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TEORIA

Lênin e o partido revolucionário – Parte 1

Esse é um capítulo do livro “Lenin and the revolutionary party”, de Paul Le Blanc, que será integralmente traduzido pelo Eol ao longo dos próximos meses.

Por Paul Le Blanc. Tradução de Paulo Duque, do Esquerda Online

Vladimir Ilyich Lenin foi o principal líder da primeira revolução socialista mundial da classe trabalhadora, que varreu a Rússia em 1917 e continua a repercutir até nossos dias. As pessoas ao redor do mundo – que anseiam pelo fim da injustiça, da guerra e da opressão – olharam com esperança para o exemplo dos bolcheviques russos e para as ideias de Lenin como um guia para as lutas de libertação e mudança social em seus próprios países. Como explicou outro líder da revolução bolchevique, Leon Trotsky: “O principal trabalho da vida de Lenin foi a organização de um partido capaz de conduzir a Revolução de Outubro e dirigir a contração do socialismo” [1]. Por causa disso, os homens e as mulheres com mente revolucionária têm dado especial atenção às visões de Lenin sobre o partido revolucionário.

Com o triunfo da revolução bolchevique, Lenin e seus camaradas voltaram a atenção para a tarefa de ajudar revolucionários de outros países a mobilizar os trabalhadores e oprimidos com o objetivo de derrubar o capitalismo em escala global a fim de estabelecer uma comunidade cooperativa mundial na qual, como Marx e Engels escreveram no “Manifesto comunista”, “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” [2]. Renomeando sua própria organização como Partido Comunista, os bolcheviques estabeleceram a Internacional Comunista em 1919 para avançar neste objetivo expansivo.

Milhões de pessoas – de uma rica variedade de culturas, tradições e experiências – responderam ao apelo revolucionário do Partido Bolchevique e da Internacional Comunista. Um deles foi James P. Cannon, um veterano da ala esquerda do Partido Socialista da América e do Trabalhadores Industriais do Mundo. Cannon ajudou a fundar o Partido Comunista da América e foi um de seus principais dirigentes até sua expulsão em 1928, enquanto a Internacional Comunista se tornava cada vez mais burocratizada. No entanto, ele nunca abandonou suas convicções revolucionárias e, em um notável ensaio escrito na década de 1960, continuou a afirmar:

A grande contribuição do arsenal do marxismo desde a morte de Engels em 1895 foi a concepção de Lenin sobre o partido de vanguarda enquanto a organizadora e dirigente da revolução proletária. Essa célebre teoria da organização não foi, como alguns defendem, um simples produto das condições especiais russas de seu tempo e a elas restrita. Ela está profundamente enraizada em duas das mais importantes realidades do século XX: a atualidade da luta dos trabalhadores pela conquista do poder e a necessidade de criar uma direção capaz de conduzi-la até seu fim.

Reconhecendo que nossa época foi caracterizada pelas guerras imperialistas, revoluções proletárias e revoltas coloniais, Lenin se propôs deliberadamente, no início deste século, a formar um partido capaz de transformar tais acontecimentos cataclísmicos em benefício do socialismo. O triunfo do bolchevismo na revolução de 1917 e o estabelecimento da durabilidade da União Soviética atestaram o conhecimento de Lenin e os méritos de seus métodos organizativos. Seu partido destaca-se como o protótipo insuperável daquilo que uma direção democrática e centralizada dos trabalhadores, fiel aos princípios do marxismo e os aplicando com coragem e habilidade, pode ser e fazer. [3]

Estas percepções têm sido compartilhadas por inúmeros trabalhadores, camponeses, estudantes e intelectuais de todos os continentes. Eles se consideram leninistas porque são animados pelo “imperativo categórico da derrubada de todas as condições em que o humano é um ser rebaixado, escravizado, negligenciado, desprezado” [4]. Eles são leninistas porque estão comprometidos, de um modo muito real e prático, em substituir a tirania do capitalismo por um socialismo em que os imensos recursos econômicos da sociedade se tornarão propriedade comum de todas as pessoas, controlados de forma democrática a fim de garantir que seja possível o livre desenvolvimento de cada pessoa.

