Mais de meio século depois de iniciar sua ocupação da Faixa de Gaza, há sinais crescentes de que Israel está usando sua atual ofensiva militar para refazer o território completamente.
Em 30 de outubro, a +972 publicou um documento oficial do Ministério da Inteligência de Israel recomendando a expulsão em larga escala de todos os palestinos de Gaza para o deserto do Sinai. Após relatos de que o governo israelense estava fazendo lobby para o Egito aceitar um grande número da população de Gaza, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu confirmou em uma reunião do partido Likud que ele estava ativamente tentando “transferir” palestinos para fora da Faixa de Gaza. Pedidos de expulsão em massa, que estavam em alta na direita israelense mesmo antes de 7 de outubro, tornaram-se cada vez mais aceitáveis no discurso israelense dominante.
Os ataques à infraestrutura de Gaza e à população civil parecem corroborar tais planos. O Comissário-Geral da UNRWA Philippe Lazzarini afirmou que, pela primeira vez desde sua criação, há 74 anos, a agência é incapaz de cumprir seu mandato em Gaza. Alguns comentaristas estão argumentando que as ações de Israel em Gaza agora compreendem um “domicídio”— a destruição deliberada e maciça de habitações para tornar inabitável uma zona.Inscrição
O número de palestinos mortos desde 7 de outubro já ultrapassou o número total de mortos em todas as operações israelenses anteriores na Faixa neste século. Até o momento, as forças israelenses mataram mais de 21,000 palestinos em Gaza, 70 por cento dos quais são mulheres e crianças; mais de 51,000 pessoas ficaram feridas; e quase1,9 milhão, a grande maioria da população da Faixa, foram deslocados.
Ao mesmo tempo em que defende suas ações em Gaza como necessárias e nega as acusações de crimes de guerra, o governo israelense está descrevendo sua guerra em termos existenciais. O ataque do Hamas em 7 de outubro foi um dos ataques mais mortais contra Israel na história do Estado. Pela primeira vez desde 1948, as forças israelenses perderam temporariamente o controle do território dentro da Linha Verde (fronteira de 1949), já que o Hamas matou mais de1.200 israelenses, feriu mais do que 5.000, e sequestrou cerca de240 pessoas, a maioria civis. O impacto na psique israelense, e o consequente trauma coletivo, foi profundo.
Capitalizando tais sentimentos, o governo israelense, com o amplo suporte do público, enquadrou o ataque a Gaza como uma batalha pela sobrevivência. O ministro da Defesa, Yoav Gallant, disse “são eles ou nós” e descreveu o ataque aéreo e terrestre como “uma guerra pela existência de Israel como um próspero Estado judeu no Oriente Médio”. Netanyahu a apelidou com “a segunda guerra da independência”.
No entanto, essas declarações bombásticas se chocam com o fato de que Gaza, pelo menos em termos de sua superfície, parece pouco mais do que uma pequena mancha no globo. Como um pedaço tão pequeno de território – que compreende menos de 1,5% da Palestina histórica e é0 menor do que a maioria das cidades dos EUA – se tornou o ponto focal de uma grande luta nacional, regional e global?
Para qualquer pessoa familiarizada com a história da Faixa de Gaza, esta situação não é surpreendente. De fato, nos últimos 75 anos, Gaza tem estado continuamente no epicentro da história palestino-israelense. Todos os grandes temas da luta palestina – espoliação, ocupação, levantes, autonomia e militância – estão contidos neste enclave costeiro. Traçar a história da Faixa através desses marcos pode, portanto, iluminar o momento presente e ajudar a explicar o pano de fundo da crise atual.
Espoliação e exílio
Originalmente uma cidade portuária no Mediterrâneo oriental, Gaza tem uma longa história como um centro comercial com posicionamento estratégico fundamental para o Oriente Médio, Norte da África e Sul da Europa. Mas a “Faixa” de 365 km quadrados que conhecemos hoje é um resultado direto da Nakba.
