucrânia, Gaza, Oeste da África, Taiwan, Coreias e Essequibo na Guiana, como as principais regiões que em maior ou menor grau, existem condições precárias de negociações via organismos internacionais e que estão localizadas no Leste Europeu, Oriente Médio, Africa, Ásia e América do Sul, envolvendo países de praticamente todos os continentes do globo. 

Em fevereiro de 2023, um dia antes da guerra na Ucrânia completar um ano, a assembleia geral da ONU votou uma resolução pedindo a retirada das tropas russas do território ucraniano, 141 países membros votaram a favor, 5 contra e 32 abstenções. Até aquele momento, segundo dados oficiais, 40% dos ucranianos precisavam de ajuda humanitária e a violência já tinha deixado 8 mil mortos. Além dessa resolução, tanto a UE como os EUA anunciaram sanções econômicas radicais contra a Rússia que jamais um país tinha sofrido na história. Mesmo diante dessas iniciativas para inviabilizar as operações militares russas, a guerra vai completar dois anos, dando sinais que apontam uma tendencia favorável para os russos nesse momento, como veremos mais a frente nesse texto. 

Em outubro de 2023, o secretário geral da ONU, Antônio Guterres, fez um pronunciamento sobre a guerra na faixa de Gaza, dizendo que a ação do Hamas não foi por acaso, que a ocupação de Israel na região sufoca os palestinos por décadas e que a violência usada por Israel está sendo desproporcional. Essa declaração, mesmo condenando os ataques do Hamas, foi o suficiente para a embaixada de Israel cancelar uma reunião bilateral que estava marcada com a ONU e pedir a demissão de Guterres. Em 10 de novembro de 2023, a agência da ONU para os refugiados palestinos (UNRWA) anunciou que mais de 100 dos seus funcionários morreram na Faixa de Gaza desde o início da guerra, em 7 de outubro. São números incomparáveis a qualquer outro momento da história, segundo o próprio anuncio das nações unidas. Os ataques de Israel na faixa de Gaza já deixaram até agora mais de 20 mil palestinos mortos, milhares de mutilados, refugiados, desabrigados e famintos. Com sérias dificuldades da população civil em ter acesso a hospitais e a ajuda humanitária, a fome toma conta da população que ainda resiste em ficar na região conflagrada. 

Vejam que diante dos dois maiores conflitos geopolíticos da atualidade as resoluções, declarações, sanções e esforços diplomáticos via ONU e outros organismos da política internacional até agora fracassaram, e mais grave, estamos vendo o envolvimento de outros países, ameaçando inclusive a normalidade do comércio internacional, com consequências para inflação de alimentos, crises migratórias humanitárias, segurança energética e nuclear. 

O que podemos concluir é que o mundo mal se recuperou de uma pandemia de consequências catastróficas para a humanidade, e num espaço de dois anos surgiram guerras e conflitos aos quais a ordem mundial acordada após a segunda guerra mundial, não tem conseguido dar respostas a altura dessas tensões geopolíticas. Inevitavelmente essa situação leva a uma descrença na capacidade da ONU em mediar e administrar conflitos entre as nações, expressando um salto na instabilidade no sistema mundial de estados. 

Rússia x Ucrânia: quem está ganhando a guerra e qual o seu futuro? 

Pelo nível dos interesses em jogo nessa guerra, que envolve uma etapa decisiva na disputa pela hegemonia do poder global, pelo menos até a próxima eleição presidencial nos EUA, temos convicção que a guerra entre russos e ucranianos só tende a se aprofundar, sem nenhuma perspectiva de acordo de paz. A OTAN liderada pelos EUA, no ultimo período que antecede a guerra, vinha promovendo um nítido exercício em expandir sua influencia militar para o leste europeu, em especial nas fronteiras com a Rússia, absorvendo para seu campo gravitacional forças políticas ucranianas que passaram a agir por procuração dos interesses ocidentais. Fato que gerou um alerta vermelho para os russos, que passaram a caracterizar essa movimentação como uma ameaça existencial. Afinal, é compreensível que um país considere com apreensão bases militares da Otan em suas fronteiras, e tome medidas para evitar tal situação em sua defesa. 