Um organismo vivo e suas fases de desenvolvimento

Como qualquer organismo vivo, a organização bolchevique era caracterizada por um conjunto particular de tensões internas e com a realidade social mais ampla. Estas tensões lhe deram vitalidade e geraram crescimento, fazendo com que a organização passasse por diferentes fases de desenvolvimento. A organização não pode ser adequadamente compreendida como uma força revolucionária a menos que seja compreendida em seu desenvolvimento. As visões de Lenin sobre o partido revolucionário, que refletiam e faziam parte desta evolução, também não devem ser abordadas como se fossem um esquema acabado e autocontido. A concepção leninista do partido é animada por certos princípios essenciais e por uma abordagem metodológica definida. Existe uma essencial continuidade nas perspectivas organizativas de Lenin da década de 1890 para 1917 e depois. Ao mesmo tempo, existem importantes mudanças no pensamento de Lenin, resultantes de um acúmulo de experiências e refletindo as mudanças no contexto da atividade dos bolcheviques.

Um potencial problema, mesmo entre os revolucionários que reconhecem uma distinção entre o autêntico leninismo e o stalinismo, é a incapacidade em compreender este aspeto dialético do leninismo. Os princípios organizativos leninistas são vistos como um esquema de organização pronto. Este esquema tipicamente envolve uma rigidez organizativa que supostamente constitui “o centralismo leninista e a disciplina partidária”. É algo que os dirigentes “leninistas” às vezes tentam impor de forma exacerbada aos membros, muitas vezes de modo inflexível e independente da situação do momento. Isto é contrário ao próprio método de Lenin e frequentemente tem tido consequências destrutivas para os grupos de esquerda que se glorificam de um “leninismo” abstrato (e, portanto, não-leninista). Isso pode até ser apropriado para a consolidação de um pequeno grupo sectário, mas provoca um curto-circuito no processo de construção de um partido da classe trabalhadora capaz de dirigir uma luta bem-sucedida pelo socialismo.

O presente estudo busca recuperar o real significado dos princípios organizativos leninistas ao localizá-los na história do movimento socialista revolucionário da Rússia. Inicialmente, a expressão organizativa deste movimento foi o Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSDR) e, especificamente, sua fração bolchevique entre 1903 e 1912; depois, esta expressão se concentrou no Partido Bolchevique Independente, que se tornou o Partido Comunista Russo depois de 1917. Neste contexto, a perspectiva organizativa leninista pode ser considerada como tendo passado por seis fases em seu desenvolvimento entre 1900 e 1923.

1. 1900-1904. Lenin e outros marxistas lutaram para estabelecer o POSDR em torno do programa revolucionário e dos conceitos organizativos centralizados expostos no jornal Iskra. Os membros do “Iskra” e do POSDR se dividiram em frações maioritárias e minoritárias (os Bolcheviques e os Mencheviques), fortemente contrapostas, com os bolcheviques de Lenin promovendo a mais consistente orientação centralista e intransigentemente revolucionária. No entanto, neste período, o POSDR era majoritariamente constituído por intelectuais radicalizados, tendo uma pequena minoria de trabalhadores e uma base muito fraca no proletariado.

2. 1905-1906. A ascensão revolucionária de 1905 surpreende as frações bolcheviques e mencheviques. Ambas as frações são arrastadas pelo entusiasmo revolucionário dos trabalhadores. O centralismo de Lenin é temperado pela compreensão de que normas mais frouxas e democráticas podem ajudar a enraizar o POSDR em uma classe trabalhadora mais radicalizada. Uma convergência nas orientações bolcheviques e mencheviques parecia estar em processo.

3. 1907-1912. A derrota da onda revolucionária e a contrarrevolução triunfante destroem a base de massas do POSDR na Rússia. A nova situação inverteu a convergência das frações bolchevique e menchevique, já que uma fundamental diferença programática, já visível em 1905, afastara as duas frações. Na luta para derrubar o absolutismo czarista, os mencheviques colocaram maior peso em uma aliança da classe operária com a burguesia “progressista”, enquanto os bolcheviques se opuseram a isso com a proposta de uma aliança revolucionária entre operários e camponeses. Entre os mencheviques, se desenvolvia um impulso cada vez mais forte para liquidar o partido revolucionário dos trabalhadores em direção a organizações trabalhistas reformistas. Entre os bolcheviques, surgia um impulso sectário esquerdista, que ameaçava levá-los a uma atitude de abstenção diante das oportunidades de participar na efetiva luta de classes. Lenin travou uma amarga batalha contra os liquidacionistas e os abstencionistas. Ele expulsou estes últimos da fração bolchevique e tentou expulsar complemente os primeiros do POSDR. Muitos mencheviques não liquidacionistas e até mesmo alguns bolcheviques não abstencionistas temiam que Lenin estivesse sendo muito “duro” e procuraram a “conciliação” com liquidacionistas e abstencionistas a fim de preservar a unidade do POSDR. Lenin força uma divisão organizativa decisiva, constituindo a sua fração como um partido separado – o Partido Operário Socialdemocrata Russo (Bolcheviques).

