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MUNDO

As cinco crises estruturais do novo período histórico

O presente artigo é uma versão editada do documento internacional pautado no Congresso da Resistência-PSOL, que ocorreu no início de dezembro.

Gabriel Casoni e Genilda Souza
Heiko de Getty Images

A Resistência considerou necessário iniciar uma elaboração sobre os aspectos principais que caracterizam o atual período histórico do capitalismo e da luta de classes, na medida em que as realidades nacionais estão determinadas, em boa medida, por poderosos fatores internacionais em movimento.

Este artigo também visa estabelecer um diálogo com outras organizações, quadros militantes e intelectuais marxistas revolucionários sobre a análise e a armação política perante a atual etapa histórica em desenvolvimento. Afinal, consideramos que a elaboração inicial que apresentamos certamente contém lacunas, erros e parcialidades que podem e devem ser melhorados e corrigidos por meio do debate ampliado. 

Sobre o novo período histórico em desenvolvimento 

O mundo está passando por enormes transformações. Seria incabível predizer o ponto de chegada desse complexo processo que articula diversas dimensões estruturais em movimento. Mas é possível identificar os principais fatores que compõem o que podemos denominar como um novo período [etapa] histórico em desenvolvimento, que atravessa e vai além das diversas conjunturas e situações políticas internacionais.

Listaremos a seguir, de forma sucinta, cinco crises estruturais entrelaçadas que caracterizam o quadro global em transformação. A compreensão desse contexto internacional mais de fundo é chave para uma correta leitura da realidade e para formulação de uma política marxista revolucionária e internacionalista adequada. 

Importa sublinhar o fato de que esse novo período histórico ainda segue balizado pela derrota histórica da classe trabalhadora mundial ocorrida com a restauração do capitalismo em 1/3 do planeta entre os anos 80 e 90 do século passado. 

Importa sublinhar o fato de que esse novo período histórico ainda segue balizado pela derrota histórica da classe trabalhadora mundial ocorrida com a restauração do capitalismo em 1/3 do planeta entre os anos 80 e 90 do século passado. 

Desde o Vietnã, em 1975, não houve mais nenhuma revolução social que tenha expropriado a burguesia. Com isso, houve gigantesco retrocesso no nível de consciência das massas trabalhadoras e da vanguarda. Para a ampla maioria do proletariado, o socialismo passou a estar associado a idéia de fracasso econômico e autoritarismo político. A tomada revolucionária do poder pela classe trabalhadora passou a ser considerada como um objetivo utópico. 

Isso não significa, de modo algum, que a estratégia revolucionária tenha se tornado ultrapassada. Ao contrário, a superação do capitalismo profundamente decadente, por meio da revolução socialista internacional, nunca foi tão necessária para a humanidade como é agora. Porém, admitir, com realismo, as enormes dificuldades e perigos presentes na luta de classes no atual período histórico reacionário é fundamental para a atuação política revolucionária consequente. 

As cinco crises estruturais

Primeira: a profunda crise do capitalismo pós-2008

Com a restauração do capitalismo no Leste Europeu e na China e o apogeu do neoliberalismo nos anos noventa, o capitalismo ganhou fôlego, com a aceleração, em termos globais, do crescimento econômico, do comércio internacional e da acumulação, lucratividade e fluxos de capital. 

Contudo, a partir do estouro do sistema financeiro em 2008, observa-se uma dinâmica de relativo declínio econômico, com a redução do ritmo de crescimento econômico, do comércio global e da produtividade do trabalho; decrescimento da taxa média de lucro no setor produtivo; e sobreacumulação de capital, se desdobrando em hipertrofia do capital fictício e recorrentes crises financeiras; entre outros fatores. 

Outra face desse processo de crise do capitalismo foi a ampliação das desigualdades sociais, da retirada de direitos e precarização da classe trabalhadora, do empobrecimento relativo de amplos setores populacionais, da explosão de crises humanitárias, como no caso do aumento exponencial de refugiados pelo mundo, e de ameaças globais à saúde, tal como aconteceu com a pandemia da covid-19. Importa destacar também a intensificação do racismo, da xenofobia, do machismo e da LGBTfobia, tanto no centro, como na periferia do sistema. 