De acordo com o plano de partilha de 1947, 55% da Palestina tinha sido designada para um novo Estado judeu; os 45% restantes incluíam a Cidade de Gaza e um trecho significativo do sudoeste da Palestina que se estendia até o deserto do Naqab/Neguev. Na realidade, é claro que a Palestina enfrentou um destino muito diferente. Em maio de 1948, após meses de violência e expulsões, o líder da Agência Judaica David Ben-Gurion declarou a criação do Estado de Israel, sem especificar suas fronteiras. No ano seguinte, as forças israelenses haviam capturado 78% da Palestina.
Os eventos da Nakba produziram a Faixa moderna em termos territoriais e demográficos. O Egito, que havia se juntado a outros países árabes ao declarar guerra a Israel em 1948, assinou um Acordo de Armistício com seu novo vizinho do norte em fevereiro de 1949. O armistício estabeleceu a Faixa de Gaza com suas fronteiras atuais – uma extensão de terra significativamente menor do que a designada pela ONU em 1947 – sob administração egípcia.
Ao mesmo tempo, a criação do Estado israelense expulsou e deslocou à força pelo menos três quartos da população palestina, criando 750.000 refugiados palestinos. Embora esse êxodo tenha transformado a demografia de todo o Levante, nenhum lugar recebeu mais refugiados per capita do que a Faixa de Gaza. Lar de cerca de 80.000 habitantes antes da Nakba, no final da década de 1940 havia absorvido mais de 200.000 refugiados, triplicando a população da área. A densa população da Faixa no século 21, dois terços dos quais descendem dos primeiros refugiados, pode ser atribuída diretamente ao impacto da Nakba.
Para as centenas de milhares de palestinos que viviam em Gaza neste período, a vida era caracterizada por dificuldades e empobrecimento generalizados. Tanto os refugiados quanto os habitantes locais de Gaza perderam suas terras agrícolas e propriedades para o novo Estado israelense, e todos foram isolados da economia palestina mais ampla com a qual haviam interagido anteriormente.
Os oito campos de refugiados recém-criados para abrigar milhares de pessoas em toda a Faixa estavam frequentemente superlotados, insalubres e extremamente desconfortáveis. E embora as respostas humanitárias internacionais tendessem a se concentrar nos refugiados, muitos dos próprios habitantes originais de Gaza estavam igualmente empobrecidos; alguns até foram deslocados, embora dentro da própria Faixa.
Esta história inicial da Faixa de Gaza compreendia a ação palestina, bem como sua a espoliação. Em meio à Nakba, em 1948, Gaza sediou o Conselho Nacional da Palestina, que proclamou a formação do Governo de toda a Palestina— a ideia de líderes nacionalistas exilados e a primeira tentativa de forjar um governo palestino no exílio, embora sob proteção egípcia. Em muitos aspectos, foi o último suspiro das velhas elites palestinas, que cada vez mais passaram à irrelevância após a guerra de 1948.
Perseverança e arbítrio
Determinados a retornar às suas casas e aldeias perdidas, muitos refugiados palestinos atravessaram a fronteira nos anos seguintes para se reunir com entes queridos, recuperar pertences, cuidar de suas plantações ou simplesmente olhar para suas antigas casas. À medida que o exílio continuava, os fedayn (militantes) palestinos também cruzavam cada vez mais a fronteira para realizar operações de emboscada contra Israel.
Como Israel não distinguia entre os vários tipos de travessia, qualquer pessoa que entrasse de Gaza, ou de qualquer território árabe, era considerada um “infiltrado” e imediatamente baleada, deportada ou morta se fosse pega. Estima-se em entre 2.700 a 5.000 o número dos palestinos que perderam a vida desta forma nos anos que se seguiram à Nakba.
Ao mesmo tempo, também havia sinais de perseverança e até florescimento cultural em Gaza após a Nakba. Em 1953, por exemplo, sediou uma exibicao do pintor e historiador de arte Ismail Shammut (que nasceu em Lydd e foi expulso para o campo de refugiados de Khan Younis em 1948), mais tarde descrito como a primeira exposição de arte contemporânea da Palestina.