Numa outra perspectiva, não podemos dizer com certeza absoluta que a Russia não invadiria a Ucrânia caso a Otan abdicasse de suas expansão para o leste, já que após a era soviética, toda elaboração do governo Russo sob o comando de Putin vem demonstrando ambições expansionistas com objetivos que envolve a disputa de hegemonia global. Anexar a Ucrania ou parte do  seu território, nesse caso, não dependeria somente de ameaças do ocidente, embora seja um catalizador do processo. Em discurso dias antes de atacar a Ucrânia, Putin foi categórico: 

“— A Ucrânia moderna foi inteiramente criada pela Rússia, mais precisamente, pela Rússia bolchevique, comunista. Esse processo começou imediatamente após a revolução de 1917. Como resultado da política bolchevique, emergiu a Ucrânia soviética, que ainda hoje pode, com razão, ser chamada de “Ucrânia de Vladimir Ilyich Lênin”. Ele é seu autor e arquiteto. Isso é totalmente confirmado por documentos de arquivo… E agora descendentes gratos têm demolido monumentos dedicados a Lenin na Ucrânia. Isso é o que eles chamam de descomunização. Querem descomunização? Bem, isso nos serve. Mas é desnecessário, como dizem, ficar só na metade do caminho. Estamos prontos para mostrar a vocês o que a descomunização real significa para a Ucrânia.”

Para bom entendedor, “descomunização” não é derrubar estatuas de Lenin, mas sim, anexar seu território a Russia, já que para Putin o estado ucraniano foi uma invenção bolchevique. Isso significa que estamos diante de uma guerra entre dois projetos expansionistas de hegemonia global capitalista, e por esse motivo toda violência não terá fim até um dos lados se render, e isso está longe de acontecer. A Ucrânia mesmo sendo hoje uma carcaça de país, seu presidente atende as ordens da forças ocidentais, que não vão recuar aceitando uma derrota civilizadamente, pois ainda possuem muitos recursos financeiros e militares para sustentar uma longa “proxy war”. Por sua vez a Russia, após dois anos de conflito, contrariando todas as previsões e a propaganda da mídia ocidental pró-Otan, tem demonstrado plenas condições militares e econômicas para manter sua autoridade nos territórios conquistados na Crimeia e região de Donbas, com possibilidades de avançar pelo território inimigo.Para confirmar o que estamos dizendo, basta comparar a situação da Rússia com a Alemanha, a maior economia e principal líder da União Europeia e país membro da Otan.

Dias após o inicio da guerra da Ucrânia, a presidenta da comissão europeia Ursula von der Leyen, anunciou em coletiva de imprensa, a exclusão da Russía do sistema financeiro SWIFT ( Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais). Em dezembro de 2023, já tinham sido anunciados mais de dez pacotes de sanções economicas contra os russos que envolve bloqueio de contas em bancos europeus, proibição de vistos, interrupção de importação e exportação de produtos, que vai desde diamantes até tecnologia militar. 

Pois bem, mesmo com todo bloqueio economico sem precedentes, os numeros da economia russa vem surpreendendo. Segundo os dados do Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento ( BERD), que em maio apontava para uma queda de 1,5%, mas após uma revisão dos numeros em setembro de 2023, já apontava um crescimento de 1,5% da economia russa. Segundo o BERD, as receitas da Rússia conseguiram apoio pela alta dos preços do petróleo, pelos investimentos do governo na industria militar e pelo comercio com parceiros dos BRICS, com aumento da exportação para a China, Índia e países da Ásia Central. Esses dados também são confirmados por publicações do Fundo Monetário Internacional ( FMI). 

Já a economia Alemã, a maior da zona do Euro, contraiu 0,3% em 2023, segundo dados do Destatis, que é o serviço federal de estatísticas da Alemanha. A presidente do orgão Ruth Brand, disse que a Alemanha ainda não espacapou de uma recessão, citando a queda do consumo das familias, a maior em vinte anos, a inflação e a alta dos juros como os fatores mais negativos. Além da industria de transformação que exige alta demanda de energia que teve uma contração de 2%. A ruptura das relações economicas com a Russia, principal fornecedora de recursos energeticos para os alemães tem causado um estrago no parque industrial germanico. Isso encareceu os custos com energia e os produtos alemães não conseguem competir no mercado internacional. A maioria do fluxo de comercio da Alemanha se dá com os países da zona do euro, uma recessão alemã poderá arrastar o conjunto da europa para uma forte crise economica no proximo periodo. Justamente quando será necessário mais aportes dos membros da Otan para seguir sustentando a Ucrania militarmente.  