Para atravessar a crise e seguir acumulando em escala cada vez mais ampliada, o capital precisa ampliar as taxas de exploração sobre o trabalho, o que implica intensificar a produtividade através da incorporação de novas tecnologias que não apenas agilizam o processo produtivo, mas também ampliam as jornadas e o controle sobre o tempo de trabalho (termos como “indústria 4.0” e “capitalismo de plataforma” tentam dar conta disso). Para que os novos patamares de exploração sejam implantados, é preciso quebrar as barreiras legais, conquistadas pelas lutas coletivas da classe trabalhadora, destruindo direitos trabalhistas. Informalidade, precariedade e fragmentação, em larga escala, são condições objetivas de conformação da classe trabalhadora atual.

Em paralelo a essa maior precarização das relações de trabalho, é necessário ao capital avançar em novas formas de expropriação – de recursos naturais ainda comunitários ou sob controle estatal, de comunidades tradicionais, de fundos públicos destinados a políticas sociais – que ampliem o domínio capitalista sobre territórios e esferas da vida social em que ele ainda é restrito. 

A face colonial/imperialista da acumulação capitalista sempre levou a que a dinâmica expropriatória fosse experimentada de forma desigual pelo mundo, com impacto maior sobre os países periféricos e dependentes, particularmente no Sul Global e, consequentemente, sobre as populações racializadas, conforme o padrão imposto pela ideologia racial propagada pela burguesia das economias colonizadoras/imperialistas. 

O que tem impactos também sobre a intensificação do racismo no interior das economias capitalistas centrais, contra populações migrantes e locais racializadas. O racismo é instrumento fundamental do capital para impor padrões mais agressivos de exploração, espoliação e dominação, quer seja no países centrais, quer seja nos países periféricos.

O racismo é instrumento fundamental do capital para impor padrões mais agressivos de exploração, espoliação e dominação, quer seja no países centrais, quer seja nos países periféricos.

A deterioração das condições de vida da classe trabalhadora e o avanço sobre o fundo público, destruindo as políticas sociais – de saúde, educação, previdência e assistência, em especial – ampliam, por seu turno, outra crise: a da reprodução social. Se todas as sociedades humanas sempre precisaram organizar coletivamente a reprodução da vida, no capitalismo dá-se uma separação entre a esfera da produção de mercadorias e a esfera da reprodução da vida – o que inclui a reprodução da mercadoria força de trabalho, aquela que é essencial à produção do valor – confinada ao espaço doméstico (e, a partir de conquistas das lutas sociais, a serviços públicos fornecidos pelo Estado). 

A associação entre a reprodução biológica e os trabalhos de “cuidado” a um “papel de gênero” atribuído às mulheres esclarece a forma própria assumida pelas opressões de gênero no capitalismo. A precarização das relações de trabalho e o desmanche dos serviços públicos sobrecarregam as famílias e comunidades trabalhadoras – e particularmente as mulheres em seu interior – com as preocupações e as dificuldades de um sobre-trabalho de reprodução social. 

Numa palavra, a crise econômica se desdobrou em crise social, gerando uma dinâmica de maiores e mais profundos ataques do capital à classe trabalhadora, atingindo com mais violência os povos e setores sociais oprimidos. A atual decadência econômico-social do capitalismo está na base das demais crises estruturais que abordaremos a seguir. 

Segunda: a emergência da crise climática

O caráter irracional e predatório do capitalismo se manifesta por completo no processo acelerado de destruição da natureza, que é a fonte elementar de sobrevivência da humanidade. Esse processo cumulativo e secular deu um salto de qualidade nos últimos anos, quando a mudança climática se converteu num fato inescapável da realidade presente, não sendo mais uma mera projeção para algum momento do futuro. 

Isto é, já estamos vivenciando os efeitos trágicos das alterações ambientais com a ocorrência, de forma cada vez mais frequente, de secas agudas e prolongadas, de terríveis inundações, furacões, ciclones e deslizamentos de terra, assim como da desertificação de vastas extensões territoriais, do aumento da temperatura média no planeta, com ondas de calor extremo, do nível e acidificação dos oceanos, da diminuição da disponibilidade de água doce potável, entre outras consequências nefastas. 