4. 1912-1914. O partido bolchevique, unificado sobre a base de um programa revolucionário de luta de classe, superou os sem coesão e conflitantes remanescentes militantes do PSDOR não bolchevique – particularmente diante de uma nova onda de militantes da classe trabalhadora.

5. 1914-1917. A exploração da Primeira Guerra Mundial desvia a crescente onda militante para a histeria patriótica e o massacre. Os bolcheviques e a minoria dos internacionalistas mencheviques se opuseram fortemente aos esforços de guerra russos e são duramente reprimidos. A maioria dos mencheviques reformistas e pró-guerra estava disposta a assumir uma posição dominante no movimento operário.

6. 1917-1923. A devastação da Primeira Guerra Mundial teve um profundo impacto de radicalização nas massas russas e o regime czarista, gravemente enfraquecido, é derrubado por uma revolta revolucionária espontânea. Na nova e volátil situação, os mencheviques reformistas e vacilantes são novamente ultrapassados pelo partido bolchevique, que estava disposto a dirigir as massas para a revolução socialista. Os efeitos da guerra, da guerra civil, e dos bloqueios e intervenções estrangeiras resultaram no colapso econômico e na desintegração da classe trabalhadora enquanto uma força política. Os bolcheviques se sentiram obrigados a adotar medidas restritivas, na Rússia como um todo e em seu próprio partido, enquanto esperavam por uma revolução socialista triunfante no industrializado ocidente, que colocaria um fim ao desesperado isolamento do seu país empobrecido e sangrento país.

Este esquema bem resumido das seis fases do “leninismo de Lenin” sugere as mudanças de contextos nos quais as várias (e às vezes aparentemente contraditórias) declarações de Lenin sobre a questão organizativa podem ser entendidas. Existem pontos gerais óbvios que devem ser considerados sobre a situação da Rússia czarista – o atraso econômico, a predominância do campesinato na população, as peculiaridades do desenvolvimento capitalista russo e a repressão do absolutismo czarista. Este último fator, acima de tudo, levou os revolucionários russos a desenvolver formas de organização que fossem consistentes com as realidades do trabalho clandestino e da política de exílio. Existem muitas coisas que exigiram a incorporação no “leninismo de Lenin” de qualidades que – pelo menos neste ponto – têm pouca relevância imediata à situação dos revolucionários em diferentes contextos (por exemplo, que por vezes é chamado de “democracias capitalistas avançadas”).

Certos aspectos da orientação organizativa leninista, no entanto, têm aplicabilidade universal. Uma delas é a primazia do programa revolucionário – os princípios, a análise geral, os objetivos, a orientação estratégica e tática que podem conduzir a luta de classe a uma conclusão socialista revolucionária. Outra é a concepção do partido revolucionário de vanguarda, composta apenas por ativistas comprometidos com o programa revolucionário. Tal partido não tenta trazer às suas fileiras toda a classe trabalhadora, mas busca interagir com a classe trabalhadora em vista de influenciá-la para uma direção revolucionária. Obviamente, para isto, o partido de vanguarda deve ter uma composição predominante da classe trabalhadora, mas é importante salientar que estes devem ser ativistas revolucionários da classe trabalhadora. Finalmente, o centralismo e a democracia organizativos devem ser combinados de forma a transformar o partido de vanguarda, para que seja mais eficaz na aplicação do programa revolucionário à realidade. Dada a característica complexa, dinâmica e em contante mudança da realidade, é necessário ser flexível em determinar o peso dado à democracia e ao centralismo em diferentes situações e períodos.

Para serem fiéis ao método de Lenin, os revolucionários devem estar preparados para aplicar esta orientação de forma criativa em suas situações específicas e em mudança, sendo inovadores como Lenin foi em um ou outro período.

Fonte: LE BLANC, Paul. Lenin and the revolutionary party. Chicago: Haymarket Books, 1993. p. 1-2, 9-12.
Notas
[1] Leon Trotsky. “Lenin”. In: “Encyclopedia Britannica”. 13th ed., vol. 30. London: Encyclopedia Britannica, 1926. p. 697.
[2] Karl Marx e Frederick Engels. “Selected Works”. vol. 1. Moscow: Progress Publishers, 1973. P. 127.
[3] James P. Cannon, “The Vanguard Party and the World Revolution”. In: “Fifty Years of World Revolution: An International Symposium”. New York: Pathfinder Press, 1971. p. 349.
[4] Karl Marx. “Early Writings”. New York: Vintage Books, 1975. p. 251.