Outro elemento comparativo é a popularidade de Putin em relação a de Olaf Scholz. Segundo a pesquisa Deutschlandtrend, o primeiro ministro alemão nunca foi tão impopular e seus numeros são o piores desde a serie histórica que teve inicio em 1997. Mais de 70% dos alemães mostram insatisfação com o seu governo, com apenas 20% de apoio. A pesquisa ainda aponta que a União Democrata Cristã, partido de Angela Merkel ( hoje na oposição) e a ultra direita representados pela Alternativa para Alemanha – AFD, são os principais beneficiários dos desgaste do atual governo alemão. Vários analistas dentro e fora da Alemanha já dizem que se a eleição fosse hoje, muito dificilmente a coalização que elegeu Scholz teria condições de se eleger novamente. Protestos contra o governo alemão cresce pelo país, a insatisfação popular aumenta a tensão interna, envolvendo polêmicas em relação a lei de imigração, o corte dos subsidios para agricultores, a alta da inflação e o processo de desindustrialização alemã. 

No caso da Russia, a eleição será em março desse ano, Putin em dezembro de 2023 anunciou que vai concorrer ao quinto mandato, ele está no poder desde 1999. Além de sua popularidade atual estar alta segundo as pesquisas internas, não há nenhuma outra figura ou partido político que apresenta qualquer condição de concorrer com equiparação de forças. A propria repressão do regime contra opositores nos ultimos anos tem sufocado qualquer possibilidade de outras forças políticas ganharem terreno, indicando que o atual chefe do Kremlin será facilmente reconduzido ao cargo na proxima eleição. O que significa que pelo menos a curto prazo, a Russia não terá nenhuma crise política interna que signifique problemas graves no front de guerra. 

Falávamos que até a eleição presidencial norte americana que será no final desse ano, provavelmente não haverá acordo de paz entre Russia e Ucrania. Dizemos isso porque o balanço do resultado dessa guerra já está sendo tema de polêmica entre democratas e republicanos. Biden tem encontrado dificuldades no congresso em aprovar mais ajuda militar para Zelenski, além de muitos políticos republicanos serem criticos em relação a condução da guerra. O seu principal adversário Donald Trump, que vem liderando atualmente as pesquisas eleitorais,e será facilmente eleito nas prévias republicanas, tem dado declarações criticas a guerra e é publico e notório que durante o seu governo havia uma intensão em dar menos prioridade ao financiamento da Otan para poder focar em outros projetos e objetivos. 

A força militar e a resiliência da economia russa tem indicado que a cupula política do país em torno de Putin pretende aguardar o resultado eleitoral dos EUA, principal lider da Otan, para avaliar os rumos da guerra. Já que existe uma expectativa russa de que as negociações com Trump no poder poderá ser diferente e apresentar alguma vantagem para sairem da guerra. Nas condições atuais, Biden também não pode a curto prazo atuar para promover um acordo de paz. Pelo contrário, caso o prejuízo político eleitoral for muito profundo, os democratas sob alta pressão podem tomar decisões precipitadas escalando a guerra na Ucrânia e/ou aumentando crises internas dentro dos EUA. Por outro lado o eleitorado jovem dos democratas que tem um viés progressista, não é simpatico as ofensivas bélicas do governo americano, esses eleitores vão sair de casa com entusiasmo para reeleger Biden na pŕoxima eleição? Trata-se de uma situação muito dificil para a administração Biden e nesse sentido, o ano de 2024 promete fortes emoções e crises imprevisiveis… 

Mas não é dificil perceber que hoje as condições são mais favoráveis para uma vitória russa na guerra contra a Ucrânia, o que seria uma desmoralização histórica para os membros da Otan, EUA e UE. Seria também a evolução de uma etapa muito importante na disputa da hegemonia global, no entanto estamos falando de um momento, de uma fotografia da guerra. A Russia vai sustentar por quanto tempo uma guerra a longo prazo contra superpotencias mundiais organizadas na Otan que apoiam a Ucrania hoje? A mesma pergunta vale para o mundo ocidental, quantas guerras sem fim poderão financiar e por quanto tempo?  É dificil prever, mas os russos sabem que estão no seu melhor momento para desencadear uma ofensiva final que obrigue uma rendição incondicional da Ucrânia. Mas os seus calculos militares certamente estão considerando se tal ofensiva vai provocar ou não uma luta direta e aberta contra a Otan, e o tamanho das vantagens e dos prejuízos diante da evolução desse cenário. 