Como não poderia ser diferente no capitalismo, os que mais sofrem com tudo isso são as populações trabalhadoras mais pobres e racializadas, os países periféricos e as minorias étnicas e/ou nacionais. É inexorável a intensificação desses eventos ambientais destrutivos nos próximos anos, tendo relevantes e inevitáveis consequências econômicas, sociais e políticas sobre o conjunto dos países.

A “transição verde” iniciada pelas potências dominantes, ainda que venha a ter algum efeito atenuante, é absolutamente insuficiente para conter o ritmo de agravamento das mudanças climáticas. O imperialismo é incapaz de aplicar medidas eficazes — na velocidade, escala e com os meios necessários — pelo simples motivo de que o enfrentamento consequente ao colapso ambiental em curso exigiria o fim do modo de produção capitalista e da dominação imperialista. Por exemplo, a expropriação das grandes empresas de combustíveis fósseis para iniciar uma transição energética acelerada e planificada é uma necessidade da humanidade. 

a expropriação das grandes empresas de combustíveis fósseis para iniciar uma transição energética acelerada e planificada é uma necessidade da humanidade

De toda forma, as políticas “verdes” das grandes potências, ainda que parciais e insuficientes, produzem intensa busca por novas matérias primas e desenvolvimento tecnológico, levando a novos ciclos de expropriação de povos originários e comunidades tradicionais para a exploração predatória de recursos naturais, como no caso do lítio na América do Sul. 

Sob a lógica do capital, a “agenda verde” está reconfigurando importantes aspectos das disputas geopolíticas, tecnológicas e comerciais em todo globo, como se pode ver no setor automobilístico, com a corrida pelo desenvolvimento e produção de carros elétricos. A dominação dos países centrais (ricos e industrializados) sobre o chamado Sul Global (nações dependentes e exportadoras de matérias primas) é afirmada também na pauta ambiental, quando o imperialismo, em proveito próprio, busca impor aos países periféricos condições injustas e desiguais nas trocas comerciais e nas responsabilidades pela proteção ambiental e transição energética. 

Por tudo que foi indicado acima, as respostas políticas e programáticas para a assim chamada “questão ambiental” adquirem importância central para a luta socialista e revolucionária no século XXI. 

Terceira: a crise da ordem imperialista e o perigo da guerra mundial

Após o colapso da União Soviética, o mundo viveu o momento da dominação “unipolar” pelo bloco imperialista liderado pelo Estados Unidos, em associação com o Reino Unido, a União Européia e o Japão. Porém, o rápido e colossal crescimento da economia chinesa desde os anos noventa, alavancado pelos investimentos produtivos estrangeiros e combinado com o acelerado desenvolvimento tecnológico e militar do país e a formação de grandes e competitivas empresas nacionais estatais e privadas, transformaram a China numa potência ascendente em busca de um lugar na ordem imperialista global. 

O declínio relativo do bloco hegemônico (EUA e seus principais aliados — Europa Ocidental e Japão), de um lado, e, de outro, o contundente avanço da China e a recuperação parcial da Rússia, lançaram as bases dos conflitos geopolíticos em desenvolvimento no mundo atualmente. 

Os EUA estão determinados a deter o avanço da China enquanto potência mundial. Pequim, por sua vez, mantém-se firme no propósito de alçar uma posição imperialista correspondente ao seu peso econômico e militar. Putin, por seu turno, almeja recuperar parte do poderio imperial grão-russo perdido desde a dissolução da URSS. A Europa Ocidental e o Japão, ainda que com algum grau de autonomia, se alinham de modo subalterno aos norte-americanos a fim de preservar posições ameaçadas. O mesmo fazem Austrália e Coréia do Sul. A Índia, que vive acelerado processo de crescimento econômico, adquire maior relevância nas disputas geopolíticas em curso. China e Rússia respondem a isso costurando importante aliança ao Leste. 

Esse conflito internacional aberto, de enorme envergadura, revela a grave crise da ordem imperialista (sistema internacional de Estados). A guerra inter-imperialista na Ucrânia — caracterizada tanto pelos interesses colonialistas da Rússia na região, quanto pelos interesses expansionistas dos EUA-OTAN no Leste Europeu — é ao mesmo tempo expressão e motor dos choques em curso. A acirrada disputa entre os EUA (com seus aliados) e a China (com seus aliados) tende a se intensificar em todos terrenos — econômico, tecnológico, militar, diplomático, cultural. É o que se denomina, em termos jornalísticos, como o início da Guerra Fria 2.0. 