Gaza também produziu vários poetas importantes neste período, incluindo Mu’in Bseiso, Harun Hashim Rashid e May Sayegh. Todos os três fundiram temas culturais, sociais e políticos em suas obras, refletindo a natureza inevitavelmente politizada da vida em Gaza. Bseiso e Sayegh também eram ativistas declarados na política organizada, o primeiro como comunista e a segunda como líder da divisão feminina do Partido Baath.
Enquanto isso, Gaza se tornava cada vez mais um centro de atividades fedayeen. Pertencentes a uma geração mais jovem do que as figuras por trás do Governo de Toda a Palestina, os fedayeen tendiam a vir de origens mais pobres; Muitos viviam em campos de refugiados e eram motivados por suas experiências diretas de deslocamento e espoliação.
Khalil al-Wazir, um líder proeminente que organizou operações fedayeen nesta época, exemplificou esse arquétipo. Al-Wazir havia sido expulso de sua cidade natal, Ramla, em 1948 e depois vivia no campo de Bureij. Em meados da década de 1950, ele conheceu um engenheiro civil do Egito chamado Yasser Arafat, e os dois se conectaram por causa de seu compromisso compartilhado com a luta palestina. Unindo forças com Salah Khalaf, outro refugiado de Gaza de 1948, eles fundariam o Fatah, o partido que dominou a política palestina pelo resto do século 20.
Apesar de sua separação do resto da Palestina, no entanto, Gaza permaneceu intimamente entrelaçada com o resto do mundo na década de 1950 e início de 1960. Foi integrada na política de solidariedade anticolonial do Sul Global, especialmente depois que Gamal Abdel Nasser assumiu a presidência egípcia em 1954, citando regularmente a causa palestina como chave para sua liderança pan-árabe.
Assim, este período viu as principais figuras anticoloniais visitarem a Faixa, incluindo Che Guevara em 1959,Jawaharlal Nehru em 1960, e Malcolm X em 1964. Todos os três visitaram campos de refugiados durante seu tempo lá, destacando a importância dos refugiados palestinos para a política e as aspirações nacionais da Faixa.
No entanto, esse período não foi de libertação para os palestinos. Eles ainda viviam como um povo apátrida sob o domínio egípcio – primeiro sob um monarca autocrático apoiado pelos britânicos até 1952, e depois sob o regime dos Oficiais Livres, que viria a ser dominado por Nasser.
Os governadores militares egípcios ainda estavam no comando da Faixa e, enquanto Nasser vocalmente apoiava a causa palestina, ele não favorecia o ativismo nacionalista que pudesse rivalizar com sua própria autoridade. Assim, embora o povo de Gaza estivesse temporariamente livre do regime israelense que arruinaria suas vidas nos próximos anos, sua realidade estava longe do Estado independente soberano pelo qual lutaram no período que antecedeu 1948.
Ocupação e assentamentos
Enquanto 1967 é geralmente citado como o ponto de partida da ocupação israelense, a Faixa de Gaza já havia experimentado um interlúdio do que estava por vir uma década antes. No final de outubro de 1956, Israel invadiu e ocupou a Faixa como parte de seu ataque conjunto ao Egito com a Grã-Bretanha e a França, após a nacionalização da Companhia do Canal de Suez por Nasser. O exército israelense tomou a Faixa, ficando cara a cara com muitos dos refugiados palestinos que havia expulsado poucos anos antes.
Embora essa primeira ocupação israelense tenha durado apenas 4 meses – terminando sob o comando do presidente dos EUA, Dwight Eisenhower, que ameaçou sancionar Israel se ele se recusasse a se retirar -, pesquisadores descobriram evidências de planos israelenses a partir dessa época para uma presença de longo prazo na Faixa, e até mesmo a construção de assentamentos judaicos. Quando o exército israelense reconquistou Gaza uma década depois, em junho de 1967, tais planos foram retomados, dando início à ocupação militar mais longa da história moderna.