No momento em que escrevemos esse texto, vários canais da mídia ocidental estão publicando que a Otan está convocando um exercício de suas tropas para os proximos meses com a participação de 90 mil soldados para treinamento simulando um ataque de forças russas a países membros localizados no leste europeu. Segundo o principal comandande da Otan, Chris Cavoli, esse exercício vai se chamar “Steadfast Defender”, vai contar com a participação de 50 navios, de porta aviões a destroiers, e mais de 1100 veículos de combate. Trata-se da maior demonstração de força da aliança ocidental desde a guerra fria e com certeza não está sendo realizado por puro capricho, as tensões geopolíticas parecem estar escalando mais rapido do que imaginávamos, dificultando inclusive finalizar esse artigo de forma que não fique desatualizado. 

A palestina está vivendo o segundo Nakba?

Menos de dois anos após o inicio da guerra na Ucrânia, no Oriente Médio começa mais uma vez uma guerra entre Israel e Palestinos na faixa de Gaza, que já se expandiu para outros países com combates no Líbano, Síria, Irã, Iraque, Iêmen e Paquistão. Rios de tinta já foram escritos por jornalistas e especialistas sobre a opressão sufocante que o estado de Israel comandado por sionistas opera contra os palestinos na faixa de gaza por décadas. Fato reconhecido pelo próprio secretário geral da ONU, o que torna latente os conflitos por todos esses anos, com erupções de guerras em vários momentos da história. O combate que se iniciou no dia 07 de outubro de 2023, é mais uma guerra de grandes proporções numa região importantíssima para as rotas marítimas comerciais envolvendo o mar vermelho, para a segurança energética via produção de petróleo e de crises migratórias de consequências imprevisíveis. 

A força desproporcional e covarde usada pelo exercito de Israel contra a população civil de Gaza está gerando uma comoção e mobilização mundial que tem furado a bolha da propaganda da mídia ocidental pró-Israel, e ao mesmo tempo demonstrado um potencial de unificar grupos islâmicos sunitas e xiitas contra a ofensiva israelense. Embora o Hamas seja uma organização islâmica sunita, vários grupos islâmicos xiita já atuam em unidade de ação formando um eixo de resistência contra Israel nesse momento. No dia 25 de outubro de 2023, o Hezbollah fez um comunicado oficial, informando que o seu secretario geral, Hassan Nasrallah, se reuniu com lideres do Hamas e da Jihad Islâmica para discutir uma aliança militar contra Israel. Nesse momento da guerra a imprensa mundial já noticia combates entre Israel, EUA e Reino Unido e grupos como a Jihad Islâmica em Gaza, Hezbolah no sul do Líbano e Síria, os Houthis que dominam parte do Iemen e o proprio Irã, país de maioria xiita. 

No dia 28 de outubro, em manifestação pró-palestina que reuniu milhares de pessoas na cidade de Istambul na Turquia, o presidente Erdogan fez um discurso que deixou as autoridades de Israel em choque. Declarou que as forças israelenses estão cometendo crimes de guerra em Gaza, que o Hamas não é um organização terrorista e que a culpa pelo massacre de civis é do ocidente. No dia 14 de novembro, o governo turco indiciou oficialmente Benjamin Netanyahu, com uma ação judicial no tribunal penal internacional sob a acusação de que o primeiro ministro de Israel é o responsável pelo genocídio na Faixa de Gaza. A Turquia é um país de tradição islâmica sunita e também é membro da Otan. A posição do governo turco nesse momento gera uma situação complexa para os EUA, que precisa dar respostas militares em apoio a Israel, mas nesse caso não poderá contar com uma ação unificada da Otan. Isso explica a aliança específica entre os EUA e o Reino Unido para atacar bases dos Houthis no Iêmen, como também significa que no caso dos conflitos no oriente médio, os custos militares não serão rateados pela Otan que está nitidamente dividida nesse tema. 

No dia 11 de janeiro de 2024, em audiência na corte internacional de justiça da ONU, em Haia, nos Países Baixos. O governo da Africa do Sul acusou formalmente o estado de Israel de praticar genocídio contra a população da Faixa de Gaza, essa ação do país africano foi endossada pelo Brasil e outros cinco países da América Latina, um grupo de 57 membros da Organização de Cooperação Islâmica e a Liga Árabe, composta por 22 Estados. Israel, EUA, Canadá e Alemanha se posicionaram contra e criticaram publicamente a ação da Africa do Sul. Já o porta voz da União Europeia declarou ser legitimo as nações recorrerem ao tribunal internacional, mas como não fazem parte do processo, não irão se posicionar. 

