Nunca é bom banalizar os termos, mas podemos dizer que 2024 será um ano decisivo. Os dois últimos anos foram de batalhas para sair de uma onda reacionária, em que a extrema direita estava no poder, havia um grande refluxo das lutas e uma degradação brutal dos direitos sociais e das condições de vida da classe trabalhadora. O produto das últimas vitórias possibilitou a abertura de uma janela de possibilidades, mas ainda não saímos do ciclo reacionário. No ano que vem, teremos que avançar para não retroceder. Como se diz, se muito vale o já feito, mais vale o que será.
A reconstrução dos direitos sociais e democráticos é uma necessidade. O retrocesso dos últimos anos levou a termos que disputar direitos que outras lutas já haviam conquistado. Um exemplo contundente é do próprio ensino superior público, que teve seu orçamento reduzido a um patamar anterior a 2013. Também a impregnação do bolsonarismo nas funções do Estado significou mais um obstáculo. Diante dessa situação, tanto a desbolsonarização do Brasil quanto a luta pela reconstrução dos direitos sociais são tarefas entrelaçadas.
Nesse contexto, teremos duas grandes batalhas. Em primeiro lugar, fortalecer a luta em defesa da educação pública. Em segundo, manter viva a luta para impor derrotas contundentes à extrema direita..
A luta em defesa da educação: democratizar o acesso e defender a permanência
A educação pública sempre foi alvo principal das disputas políticas. Por um lado, a elite do país, sempre buscou transformá-la em um instrumento para preservar as desigualdades sociais. Dessa forma, os projetos que buscam tornar a educação básica mais tecnicista e sucateada ou que restringem o acesso ao ensino superior sempre estiveram presentes, mas se sobressaem ainda mais em momentos de crise sócio-econômica. Quem não se lembra das frases mais marcantes dos últimos governos? “Não pense em crise, trabalhe!” no caso de Michel Temer ou a comparação das universidades públicas como balbúrdia, no caso do governo Bolsonaro.
Nos últimos anos, em especial desde o golpe, a educação foi muito atacada. A política de contingenciamento de gastos fez com que a educação perdesse quase R$ 100 bi em desinvestimento, desde 2014. Como consequência, houve uma grande perda no orçamento do FUNDEB, aumentando a taxa de evasão e precarização das escolas. Com o golpe, a extrema direita lançou uma grande ofensiva ideológica, através de projetos como o Escola Sem Partido e o Novo Ensino Médio, criando um ambiente de ensino cada vez mais conteudista, autoritário, plataformizado e tecnicista. Isso colocou na ordem do dia a luta em defesa do investimento nas escolas, da liberdade de cátedra e do ensino crítico.
Em relação ao ensino superior, a perda orçamentária fez com que muitas universidades federais quase fechassem as portas. Os problemas estruturais, como falta de salas, falta de professores, terceirização e aumento do preço dos RUs, falta de laboratórios e mesmo falta de mantimentos básicos de limpeza se tornaram mais comuns. Os órgãos de fomento à pesquisa foram um dos principais afetados pelos cortes, fazendo com que milhares de estudantes, pós-graduandos e pesquisadores tivessem que abandonar seus projetos. Vivemos, durante o Governo Bolsonaro, um verdadeiro negacionismo que tirava a credibilidade e o dinheiro das universidades. Segundo o Observatório do Conhecimento (1), o orçamento executado da CAPES, em 2022, representa apenas 21,66% do orçamento executado em 2015. No caso da CNPQ, o orçamento de 2023 é 54,2% menor do que em 2015.
No entanto, a luta contra as desigualdades na educação tem sua maior expressão na defesa da permanência estudantil. A falta de reajuste nas bolsas-aluguel agravam a falta de recursos para os estudantes pobres se manterem na universidade. As moradias estudantis, muitas vezes abandonadas pelas reitorias, não tiveram acréscimo de vagas com a expansão das instituições. Muitos campi das universidades públicas não conquistaram um RU próprio com sua expansão. Diante desse cenário, o movimento estudantil deve responder à altura frente à necessidade de uma política de permanência estudantil condizente com as reais demandas.
Não podemos aceitar que as universidades públicas sejam espaços em que entrem muitos estudantes pobres, mas só forme uma pequena elite. Ao contrário, devemos avançar em direção a uma democratização real das universidades. As políticas de permanência estudantil não podem ser sub financiadas, elas devem estar no centro do orçamento das universidades.
Por isso, é necessário que haja um piso nacional da assistência estudantil. A política de piso, nas diversas categorias, significou uma conquista fundamental para a valorização do trabalho. O piso, dessa forma, é um mecanismo para que não se reduza os salários em momentos de crise. Da mesma forma, a permanência estudantil deve ser um direito inegociável dos estudantes e, além disso, deve haver um mecanismo que assegure sua existência e reajuste anual.
Essa situação é agravada pela mudança da composição social e racial das universidades, o que aumenta a demanda de assistência. Em 2004, apenas 5,6% da juventude negra ocupava uma vaga no ensino superior (2), situação ainda pior em relação à juventude indígena. A Lei de Cotas, de 2012, foi um marco no combate ao racismo estrutural e na reparação à violência sistêmica que a juventude racializada sempre sofreu. Recentemente, o percentual de estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas a ingressarem na universidade pública chegou a 52,4% do total (3). Isso nos leva a afirmar que existe uma universidade pública antes das cotas e outra totalmente diferente depois. Pela primeira vez na história, as universidades começam a refletir a cara do povo brasileiro.