O novo regime teve imediatamente um impacto sísmico na vida dos palestinianos em Gaza. Eles agora estavam sujeitos à lei militar israelense, com buscas frequentes, interrogatórios e prisões. As forças israelenses reprimiram duramente o nacionalismo palestino – armado e não violento – com figuras importantes detidas, deportadas ou desaparecidas. Muitos ativistas palestinos foram expulsos ou fugiram, com aqueles que permaneceram sendo mantidos regularmente em detenção administrativa sem julgamento ou acusação. As deportações israelenses continuaram na década de 1970, com mais palestinos de Gaza sendo expulsos à força para a Cisjordânia, Sinai e Jordânia.
Embora a ocupação tenha sido imposta tanto na Cisjordânia quanto em Gaza, desde cedo as políticas de Israel divergiram entre os dois. As autoridades israelenses viam a Faixa como uma fonte particular de preocupação, julgando que seu grande número de refugiados, densidade populacional e pobreza a tornavam mais suscetível ao radicalismo.
Como resultado, os líderes israelenses criaram uma série de políticas neste período destinadas a diminuir a população de Gaza, desmembrando seus campos e instigando a emigração em larga escala. Eles seguiram várias estratégias para alcançar este último, buscando pagar aos habitantes de Gaza para começar novas vidas nas Américas, ou reduzir o padrão de vida na Faixa a tal ponto que as pessoas seriam obrigadas a sair. A recusa generalizada em cooperar entre os refugiados significou que Israel teve sucesso limitado nesses esforços.
Ao mesmo tempo, e ironicamente, a imposição do domínio israelense significava que Gaza e a Cisjordânia – as duas partes da Palestina não capturadas por Israel em 1948 – estavam agora reunidas sob o mesmo poder. Como resultado, aqueles que estavam em Gaza poderiam se reconectar com seus parentes e amigos na Cisjordânia, bem como com aqueles dentro de Israel, e vice-versa. Crucialmente, os refugiados também puderam visitar suas casas e cidades perdidas pela primeira vez desde a Nakba, embora muitos descobrissem que suas casas haviam sido destruídas, ou que os israelenses que agora viviam lá não os deixariam entrar.
Em contraste com o bloqueio e os fechamentos do século 21, os palestinos em Gaza tiveram movimentos relativamente mais livres nesse período; a fronteira que separa Israel e Gaza era bastante porosa, com palestinos e israelenses podendo atravessá-la com bastante facilidade. Na verdade, tornou-se comum que os palestinos trabalhassem dentro de Israel, com muitos se tornando fluentes em hebraico como resultado. Os israelenses também visitavam Gaza por suas compras baratas, excelente mecânica de carros e famosos frutos do mar.
No entanto, o movimento aberto nessa época estava longe de ser uma troca entre iguais. Os trabalhadores palestinos que trabalhavam dentro de Israel eram apátridas não cidadãos, o que significava que tinham poucos direitos e serviam essencialmente como uma reserva de mão de obra barata. Gaza também forneceu um mercado cativo para produtos israelenses, estrangulando o próprio desenvolvimento econômico da Faixa. E, talvez o mais significativo, a crescente sobreposição também implicou o estabelecimento de assentamentos israelenses ilegais em Gaza – finalmente totalizando 21 – deslocando muitos palestinos mais uma vez à medida que suas terras foram expropriadas para dar lugar a colonos judeus, todos sob lei marcial contínua.
Levante e negociações
Vinte anos após a ocupação israelense, uma geração palestina inteira havia crescido sem saber mais além disso. No final da década de 1980, os assentamentos israelenses estavam se expandindo e até prosperando, enquanto os palestinos permaneciam apátridas e empobrecidos. A invasão do Líbano por Israel em 1982 e o cerco a Beirute, o massacre de Sabra e Shatila naquele ano, os fracassos da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e a guinada à direita da política israelense após a ascensão do Likud ao poder em 1977, aumentaram a raiva palestina.
Experimentando as formas mais agudas de espoliação e domínio militar, Gaza tornou-se o berço de talvez a revolta palestina mais significativa do século passado: a Primeira Intifada.
