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TEORIA

O pensamento anticolonial e antirracista de Lênin

Vinicius Machado, de Vitória (ES)

Há 100 anos, em 21 de janeiro de 1924, falecia Vladimir Ilyich Ulianov, mais conhecido pelo pseudônimo de Lênin. Fundador do bolchevismo, principal liderança da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, o acontecimento que abalou as estruturas da sociedade capitalista, Lênin foi, sem sombra de dúvida, a maior figura histórica do século XX.

Nos cem anos do seu falecimento, não é meu objetivo apresentar uma síntese biográfica de Lênin. Há vasta literatura sobre a sua vida e obra que é de fácil acesso aos que se interessam. Este artigo se propõe a debater as contribuições de Lênin para a luta anticolonial e antirracista, questões fundamentais para o momento atual, quando vemos o Estado racista e colonialista de Israel avançar no seu projeto genocida contra o povo palestino.

Lênin e a ruptura com o eurocentrismo da segunda internacional

Muitos pensadores e intelectuais ao longo do século XX destacaram a virada fundamental do marxismo após a vitória da Revolução Russa, em 1917, e a fundação da Internacional Comunista, em 1919: a ruptura com uma visão eurocêntrica predominante na Segunda Internacional. O movimento comunista, comandado por seu principal dirigente, Lênin, vai defender a centralidade da luta anti-imperialista, anticolonial, antirracista e de libertação nacional.

Foi só com a Revolução Russa, a União Soviética e a Internacional Comunista que o marxismo se tornou realmente mundial, com a constituição de várias organizações comunistas na América Latina, Ásia e África. Entretanto, quando analisamos com atenção os escritos de Lênin, observamos que antes mesmo da vitória da revolução o líder bolchevique já abordava a questão colonial e a luta pela autodeterminação das nacionalidades oprimidas em suas produções teóricas. Mesmo antes da Primeira Guerra Mundial, Lênin escreveu uma série textos sobre o tema. Em um artigo publicado em 1913, com o provocativo título A Europa atrasada e a Ásia avançada, ele identificou o dinamismo dos movimentos para libertação nacional no Oriente. Pouco tempo depois, já durante a guerra, em Imperialismo, estágio superior do capitalismo, de 1916, desenvolvendo uma compreensão lúcida da predominância do capital financeiro e do capital monopolista dentro do capitalismo, Lênin explorou as limitações da social-democracia no Ocidente, com a aristocracia operária fornecendo uma barreira ao avanço do socialismo; e o potencial da revolução no Oriente, onde o “elo mais débil” na corrente imperialista poderia ser encontrado.

Para Lênin, na era do capitalismo monopolista, o mundo estava dividido em duas partes: um punhado de potências imperialistas, de um lado, e do outro os países coloniais, semicolonais e dependentes habitados pelos povos oprimidos que constituem a maioria da população mundial. Sob as circunstâncias da guerra, ele vinculou a questão nacional à questão colonial, estendendo-a de uma questão local, confinada às nações de países “civilizados” na Europa, a uma questão geral de libertação de todas as nações oprimidas. Além disso, considerou a questão colonial como parte da revolução proletária e da ditadura do proletariado. Ao mesmo tempo, defendeu a genuína solidariedade das nações com base no princípio do internacionalismo proletário, o que se tornou o núcleo posterior do anticolonialismo e do anti-imperialismo, desenvolvido na Internacional Comunista.

No contexto pós Revolução russa, no 2º Congresso da Internacional Comunista, O esboço inicial das teses sobre as questões nacional e colonial, redigidas por Lênin, declarara que “[…] em toda a propaganda e agitação dos partidos comunistas – tanto na tribuna parlamentar como fora dela-, devem ser incansavelmente desmascaradas as constantes violências da igualdade das nações e das garantias dos direitos das minorias nacionais em todos os Estados capitalistas, a despeito das suas constituições “democráticas”.” Sendo assim, todos os partidos comunistas deveriam se envolver e participar diretamente da luta dos “movimentos revolucionários nas nações dependentes ou que não gozam da igualdade de direitos (por exemplo, na Irlanda, entre os negros da América, etc.) e nas colônias”. Segundo as teses, “Sem esta última condição, particularmente importante, a luta contra a opressão das nações dependentes e das colônias, do mesmo modo que o reconhecimento do seu direito à separação estatal, são apenas um rótulo enganador, como vemos nos partidos da II Internacional”. Além disso, o 2º Congresso também especificou que o apoio ativo para a libertação colonial era uma condição prévia para a adesão à Internacional Comunista.