Vale mencionar que há uma dinâmica de “desglobalização” relativa, no sentido de haver propensão à diminuição do ritmo de crescimento (ou até mesmo de recuo) dos fluxos comerciais e de capital pelo mundo. Isto é, existe a tendência de existir menor integração econômica global, com a propagação de medidas protecionistas e a formação de blocos econômicos e diplomáticos próprios, obedecendo à lógica da disputa geopolítica. Por consequência, há acirramento da disputa entre as potências pela influência e domínio das regiões periféricas do planeta. 

A escalada nos conflitos inter-imperialistas só proporcionará mais sofrimentos e tragédias às massas exploradas e oprimidas, que são chamadas a assumir a defesa de um dos bandos imperialistas beligerantes, como se vê na Guerra na Ucrânia. A qual, por sua vez, revela a tendência de expansão dos conflitos militares pelo globo e o perigo real da eclosão de uma nova guerra mundial no atual período histórico — o que seria uma catástrofe para toda a humanidade. 

Como demonstração dessa dinâmica, vale observar com atenção a acelerada corrida armamentista no planeta. A ofensiva genocida de Israel sobre a Faixa de Gaza, que tem consequências imprevisíveis, e que conta com apoio direto dos EUA e da extrema direita internacional, é outra expressão da tendencia à ampliação dos conflitos armados e guerras de maior alcance.

A luta contra o imperialismo recobra a máxima importância aos revolucionários.

A luta contra o imperialismo recobra a máxima importância aos revolucionários. E essa batalha se traduz nesse momento, em primeiro lugar, na agitação e propaganda contra o genocídio de Israel em Gaza e contra a Guerra na Ucrânia.

A luta contra o imperialismo recobra a máxima importância aos revolucionários. E essa batalha se traduz nesse momento, em primeiro lugar, na agitação e propaganda contra o genocídio de Israel em Gaza e contra a Guerra na Ucrânia.

Quarta: a ascensão do neofascismo e a crise da democracia burguesa 

A democracia burguesa passa por um processo de crise em todo mundo. Em maior ou menor medida, tanto no centro como na periferia. A crise econômica estrutural do capitalismo, a ampliação das desigualdades sociais e o declínio relativo do bloco imperialista hegemônico erodem aos poucos os pilares de sustentação e legitimidade do regime democrático-liberal. Essa crise se traduz na perda de confiança de amplos de setores das diferentes classes sociais de que o regime democrático-liberal e os partidos tradicionais possam revolver os problemas econômicos e sociais colocados. 

Acontece que, face à crise da democracia e dos partidos tradicionais, se levanta, para setores de massas, como alternativa de governo e de regime a extrema direita neofascista — e não alternativas radicais à esquerda. Por certo, que a força do neofascismo e o grau de crise da democracia liberal são muito desiguais de país para país. Porém, é indubitável que se trata de um processo internacional característico do atual período histórico, que não se resume a uma mera conjuntura — vai muito além. 

Assim como foi com o fascismo histórico, na década de 20 e 30 do século XX, o neofascismo cresce em meio a crise do capitalismo, do imperialismo e da democracia burguesa em nível global.

Assim como foi com o fascismo histórico, na década de 20 e 30 do século XX, o neofascismo cresce em meio a crise do capitalismo, do imperialismo e da democracia burguesa em nível global. Se alimenta da crise social produzida pelo neoliberalismo e dos sucessivos fracassos de governos liderados pela direita liberal e a esquerda reformista. Seu aparecimento e incidência no cenário internacional não decorrem de uma única causa, mas sim de diversas razões combinadas, como vimos. 

Com características particulares em cada país, a extrema direita atua em todo lugar para direcionar o ressentimento social e o desencanto político existentes em amplas parcelas das massas. Não contra a burguesia e o sistema capitalista decadente, mas sim contra os pobres e os direitos sociais. Contra os trabalhadores e os direitos trabalhistas. Contra as mulheres e as pautas feministas. Contra a população negra e as bandeiras antirracistas. Contra as LGBTQIs e suas demandas por direitos. Contra os povos originários e a luta por suas terras. 