Em coletiva de imprensa televisionada, o primeiro ministro Beijamin Netanyahu, deu uma dura resposta as ações e questionamentos juridicos que estão sendo discutidos em tribunais internacionais na ONU. Nas palavras de Netanyahu: “Ninguém vai nos parar: nem Haia, nem o eixo do mal e nem ninguém. É possível e necessário continuar até a vitória e nós vamos fazer isso”. O tom beligerante demonstra que a carnificina e o deslocamento de milhares de palestinos da região de Gaza é o objetivo estratégico. Trata-se de um novo Nakba, que pode ser uma catastrofe e provocar um exodo de palestinos ainda pior, comparado ao horror do primeiro Nakba de 1948, na guerra entre arabes e israelenses. Até mesmo a proposta defendida recentemente pelos EUA, Arabia Saudita e por autoridades da ONU de criação do estado palestino tem sido totalmente rechaçada pelo governo de Israel. 

A guerra que está em curso no Oriente Médio desenvolve elementos que indicam uma tendencia para uma longa onda de conflitos com desdobramentos imprevisíveis e de difícil solução diplomática. O destino dos reféns israelenses que estão sob o poder do Hamas, a disputa política interna em Israel que tem o governo mais a direita da sua história, a capacidade de unidade entre os diversos grupos islâmicos contra as forças israelenses, as ações militares do Irã e o avanço do seu arsenal nuclear, a intervenção militar dos EUA nesse conflito, a inviabilidade de transporte marítimo comercial na região do mar vermelho e as crises migratórias de milhares de civis expulsos de suas terras na faixa de gaza são elementos que tem potencial para reverberar muita instabilidade global por um longo período. 

Taiwan entre China e EUA na guerra dos microchips

Os desdobramentos históricos do seculo XX, aos quais não vamos relatar aqui, levaram a ilha de Taiwan viver uma situação politicamente híbrida, possuindo uma relativa autonomia por ter um regime político diferente da China, mas sendo um território chinês, que não possui independência plena. Na virada do ano e algumas semanas antes da eleição presidencial em Taiwan, em discurso para a nação e consequentemente para o mundo, o chefe da nação chinesa, Xi Jinping, declarou: “A reunificação completa da China com Taiwan, é um curso inevitável de desenvolvimento, é justo e é o que o povo espera”. 

No dia 13 de janeiro de 2024, o mundo conheceu o vencedor da eleição em Taiwan, que foi o candidato do Partido Democrático Progressista ( PDP), Lai Ching-Te, atual vice presidente do país, e que era o candidato mais radicalmente defensor da independência de Taiwan. O PDP governa Taiwan desde 2016, e tem estabelecido uma política de proximidade, parceria comercial e cooperação militar com os EUA, o que tem aumentado as tensões com o governo chinês. A ilha de Taiwan fica apenas 130 km de distância da China continental, e a sua independência e possível aliança militar com os EUA, afetaria a soberania dos chineses e seria uma ameaça existencial.

Mas não é só por esse motivo que para os chineses a independência de Taiwan é absolutamente inadmissível ao ponto de ameaças militares estarem na retorica do governo chines. Acontece que essa “ilha rebelde” tem o maior parque industrial de produção de microchips do mundo, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company ( TSMC) é a empresa de tecnologia de microchips mais importante do planeta. Tem produzido microchips de 7 nanômetros desde 2018, também em larga escala os de 5 nanômetros desde 2020 e começou a fabricar os de 3 nanômetros em 2022. Um chip de 7 nanômetros possui entre 95 milhões e 115 milhões de transistores por milímetro quadrado. No processador de 5 nanômetros, a densidade salta para entre 125 milhões e 300 milhões por milímetro quadrado. Quanto menores os chips e maior o numero de transistores, menor será o gasto de energia e maior a capacidade computacional. Empresas como a Nvidia, Apple, Amazon, Google, Qualcomm, META, AMD, as megaempresas tecnológicas chinesas e de vários outros países, que movimentam um fluxo de capital na ordem de trilhões de dólares são totalmente dependentes dos produtos fabricados pela empresa tawanesa.

Tanto no governo Trump, como no governo Biden, foram aprovadas mudanças na legislação norte americana que aumenta a pressão sobre países como Taiwan, Japão, Coreia do Sul e Holanda, para impedir que empresas que fabricam maquinas e tecnologia de produção de chips altamente avançados vendam seus produtos para a China, em especial as maquinas de fotolitografia de ultravioleta extremo ( EUV). O objetivo é impedir a qualquer custo que os chineses avancem em suas pretensões em liderar o controle do mercado de semicondutores e inteligência artificial, especialmente para uso militar. Por sua vez, a China ao mesmo tempo que tenta desenvolver sua produção própria de microchips ultra avançados, tem tentado driblar o bloqueio norte americano e de alguma forma tem conseguido sobreviver nesse mercado estratégico, produzindo processadores de 7 nanômetros. Mas ainda está bem atrás do que há de mais avançado no mundo, que tem a holandesa ASML e a tawanesa TMSC como lideres isoladas no mercado. 

