A dura realidade de um Estado estruturalmente colonial, racista e predatório demonstrou o quanto foi precipitada a comemoração do Ministério dos Povos Indígenas em relação à suposta vitória que representou o veto parcial de Lula, e o quanto foi ineficaz a estratégia de mobilização limitada às redes sociais, aos territórios e ao apelo à solidariedade internacional.
É fundamental relembrarmos os sucessivos revezes que temos amargado desde que nosso parente Raoni subiu a rampa com Lula para assinar a inédita criação de um Ministério dos Povos Indígenas. De lá para cá, assistimos: o ministério ter suas atribuições esvaziadas; padecer com a falta de orçamento para tornar boas intenções realidade; e vimos, o próprio presidente Lula, não apenas respaldar os planos da indústria petroleira de avançar sobre a Amazônia, como ignorar os apelos do movimento indígena ao não vetar, na íntegra, o projeto de lei do Marco Temporal, com a desculpa de que um veto parcial teria mais chances de ser mantido pelo congresso. Bem, se esse era o plano, o placar da votação deixou evidente que nunca teríamos qualquer chance de vitória confiando apenas na articulação política do governo e no bom senso dos congressistas.
o veto parcial de Lula já sinalizava o acordo com trechos do projeto de lei tão perigosos e inconstitucionais, quanto a própria tese de Marco Temporal
Mas a situação é ainda pior, o veto parcial de Lula já sinalizava o acordo com trechos do projeto de lei tão perigosos e inconstitucionais, quanto a própria tese de Marco Temporal, como: o trecho que estabelece que o “interesse da política de defesa e a soberania nacional” eventualmente poderão se sobrepor ao texto constitucional, no que tange a demarcação de terras indígenas; e o trecho que autoriza que comunidades indígenas possam arrendar o território onde vivem para a exploração de não-indígenas. Ou seja, os retrocessos já estariam garantidos mesmo com a manutenção do veto parcial.
O STF não é aliado dos Povos Indígenas!
Agora, todas as apostas do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) parecem estar sendo depositadas em uma manobra judicial, uma ação direta de inconstitucionalidade que deverá ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Porém, não temos motivos para confiar no STF.
Mesmo que as pressões internacionais cheguem a ser grandes o suficiente para barrar a tese do Marco Temporal, ministros “progressistas”, como o famoso Xandão, já demonstraram que estar comprometidos agradar nossos inimigos, garantindo ricas indenizações para os invasores de terras indígenas, o que também pode paralisar as demarcações em curso pela falta de recursos para custeá-las. O STF nunca foi nosso aliado. Nossa única esperança é nossa própria capacidade de mobilização e articulação com os demais movimentos sociais.
Três passos para garantir nossa vitória
O primeiro passo é assegurar a independência do movimento indígena em relação ao governo. A APIB não pode se confundir com o MPI. Não se trata de encarar os parentes que assumem cargos no governo como inimigos, eles não são. Nem de deixar de reconhecer o quão importante foi termos derrotado o fascismo de Bolsonaro nas urnas. A vitória de Lula foi fundamental e amplamente apoiada pelo movimento indígena. Mas, tampouco, o movimento indígena pode estar submetido às necessidades de alianças políticas e governabilidade de qualquer governo. Nosso papel como movimento e exercer pressão sobre o governo, o congresso e o judiciário para que atendam nossas pautas. Governo é governo, movimento é movimento!
A vitória de Lula foi fundamental e amplamente apoiada pelo movimento indígena. Mas, tampouco, o movimento indígena pode estar submetido às necessidades de alianças políticas e governabilidade de qualquer governo.
O segundo passo é buscarmos superar a divisão dentro do próprio movimento indígena entre a luta nos territórios e a luta indígena no contexto urbano. Essa divisão é o que tem feito a APIB e o MPI ignorarem o crescente movimento de retomada do pertencimento indígena no contexto urbano, que tem mobilizado milhares de parentes por todo o país, além do fato de que, segundo mais recente censo do IBGE, quase dois terços da população indígena no Brasil vive fora dos territórios demarcados ou em processo de demarcação. O movimento indígena não pode mais se limitar a representar os parentes que vivem nos territórios, precisamos dialogar sobre outras possibilidades de territorialidade para o pertencimento indígena. Não podemos aceitar que nos sejam impostos limites sobre onde nos é permitido ser indígenas. E reconhecer que indígena é indígena em qualquer lugar, nossos corpos-territórios se fazem presentes nos mais diferentes contextos.
O terceiro e último passo é demonstrarmos disposição para ir além do mero chamado aos não indígenas para que se juntem a nossa luta. Precisamos de iniciativas efetivas para construir mobilizações conjuntas, ombro-a-ombro, com sindicatos, partidos políticos, movimento negro, ambientalistas, defensores dos direitos humanos, outros povos tradicionais e quem mais estiver disposto a estar conosco nas ruas e no cotidiano, contra o Marco Temporal e tudo que ele significa para as pautas ambientais e humanitárias, que nunca foram tão urgentes. O que está em jogo é muito mais do que o futuro dos povos indígenas, é a possibilidade de um futuro para toda a humanidade.
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