Não por acaso grandes lutadores e lideranças políticas do sul global, que comandaram revoluções, como Mao Tse-Tung, Ho Chi-Minh, Fidel Castro, Lumumba, Samora Machel, Agostinho Neto e Amilcar Cabral, se declararam marxistas-leninistas. Foi esse marxismo anti-imperialista e anticolonial que liderou as lutas pela libertação nacional ao redor do mundo.

A Internacional Comunista e a luta antirracista

Em combinação com a centralidade da luta anti-imperialista e anticolonial pela libertação nacional está a luta antirracista. O 4º Congresso da Internacional Comunista vai dedicar especial atenção a aplicação das teses sobre a questão colonial em relação à situação da população negra, tendo em vista que “A questão negra tornou-se parte integrante da revolução mundial”.

A Tese sobre a Questão Negra, documento histórico escrito coletivamente e sob influência direta de Lênin, afirmava que “a guerra, a revolução e a rebelião anti-imperialista” havia despertado “a consciência de milhões de negros que durante séculos foram oprimidos e humilhados pelo capitalismo na África e na América”.

Dividida em seis partes, essa Tese destaca a relação entre escravidão, acumulação primitiva do capital e racismo e o papel fundamental dos negros dos EUA “na luta de libertação de toda a raça africana”, tendo em vista seu longo e intenso combate contra a exploração e a opressão racista, primeiro contra a escravidão, depois na sociedade burguesa. Em países de origem colonial, portanto, era impossível pensar a luta de classes sem a questão racial. O documento também vai afirmar que o racismo é a arma ideológica do capitalismo e do imperialismo para dividir a classe trabalhadora, potencializar a exploração e legitimar a violência estatal, e que era papel fundamental da Internacional Comunista combater o racismo e fomentar a unidade entre as lutas dos povos negros, de outros povos oprimidos não brancos e dos trabalhadores em geral, pois todos lutam “por libertação e igualdade política, econômica e social”.

A Internacional Comunista apresentava, também, uma plataforma positiva para a luta: “a) O Quarto Congresso considera essencial apoiar todas as formas de movimento negro que minam ou enfraquecem o capitalismo ou colocam barreiras no caminho de sua expansão; b) A Internacional Comunista lutará pela igualdade das raças branca e negra, e por salários iguais e direitos políticos e sociais iguais; a) A Internacional Comunista utilizará todos os meios à sua disposição para obrigar os sindicatos a aceitar os direitos dos trabalhadores negros ou, onde esse direito já existe na forma, a fazer esforços especiais para recrutar negros nos sindicatos. Se isso se revelar impossível, a Internacional Comunista organizará os negros em seus próprios sindicatos e fará uso especial da tática da frente única para forçar os sindicatos gerais a admiti-los; d) A Internacional Comunista tomará medidas imediatas para convocar uma conferência geral ou congresso de negros em Moscou”.

A Tese sobre a Questão Negra, escrita há mais de 100 anos, é a comprovação do esforço do movimento comunista em apoiar e organizar a luta da população negra que se rebelava em todo mundo contra a exploração e a opressão. Tal esforço contou com a dedicação de muitos militantes negros que compreenderam que o racismo é sustentado e se renova pela escravidão assalariada imposta pelo capitalismo às amplas massas de todo o mundo.

Como há mais de um século, Lênin e a Internacional Comunista ensinaram aos marxistas a cerrarem fileiras nas lutas anti-imperialistas, anticoloniais e antirracistas, serem vanguarda nestas lutas, e construírem a unidade necessária no combate ao capital.

Obviamente, a contribuição de Lênin vai além dos pontos que foram elencados neste artigo, e não foi nossa pretensão esgotar, em um texto curto, toda a riqueza de seu legado político. Entretanto, acreditamos que, ao passar em revista as contribuições de Lênin para a luta anticolonial e antirracista, o leitor poderá melhor constatar a atualidade do seu pensamento nos cem anos do seu falecimento, além de perceber com clareza por que a abordagem pioneira de Marx e Engels passou a ser reconhecida, ao longo do século XX, pela alcunha de marxismo-leninismo.

Referências:
Imperialismo, estágio superior do capitalismo, Lênin
O esboço inicial das teses sobre as questões nacional e colonial, Lênin
Tese sobre a questão negra, Lênin
PRASHAD, Vijay. Estrela vermelha sobre o terceiro mundo. Expressão Popular.

Vinícius Machado é professor de História e membro da coordenação Regional da Resistência ES