O neofascismo coloca a pequena burguesia e a classe média contra a classe trabalhadora e os mais pobres. E divide a classe trabalhadora com a misoginia, o racismo, a LGBTfobia, a xenofobia, o conservadorismo religioso e o negacionismo ambiental. Para alavancar a lucratividade do capital e ganhar aderência de setores da grande burguesia, a extrema direita promete apoio a medidas selvagens de exploração e espoliação, sempre asseguradas pela mais dura repressão do aparelho policial e militar. 

O neofascismo mira também as liberdades democráticas. Afinal, o seu projeto estratégico de poder passa pelo estabelecimento de regimes autoritários e violentos, o que pressupõe o estrangulamento do regime liberal-democrático, ainda que de modo gradual e, por vezes, operando por dentro das próprias instituições do regime democrático liberal. 

Importa notar que frações do imperialismo, em particular nos EUA, se deslocaram à extrema direita, como demonstra-se cabalmente na força adquirida por Donald Trump, que assumiu o controle do poderoso partido Republicano. Essa orientação de setores imperialistas se explica tanto pela utilidade dos governos de extrema direita para impor padrões mais agressivos de exploração e opressão da força de trabalho, como para responder externamente às crescentes disputas geopolíticas. 

O neofascismo, assim como o fascismo clássico, se distingue entre outras coisas por ser um movimento mobilizador com influência de massas; ter lideranças carismáticas e messiânicas; possuir uma identidade político-ideológica abertamente militarista, nacionalista, anticomunista, misógina, racista e heteronormativa. Conquistando aderência de setores da classe trabalhadora, a extrema direita tem em camadas da pequena, média e grande burguesia a sua base social fundamental. 

Ao contrário do fascismo clássico, o fascismo dos nossos tempos ainda não logrou formar (ou apenas de forma incipiente) forças paramilitares de esmagamento físico do movimento operário e popular (como foram os “camisas negras” de Mussolini e a SA do nazismo alemão), nem instituir regimes propriamente fascistas, ainda que em alguns países, chegando no governo, tenha estabelecido, em graus e com características diferentes, regimes autoritários. 

A extrema direita é o inimigo político principal a ser enfrentado no atual momento histórico pela classe trabalhadora e os oprimidos de todo mundo. O programa do neofascismo pode ser resumido em poucas palavras: barbárie social e ambiental e ditadura política. O seu triunfo estratégico implicaria o aniquilamento da esquerda, dos movimentos sociais e dos sindicatos. Impor uma derrota substancial ao neofascismo no terreno da luta classes é um desafio estratégico nessa nova etapa histórica. Embora a luta direta de massas seja o eixo estratégico para vencer o neofascismo, não se deve subestimar a importância de impor derrotas eleitorais à extrema direita. Pois, quando ela chega ao governo, adquire melhores condições de avançar em seu projeto contrarrevolucionário. As táticas unitárias para lutar contra esse perigoso inimigo, em particular a Frente Única Antifascista, ganham grande relevância e atualidade.

Quinta: a crise subjetiva do proletariado e da alternativa revolucionária

Já mencionamos na introdução que a realidade da luta de classes atual ainda está marcada pela derrota histórica representada pela restauração capitalista nos países em que revoluções haviam expropriado a burguesia e o imperialismo. A crise do projeto revolucionário se manifesta, de forma emblemática, no fato de que estamos chegando a quase 50 anos sem nenhuma revolução socialista vitoriosa no mundo. 

A decadência do capitalismo contemporâneo não vem sendo acompanhada, até aqui, pelo fortalecimento de alternativas anticapitalistas. A tomada do poder e a construção do socialismo seguem distantes do horizonte das massas trabalhadoras e oprimidas. O atraso no nível de consciência do proletariado internacional, tendo em conta a gravidade e a emergência da necessidade objetiva de superação do capitalismo, é dramático. 

A tomada do poder e a construção do socialismo seguem distantes do horizonte das massas trabalhadoras e oprimidas. O atraso no nível de consciência do proletariado internacional, tendo em conta a gravidade e a emergência da necessidade objetiva de superação do capitalismo, é dramático. 