A corrida pelo controle do mercado de semicondutores, tem desencadeado a guerra dos chips entre EUA e China, e esse é mais um elemento que aumenta a tensão das relações entre a China e sua “ilha rebelde”. O mundo ocidental teme uma reação mais agressiva do governo chines em invadir a ilha militarmente e passar a controlar as empresas tecnológicas Tawanesas. Menos que isso, um simples bloqueio dos portos de Taiwan impedindo as exportações dos seus produtos tecnológicos para o mundo geraria um prejuízo na escala de trilhões de dólares, pois todas as fabricas de produtos que agregam de alguma forma tecnologias dependente de processadores mais ou menos avançados importam produtos de Taiwan. Diante desse cenário o governo dos EUA poderia ser obrigado a tomar atitudes, e um conflito militar envolvendo China e a aliança militar do ocidente poderia eclodir. Exercícios militares, declarações e ultimatos tanto dos chineses como dos americanos tem se intensificado no ultimo período. Mas conscientes de que não é o momento para bancar mais uma guerra em outra região do mundo, logo após o anuncio da vitória eleitoral do candidato abertamente separatista de Taiwan, o presidente dos EUA, Joe Biden, deu uma declaração categórica saudando o resultado da eleição, mas dizendo que “os EUA não são favoráveis a independência de Taiwan”. 

O que está acontecendo na africa ocidental? 

Nos últimos três anos,  países na região do Sahel. na africa ocidental, vem passando por revoltas lideradas por militares com amplo apoio popular, que tem como principal motivação um sentimento contrário ao neocolonialismo promovido pelo ocidente, em especial França e os EUA. A onda de “golpes de estado” de caráter nacionalista começou no Mali( 2020), Guiné( 2021), Burkina Faso ( 2022) e Niger ( 2023). Nesse ultimo, que é um dos países mais pobres do mundo, o governo francês chegou a ensaiar uma intervenção militar terceirizada pelos países do CEDEAO, mas que não obteve sucesso. 

Após a segunda guerra mundial, o combalido continente europeu, os seus acordos com os EUA para permitir acesso as suas colonias e revoltas nos países africanos, abriu uma etapa de independência de vários países africanos que eram colonias europeias. Mas os desdobramentos desse processo acabou configurando, o que se convencionou chamar por muitos intelectuais/historiadores africanos de neocolonialismo. Os países africanos passaram a ter governos e instituições autônomas, mas governados por forças políticas totalmente ligadas aos interesses europeus, o que na pratica dava continuidade a uma relação absolutamente tóxica e abusiva amplamente desvantajosa para os africanos, o resultado sempre foi pobreza, estagnação econômica, guerras civis e desrespeito aos direitos humanos. Com o passar dos anos, essa relação política passou a causar uma profunda insatisfação nas novas gerações, sentimento que alimentou lentamente um forte movimento que desencadeou tais revoltas militares contra a exploração francesa na região.

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No dia 16 de setembro de 2023, na cidade de Bamako, capital do Mali, autoridades dos governos rebeldes de Burkina Faso, Mali e Niger se reuniram e criaram a aliança dos estados de Sahel ( AES, em inglês). Escreveram e assinaram juntos a carta Liptako-Gourma, declarando ao mundo que estavam naquele momento lançando um pacto militar, econômico e político de cooperação e auto defesa.  Essa aliança é a expressão de um sentimento de indignação que existe na população desses países que não toleram mais o saque de recursos naturais, em particular o Urânio. Como também foi fundamental para impedir um contra golpe apoiado pela frança através de uma intervenção militar promovido por forças militares nigerianas contra a rebelião no Niger. A luta contra grupos de ações terroristas na região é também uma das motivações da Aliança de Sahel, elemento que se desenvolveu na ultima década, trazendo uma série de problemas de segurança para a população desses países, tais grupos se fortaleceram na região após a destruição da Líbia em 2011. Existe uma consciência de que a ação da Otan liderada pela França, na derrubada de Omar Kadafi e o desmantelamento político completo do país líbio, é a verdadeira responsável pelo fortalecimento desses grupos terroristas fundamentalistas na região.