A faísca veio em dezembro de 1987, quando um veículo do exército israelense bateu em um carro palestino na Faixa de Gaza, matando quatro pessoas; três deles moravam no campo de Jabalia, lar de refugiados que haviam sido expulsos de aldeias no sul da Palestina durante a Nakba. Embora as autoridades israelenses insistissem que o acidente foi acidental, muitos palestinos estavam céticos, dada a experiência generalizada de brutalidade e desinformação por parte do exército israelense.
A revolta resultante finalmente se espalhou por toda a Faixa e até a Cisjordânia. Em grande parte tomando a forma de uma campanha de desobediência civil em massa para forçar o fim da ocupação, a Primeira Intifada viu os palestinos se recusarem a pagar impostos impostos por Israel, boicotar produtos israelenses e não trabalhar para os empregadores israelenses. Também foi caracterizada, e simbolicamente imortalizada, por jovens palestinos atirando pedras em soldados, tanques e outros veículos do exército israelense. Eles foram recebidos com uma brutal repressão israelense, de forma mais terrível ainda depois que o então ministro da Defesa Yitzhak Rabin ordenou que o exército “Quebrasse os ossos” dos manifestantes.
A Primeira Intifada chocou muitos israelenses por acreditarem que a ocupação era sustentável ou mesmo benigna. Como tal, é creditada como um fator crucial para levar a cabo as primeiras negociações diretas entre israelenses e palestinos.
Quase um ano após o levante, em novembro de 1988, o presidente da OLP, Yasser Arafat, anunciou a decisão da organização de reconhecer Israel, renunciar à luta armada e concordar com uma solução de dois Estados, com o futuro Estado palestino englobando a Faixa de Gaza, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental como sua capital. Três anos depois, a Conferência de Paz de Madri iniciou as negociações diplomáticas entre a OLP e Israel com essa visão em mente.
Em setembro de 1993, Rabin, a essa altura primeiro-ministro de Israel, apertou a mão de Arafat no gramado da Casa Branca enquanto os dois assinavam os Acordos de Oslo. Sob os termos de Oslo, Israel se retiraria de partes da Cisjordânia e de Gaza, abrindo caminho para um limitado autogoverno palestino. Na prática, Oslo alterou as estruturas da ocupação israelense sem realmente acabar com ela, portanto, atraindo críticas de alguns palestinos de que seus termos simplesmente acomodavam sua subjugação.
Mais uma vez, a Faixa de Gaza desempenhou um papel central no processo de Oslo. Em uma política conhecida como “Gaza Primeiro”, a Faixa tornou-se um dos principais focos da autonomia provisória palestina. Em 1994, Arafat – que vivia na Tunísia desde que a OLP foi expulsa do Líbano em 1982 – retornou a Gaza, terra natal de seu pai. A partir daí, ele serviu como o primeiro presidente da recém-criada Autoridade Palestina (AP), uma entidade supostamente interina projetada para durar cinco anos antes das “negociações de status permanente” e da criação de um Estado palestino totalmente independente.
Paradoxo e desilusão
Os anos de Oslo foram um tempo paradoxal para Gaza. Por um lado, o período foi caracterizado pela esperança de que o novo acordo finalmente traria paz e prosperidade. Gaza foi festejada internacionalmente como uma futura “Singapura no Mediterrâneo”, atraindo investimentos e ajuda externa; em 1998, o Aeroporto Internacional Yasser Arafat foi inaugurado em Gaza. Alguns moradores de Gaza se beneficiaram das oportunidades de negócios e emprego resultantes, à medida que novos hotéis e restaurantes surgiram em toda a Faixa.
No entanto, para muitos outros, a década de 1990 trouxe a piora de suas condições econômicas. Após a Primeira Intifada, Israel começou a instituir novas medidas para restringir a liberdade de movimento palestina, incluindo toques de recolher durante todas as noites em toda a Faixa a partir de 1988. O toque de recolher foi suspenso quando a AP chegou em 1994, mas, de resto, Oslo pouco fez para reverter as restrições cada vez mais draconianas de Israel à mobilidade palestina.