A rigor, até mesmo organizações da classe trabalhadora compatíveis com a democracia burguesa, como os sindicatos e outras organizações tradicionais do movimento operário e popular, sofreram importantes retrocessos e perderam força nas últimas décadas de neoliberalismo prevalecente. Podemos, assim, caracterizar que há uma crise política da classe trabalhadora em sentido amplo, e não somente no que refere ao diminuto peso das organizações revolucionárias na realidade contemporânea. Trata-se de uma crise fundamentalmente de dimensão subjetiva por assim dizer; no que Marx define como a classe para si. Isto é, no que se refere ao seu grau de consciência, organização e confiança para a luta coletiva. 

A classe trabalhadora em si, do ponto de vista objetivo, no que diz respeito ao seu lugar na produção e reprodução do sistema capitalista, nunca foi tão grande e decisiva em termos proporcionais e absolutos. Mas as consequências das derrotas políticas e sociais sofridas, os impactos da reestruturação produtiva, de décadas de políticas neoliberais agressivas, que produziram fragmentação e esgarçamento do tecido social, entre outros elementos, pesaram — e ainda pesam — sobre os ombros do proletariado. A crise subjetiva da classe trabalhadora atravessa e condiciona as quatro crises estruturais mencionadas anteriormente. 

Após a crise capitalista de 2008-09, houve um processo de ascensão de lutas dos explorados e oprimidos. A Primavera Árabe e as lutas massivas na Europa contra a austeridade liberal foram o ponto auge. Porém, é preciso assinalar que esse avanço das lutas foi derrotado no mundo Árabe (a “primavera” se converteu num terrível “inverno” —  basta ver a terrível situação atual no Egito, Síria e Líbia, por exemplo), na Europa e em toda parte. 

A derrota do ascenso ocorrido entre 2009-2014 abriu caminho para a extrema direita a partir de 2015, sendo um dos fatores, embora não o único, que explica a sua emergência no plano internacional. Se no período de ascenso se destacaram o surgimento de alternativas políticas à esquerda, ainda que reformistas, como o Podemos e o Syriza; após o encerramento desse processo, foram as alternativas de extrema direita que ganharam impulso, com maior radicalidade e peso, em várias partes do mundo; enquanto os novos partidos à esquerda retrocederam. Se antes, os partidos tradicionais da direita liberal e da social democracia eram questionados e perdiam espaço para as novas formações à esquerda, no período mais recente, passaram a ser ameaçados diretamente pela extrema direita. 

A esquerda reformista tradicional, integrada ao regime democrático-burguês e moderada politicamente, que havia sofrido importante desgaste por encabeçar governos limitados de conciliação de classes ou mesmo por ter realizados ataques de cunho neoliberal no período anterior, se recompôs de modo significativo no plano político-eleitoral, em diversos países, por se colocar como a principal opção política face ao avanço da extrema direita. A recomposição do PT no Brasil, do PSOE na Espanha, do PS em Portugal, do Labour na Inglaterra, entre outros exemplos, comprova a afirmação acima. 

Do ponto de vista positivo à recomposição da capacidade de luta e organização do proletariado, se destacam o avanço, desde a última década, do movimento feminista, do movimento negro, do movimento LGBTQI, do movimento indígena e do movimento ambientalista. O levante antirracista nos Estados Unidos, que foi decisivo para a derrota de Trump em 2020, e a explosão social no Chile em 2019, tendo na vanguarda o movimento feminista, atestam a conclusão acima. 

Os explorados e oprimidos não deixaram de lutar, apesar de todos retrocessos e das pesadas derrotas herdadas. Explosões sociais, greves importantes, grandes mobilizações, levantes radicalizados, ascensos parciais ou generalizados etc. não deixaram nem deixarão de ocorrer. A histórica greve dos metalúrgicos das montadoras de automóveis nos EUA nesse ano e o ascenso dos sindicatos nesse país demonstram que mesmo o movimento operário tradicional pode retomar força, ainda que seja aos poucos e do modo desigual. Todas essas lutas e rebeliões sociais têm enorme importância para o presente e o futuro. Porém, até aqui, ou foram derrotadas, ou não tiveram força suficiente, mesmo quando obtiveram vitórias parciais, para modificar o signo geral da correlação política e social de força ainda bastante desfavorável. 