Na medida que cresce o sentimento crítico no imaginário social da população contra o papel da França, EUA e Otan em vários países da Africa, vai surgindo cada vez mais simpatia em estabelecer relações com a Rússia e China. Trata-se de um nítido reconhecimento do surgimento de um novo polo de poder global alternativo ao ocidente no qual é possível estabelecer relações políticas, militares e econômicas. No inicio de desse ano, o governo francês confirmou o fechamento da sua embaixada no Niger, e o que mais chamou atenção foram as manifestações da população nigerina comemorando o rompimento das relações com o ex-colonizador, levantando bandeiras da Rússia nos atos, expressando uma relação de simpatia e confiança não só na junta militar que governa o país, mas também na população.  

Nos dias 27 e 28 de julho de 2023, na cidade de São Petersburgo, Putin foi o anfitrião da cúpula Rússia-Africa, que contou com a participação de mais de 40 representações de países africanos. Além de avançar na relação diplomática com a Africa na tentativa de romper o isolamento imposto pela aliança ocidental, o evento serviu para o governo russo mitigar possíveis impactos da guerra na Ucrânia em relação a possíveis produtos e alimentos que passaram a ter difícil acesso. Veja alguns trechos da fala de Ibrahim Traoré, o jovem líder do novo governo de Burkina Faso nesse evento com os russos: 

“ Nos sentimos uma família, e sentimos que a Rússia também é uma família para a África. É uma família porque temos a mesma história, a Rússia fez enormes sacrifícios para libertar o mundo do nazismo na segunda guerra mundial. O povo africano, nossos avôs, também deportados a força para ajudar a Europa derrotar o nazismo, nós compartilhamos da mesma história nesse sentido. Nós somos os povos esquecidos no mundo, seja nos livros de história, em documentários ou filmes, foi descartado o papel fundamental da Rússia e da Africa na luta contra o nazismo… No que diz respeito a Burkina Faso, nós enfrentamos por mais de 8 anos, a forma mais bárbara, mais violenta, de neocolonialismo, de imperialismo. A escravidão continua a se impor a nós, nossos predecessores nos ensinaram uma coisa, o escravo que não pode realizar sua própria revolta, não merece pena. Não sentimos pena de nós mesmos, não pedimos a ninguém que tenha pena de nós. O povo de Burkina Faso decidiu lutar! Lutar contra o terrorismo, para relançar o seu desenvolvimento. Nessa luta, povos valentes de vinte populações se comprometeram a pegar em armas em face ao terrorismo, o que carinhosamente chamamos de VDPs, de voluntários. Estamos surpresos ao ver os imperialistas, tratar esses voluntários como milícias, é decepcionante! Na Europa, quando o povo pega em armas para defender o seu país, são chamados de patriotas… Os chefes de estado africanos, precisam parar de dançar como marionetes quando os imperialistas mexem as cordas. Ontem o presidente Vladimir Putin anunciou o envio de cerais para a Africa, estamos muito felizes. Dizemos obrigado por isso… Gloria ao povo! Dignidade ao povo! Vitória ao povo! Patria ou morte! Iremos vencer!” ( Ibraim Traoré, lider da Burkina Farso, Cupula Africa-Russia, 2023)

No passado, a União Soviética tinha uma relação próxima com os países africanos, principalmente por apoiar movimentos de libertação nacional, ao ponto de Moçambique ter até uma arma russa em sua bandeira, a AK-47.  Após o fim do bloco soviético, essa relação se interrompeu. Mas na ultima década, a Rússia tem intensificado esforços para uma aproximação com países do continente africano, o que fez o fluxo comercial dessa relação aumentar rapidamente nos últimos anos, em especial no setor de segurança, defesa, mineração e energia. Mas é a China, país que lidera os Brics juntamente com a Rússia, a maior parceira comercial de toda a Africa. Segundo dados da APEXBrasil, em 2003 a França era a principal parceira econômica da Africa. Em 2022, a China já ocupava o lugar dos franceses, com um fluxo de negócios na ordem de US$ 243,3 bilhões. 

Como será superada a crise de hegemonia capitalista no seculo XXI?

Existem formas distintas de se resolver uma disputa pela hegemonia política e a transformação de um mundo unipolar numa configuração multipolar. Uma delas seria por uma via pacifica, diplomática, construindo acordos sem uma guerra global entre as nações. Mas a história já nos mostrou que a guerra total aparece como um método muito usual para que os estados imperialistas resolvam suas diferenças e disputas de interesse politico e econômico, inclusive com guerras não planejadas, e situações que simplesmente fogem do controle. A pandemia acelerou muitos processos, e o mundo que surgiu após a experiencia com a Covid-19, parece ter antecipado o que já víamos se desenvolver mais lentamente. Não nos parece que a via pacífica seja o caminho que está sendo escolhido para a resolução das disputas e diferenças entre as nações, a maioria dos analistas ocidentais, orientais, do atlântico norte ao emergentes do sul global estão chamando a atenção para o aumento das tensões geopolíticas que estão se desdobrando em conflitos e guerras. 