O sistema israelense de permissões para [a saida da Faixa], introduzido pela primeira vez em 1991, permaneceu em vigor, o que significava que nenhum palestino que desejasse deixar Gaza poderia fazê-lo sem uma permissão emitida pelo exército (o mesmo não se aplicava aos colonos judeus em Gaza, que continuavam a desfrutar de plena liberdade de movimento). Essas autorizações tornaram-se cada vez mais difíceis de obter a partir de 1998, tornando mais difícil para os palestinos trabalharem dentro de Israel, como muitos faziam antes.
A separação gradual de Gaza da Cisjordânia, através da proibição da livre circulação entre as duas áreas, também limitou seriamente os laços comerciais e económicos intra-palestinos. Antes de 1993, 50% dos bens produzidos em Gaza eram comercializados na Cisjordânia; No final de 1996, esse índice para 2%. O Protocolo de Paris, que lidava com os acordos econômicos sob Oslo, significava que Gaza continuava a ser um mercado cativo para produtos israelenses, colocando as empresas locais em desvantagem adicional.
Para piorar a situação, o sistema de Oslo rapidamente não cumpriu suas promessas políticas. Após o assassinato de Rabin por um extremista israelense em 1995, Benjamin Netanyahu assumiu o cargo de primeiro-ministro israelense pela primeira vez e falou abertamente de seu objetivo de destruir o processo de Oslo. À medida em que o governo israelense continuou a expandir a construção de assentamentos na Cisjordânia e em Gaza, qualquer possibilidade de um Estado palestino viável tornou-se cada vez mais remota.
Enquanto isso, o público israelense tornou-se cada vez mais hostil às negociações à medida que milícias palestinas lançaram ataques indiscriminados contra civis israelenses na década de 1990. Tentativas tardias de avançar nas negociações do status permanente em Camp David em 2000 também foram insuficientes, com o primeiro-ministro Ehud Barak erroneamente nomeado “Oferta Generosa” ficando muito abaixo das exigências mínimas da OLP para um Estado viável.
Ao mesmo tempo, a AP, dominada pelo partido Fatah, de Arafat, tornou-se conhecida por muitos palestinos nos territórios ocupados por suacorrupção,autoritarismoecolaboraçãocom o Estado israelense. A hostilidade cresceu à medida que as elites da AP pareciam ficar mais ricas, enquanto a maioria dos palestinos comuns continuava lutando para viver sob a ocupação. Tanto Gaza quanto a Cisjordânia viram aumentar a hostilidade palestina em relação aos líderes da AP, vendo-os como ineficazes, antidemocráticos e fora de contato.
Havia particular amargura sobre o papel de liderança da AP emReprimirativistas e dissidentes. Os palestinos em Gaza tiveram que se acostumar com a presença das forças de segurança da AP, que muitas vezes trabalhavam em conluio com o Estado israelense. Essa crescente desilusão em Gaza e na Cisjordânia alimentaria a Segunda Intifada,que eclodiu em Jerusalém em setembro de 2000. O ambiente também proporcionou amplo território para o surgimento de uma força política alternativa.
Militância e cerco
Islamismo em geral, eHamas especificamente, têm uma história particular em Gaza, decorrente em parte da proximidade da Faixa com a base da Irmandade Muçulmana no Egito. Criado como um ramo da Irmandade Muçulmana no início da Primeira Intifada, o Hamas rejeitou o impulso da OLP para negociações com Israel e os Acordos de Oslo que se seguiram. Em vez disso, seguiu uma estratégia militante contra Israel, com ataques indiscriminados que mataram civis israelenses, bem como soldados.
Posicionando-se como uma autêntica alternativa ao colaborador elitista AP, o Hamas destacou as credenciais populistas e enraizadas de seus líderes, muitos dos quais viviam em campos de refugiados nos territórios ocupados. O movimento ganhou particularmente destaque, e notoriedade, por seu uso de atentados suicidas na década de 1990 e durante a Segunda Intifada, que envolveu consideravelmente mais violência do que a primeira.