os governos de colaboração de classes ou ditos “progressistas”, nos quais partidos e lideranças da esquerda reformista fazem a gestão do Estado em alianças com partidos e lideranças burguesas, não são capazes de resolver as crises estruturais do capitalismo e tampouco de derrotar estrategicamente o neofascismo emergente

Vale sublinhar o fato de que os governos de colaboração de classes ou ditos “progressistas”, nos quais partidos e lideranças da esquerda reformista fazem a gestão do Estado em alianças com partidos e lideranças burguesas, não são capazes de resolver as crises estruturais do capitalismo e tampouco de derrotar estrategicamente o neofascismo emergente. Sempre que esses governos de conciliação fracassam, ao frustrar as expectativas das massas, abre-se caminho ao avanço da extrema direita ou para o retorno da direita tradicional. 

Essa consideração de ordem estratégica não deve levar, de modo algum, a uma resposta sectária e esquerdista dos revolucionários diante desses governos. É preciso reconhecer que a vitória eleitoral da esquerda moderada contra a extrema direita abre melhores condições para a luta da classe trabalhadora. 

Uma vez que se estabeleçam governos de conciliação de classes, a esquerda revolucionária, mantendo sua independência de classe (ou seja, não entrando nesses governos nem aderindo politicamente a ele de fora) deve desenvolver uma tática paciente (de exigências, diferenciação e críticas) que acompanhe a evolução da experiência das massas com esses governos e da correlação de forças de um modo geral. Não se confundir, em hipótese nenhuma, com a oposição de direita e de extrema direita a esses governos, assim como defendê-los diante de ameaças golpistas e ataques reacionários (como é o caso do Brasil), é crucial para que a esquerda revolucionária se credencie como instrumento útil à classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, é fundamental desenvolver a propaganda, explicando pacientemente ao melhor da vanguarda os limites e o caráter desses governos de conciliação e a necessidade de construção de uma alternativa anticapitalista e revolucionária. 

Importa notar que ainda prevalece a dinâmica de marginalidade, fragmentação e dispersão da esquerda radical e revolucionária — ou melhor, essa dinâmica se aprofundou nos últimos anos. E ela não se restringe à tradição trotskista e outras similares. Basta observar também o que ocorre com o chamado “movimento comunista” mundial, da tradição estalinista, que vive um processo crescente de rupturas em diversos países. 

Por todos os elementos elencados nesse quinto ponto, do ponto de vista subjetivo, a tarefa estratégica no presente período histórico não se restringe somente à necessidade de reconstruir o sujeito político, uma alternativa revolucionária à altura dos desvios históricos — ainda que essa siga sendo uma tarefa fundamental. É preciso também atuar para a recomposição subjetiva do sujeito social, da classe trabalhadora para si, em seus aspectos mais básicos: a consciência de classe, os instrumentos de organização de base nos locais de trabalho e nos territórios, a confiança para a luta coletiva. Se apoiar nos elementos mais dinâmicos do proletariado — mulheres, negros, LGBTQIs, imigrantes, indígenas, juventude — é chave para avançar nessa tarefa histórica. O desenvolvimento da política da unidade para lutar em todo espaços e níveis, especialmente da Frente Única, adquire redobrado valor programático no atual momento histórico.

Consideração Final

O entrelaçamento das cinco crises estruturais do capitalismo abre um período histórico reacionário de enorme gravidade e perigos para as massas trabalhadoras e oprimidas em todo mundo, especialmente nos países semi-coloniais e dependentes. Os aspectos reacionários advindos da etapa histórica aberta com o fim da URSS se aprofundaram: aumentou o fosso entre a necessidade objetiva da superação do capitalismo e o atraso subjetivo do proletariado e da alternativa revolucionária para cumprir essa tarefa.

Os aspectos reacionários advindos da etapa histórica aberta com o fim da URSS se aprofundaram

Em função das cinco crises combinadas, os choques, crises e conflitos em todos âmbitos tendem a se intensificar mais e mais, tendo desdobramentos imprevisíveis. O capitalismo e o imperialismo decadentes empurram a humanidade ao abismo. O neofascismo ergue a cabeça. O colapso ambiental está em curso. As desigualdades sociais e opressões se agudizam. Mas, apesar das gigantes dificuldades dos explorados e oprimidos na batalha por sua emancipação, há e haverá luta contra a barbárie capitalista e imperialista. E nela mora a esperança revolucionária.