Uma bifurcação do poder global começa a ganhar força evidente, com tendencias a um emblocamento político e econômico se formando como alternativa a hegemonia ocidental liderada pelos EUA e Europa, com o protagonismo do sul global. Não podemos afirmar que se trata de um novo bloco consolidado como é historicamente a relação das nações que estão sob a liderança dos EUA via Otan, Banco Mundial, FMI e outros organismos que foram construídos em acordos pós guerra ainda no seculo XX. Mas já se desenvolve relações econômicas formais e bem robustas através dos BRICS, que foi fundamental para a Rússia sobreviver até agora as sanções econômicas impostas pela guerra. Assim como já existe confirmações de relações de apoio e cooperação militar, em especial desenvolvida pela Rússia e outras nações em vários conflitos pelo mundo, como foi no caso da Síria e Venezuela, aos quais o governo russo interviu militarmente para apoiar o governo desses países. Como é o caso também do Irã, Coreia do Norte, Belarus, aos quais são países que estão nesse momento numa intensa relação militar em apoio a Rússia com fornecimento de misseis balísticos, drones militares, acesso a território para bases militares e tecnologia de guerra de todo tipo. Na ocasião da cúpula Africa-Russia realizada ano passado, segundo informações do Kremlin também foi assinado acordos de cooperação técnico-militar entre o governo russo e vários países africanos, cujo os seus representantes foram convidados a participar de fóruns militares organizados pelos russos para conhecerem e aprender a operar equipamentos militares de ultima geração. 

Ainda sobre os Brics, antes da 15º cúpula realizada em agosto do ano passado na cidade de Joanesburgo na Africa do Sul, mais de 20 países solicitaram entrada no bloco, que até então era formado apenas pelo Brasil, Rússia, Índia, China e Africa do Sul. Como as decisões para a entrada de novos integrantes se dá por consenso, após muita discussão, foi autorizado a entrada de seis novos países, são eles: Argentina, Arabia Saudita, Emirados Árabes, Egito, Etiópia e Irã, surgindo assim o “Brics plus”. Desses, somente a Argentina declinou no final do ano passado por conta da vitória eleitoral de Milei, que tem uma íntima relação com o polo ocidental, em especial com os EUA. Mas é inegável o interesse no Brics por nações que buscam outro tipo de relação econômica diferente dos organismos internacionais tradicionais que já acumulam um desgaste e deficit de confiança. 

Esse cenário também se expressa em números na participação econômica do bloco na riqueza mundial. Segundo dados do Banco Mundial, em 2000 o PIB dos cinco membros originais do Brics representava cerca de 8% do PIB mundial. Em 2022, a atividade econômica dos países do bloco já representava 25,5% do índice do planeta. Comparando com o G7, de 2000 a 2022, o grupo caiu de 65,4% para 42,8% na sua participação na economia global, existindo projeções do FMI que aponta que até 2030, o Brics vai ultrapassar os países que formam o G7 em participação na riqueza mundial. Trata-se de uma mudança histórica e inaceitável para as potencias do ocidente, explicando muito os conflitos já existentes e a escalada que estamos vendo até agora, sem perspectivas de acordo. 

Embora fazer previsões para eventos que dependem de situações multifatoriais com alto desvio padrão é muito perigoso, mas não podemos deixar de perceber que as hostilidades politicas, as retaliações econômicas, os conflitos e guerras estão concentrados hoje de forma direta ou indireta entre nações que estão de alguma forma posicionadas ou simpatizantes em um dos polos de poder que se desenha nas relações geopolíticas contemporâneas. Difícil conceber que essa reorganização na ordem do sistema mundial de estados poderá sustentar uma convivência pacifica, civilizada e de espirito olímpico. Mas podemos arriscar alguns cenários possíveis, em primeiro lugar no sistema capitalista já estamos todos avisados que nunca uma força hegemônica aceitou perder o seu império sem recorrer a guerra. Assim como não temos nenhuma garantia que o mundo será melhor para viver, se a ordem mundial for atravessada por um mundo multipolar em tensão permanente.