Em 2005, um ano após a morte de Arafat, o Hamas reivindicou a vitória quando o governo de Ariel Sharon unilateralmente desmantelado os 21 assentamentos de Israel na Faixa removeram 9.000 colonos israelenses do território – ao mesmo tempo em que redirecionaram os recursos do Estado para expandir ainda mais o projeto de assentamento na Cisjordânia.
Embora a AP tenha tentado citar a retirada de Gaza como evidência do progresso de Oslo, a natureza unilateral tornou esse argumento pouco convince
nte. Além disso, embora a medida tenha sido frequentemente descrita como um “desengajamento”, na realidade Israel manteve o controle total das fronteiras aéreas, terrestres e marítimas da Faixa. Como resultado, a maioria dos juristasafirmarque Gaza permaneceu sob ocupação israelense até hoje.
Pouco depois, o Hamas anunciou sua decisão surpresa de participar das eleições parlamentares palestinas, após uma década boicotando-as como parte de sua postura anti-Oslo. Executando em umplataformade combate à corrupção contra o Fatah, o partido Mudança e Reforma do Hamas obteve 44% dos votos nas eleições legislativas de 2006 – uma pluralidade e não uma maioria, como muitas vezes é implícito. (É importante notar que o Hamas não venceu a eleição exclusivamente em Gaza; as eleições foram realizadas em toda a Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Mahmoud Abbas, sucessor de Arafat no partido Fatah, foi eleito separadamente para um mandato de quatro anos como presidente da AP em 2005.)
O governo liderado pelo Hamas, no entanto, foi imediatamente recebido com sanções por Israel e governos ocidentais, liderados pelo governo Bush. Após semanas de confrontos com o Fatah, que tentou recuperar o poder com o apoio dos EUA, o Hamas assumiu o controle da Faixa de Gaza à força. Em resposta, Israel impôs umbloqueioem toda a Faixa, sufocando a economia com um movimento que o secretário-geral da ONU consideroupunição coletiva. O Egito apoiou amplamente o bloqueio, deixando mais de 2 milhões de palestinos presos em um pequeno e superlotado trecho de terra.
Desde 2007, a história de Gaza tem sido caracterizada pela violência contínua. Os frequentes ataques aéreos israelenses foram amplificados por campanhas de bombardeios particularmente intensas em 2008-9, 2012, 2014 e 2021. Houve mais violência ao longo da “fronteira” Gaza-Israel em2018-19, quando franco-atiradores israelenses abriram fogo contra os milhares de palestinos que marcharam até a cerca que cercava a Faixa durante o semanárioGrande Marcha do Retorno, exigindo o fim do bloqueio e a implementação do direito de retorno dos refugiados.
O Hamas e outras milícias baseadas em Gaza continuaram a lançar ataques indiscriminados com foguetes contra civis israelenses, em violação ao direito internacional, Israel justificou suas guerras brutais como medidas de defesa necessárias. Mas as campanhas militares têm empregado força desproporcional consistentemente e foram condenadas por observadores internacionais como crimes de guerra – particularmente durante a guerra de 2014, que está sendo investigada pelo Tribunal Penal Internacional.
Agora, com a contagem de mortos ultrapassando 21.000 desde 7 de outubro, a atual ofensiva militar de Israel em Gaza já matou mais palestinos e destruiu mais infraestrutura da Faixa do que o total combinado de todos os ataques anteriores desde 2007. E, infelizmente, o número de mortes deve continuar subindo significativamente. Com grandes partes da Faixa tornadas inabitáveis e ameaças de outra expulsão em massa se aproximando, a importância descomunal de Gaza na política palestina e israelense continua – e seu povo é quem paga o preço.
Anne Irfan é palestrante de Raça, Gênero e Estudos Pós-coloniais Interdisciplinares na University College London. É também autora de Refuge and Resistance: Palestinians and the International Refugee System (Columbia University Press). Atualmente, ela está escrevendo uma história sobre a Faixa de Gaza.
Original em Why is Gaza so central to the Palestinian struggle?
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