Neste semestre, tivemos uma vitória fundamental, conquistada pelas mãos dos estudantes, do setor da educação e do movimento negro, que foi a ampliação e renovação por mais dez anos das cotas raciais. Além disso, a nova lei abrange as cotas na pós-graduação, amplia para estudantes quilombolas, inclui a institucionalização do Programa Bolsa Permanência, além de outros aperfeiçoamentos que nos levam a um caminho mais democrático e de reparação histórica.
Essa foi uma importante vitória. Mas queremos avançar ainda mais. O ano de 2024 pode ser histórico. É preciso de uma Campanha Nacional pelas Cotas Trans. Hoje, apenas 0,02% da população trans está no ensino superior, sendo que 72% não chegam nem a concluir o ensino médio (4). A aprovação das Cotas Trans significa romper o ciclo de violência a que as pessoas trans estão submetidas: a expulsão de casa, violência familiar, marginalização social, entre outras coisas. Caso aprovado, seria uma enorme vitória contra a extrema direita, que elegeu as LGBTQIA+ como seu principal alvo. Não por acaso, no ano de 2023 foram protocolados milhares de projetos de lei contra o uso de pronome neutro nas escolas, contra o uso do banheiro de acordo com o gênero de pessoas trans e contra as políticas públicas de proteção e saúde da população trans.
As Cotas Trans já são uma realidade em diversas universidades: UNEB, UFSCAR, UFABC, UFRRJ, UFSC, entre outras. Recentemente, a greve da UNICAMP foi um exemplo para todo o país: demonstrou que é possível arrancar cotas trans e fazer a universidade a repensar o seu papel no combate às desigualdades sociais. Assim como quando foi aprovado a Lei de Cotas Étnico-Raciais, a Lei de Cotas Trans como política pública para todas as universidades públicas, fará com que essas instituições nunca mais sejam as mesmas.
Um novo PNE é necessário! Nenhuma concessão aos fundamentalistas e aos tubarões do ensino
Em 2024, será votado o novo PNE (Plano Nacional de Educação). Para além de refletir as necessidades atuais da educação, devemos refletir sobre o balanço do PNE aprovado em 2014. Naquele momento, o PNE trazia 20 metas a serem cumpridas até 2024. Entre elas, destacavam-se o investimento de 10% do PIB para a educação de forma gradual até 2023, valorização e planos de carreira para docentes da educação básica, universalização do ensino fundamental com taxa de conclusão na idade recomendada de 95%, elevação da taxa bruta de matrículas no ensino superior a 50% e a taxa líquida a 33%, garantia da gestão democrática no ensino básico e superior, observando a autonomia das instituições, entre outras.
Das 20 metas, apenas 3 tem condições de serem concluídas. Mas não é apenas isso o que preocupa: o PNE aprovado em 2014 retirou importantes discussões, como a educação sexual e de gênero das escolas, que culminou com o veto do Governo Federal sobre a cartilha Escola Sem Homofobia. Fruto da pressão da bancada fundamentalista e da base conservadora no Congresso, um PNE que poderia significar um marco para a mudança estrutural da educação, para que esta fosse de fato um instrumento de emancipação social, se tornou um “frankenstein” que buscava agradar os setores fundamentalistas e os grandes tubarões do ensino.
A meta de 10% do PIB para a educação pública era um anseio dos milhares de estudantes que lutavam pela sua melhoria. No entanto, contraditoriamente, além de colocar um plano gradativo em 10 anos, a meta estabelecia a transferência dos recursos públicos para o setor privado, favorecendo os grandes conglomerados educacionais. Hoje, é visível que a meta não foi alcançada, o PIB investido na educação não ultrapassou os 5,5% (5). Além disso, devido ao efeito de anos de subsídio à educação privada, surgiram os grandes conglomerados que lucram com a financeirização do ensino (Lemann, Kroton, Yduqs, Ser Educacional, SEB, entre outros). Muitos desses conglomerados surgiram de outros setores da economia, como bancos e o agronegócio, e abriram um braço educacional.
Esses mesmos grupos educacionais são os que se aproveitaram da pandemia da COVID-19 para aumentar os lucros com a precarização da educação superior, através da plataformização do ensino, demissão de professores e a expansão do EAD em cursos presenciais. Não nos assusta que a maioria desses grupos tenham vindo de ramos tão distintos, afinal o que une todos eles é a busca pelo lucro.
Nossa luta, no ano que vem, deve ser para que nunca mais se lucre com a educação. Por nenhum centavo a mais para os tubarões de ensino e por mais investimento na educação pública. Por isso defendemos que conste uma meta, no novo PNE, de transferência gradual das vagas do FIES para o Ensino Superior Público, com aumento do financiamento do setor público e expansão das vagas.
Além disso, é importante dizer que o PNE tinha importantes metas progressistas, como a universalização do ensino básico. No entanto, o golpe parlamentar, em 2016, aprofundou o desgaste da educação, que passou por anos de desinvestimento e descredibilização. A aprovação do Teto de Gastos, por exemplo, impossibilitou que o investimento à educação fosse acrescido ano após ano e colocou o investimento sob o temperamento do mercado. Mas não só isso, a extrema direita fundou uma base ideológica forte contra a educação. Não por acaso, surgiram os militantes de direita que “fiscalizavam” e constrangiam os professores que “praticavam doutrina marxista” ou propostas para retirar o nome de Paulo Freire como patrono da educação. O novo PNE deve representar uma derrota à extrema direita.
O novo PNE não pode sucumbir à pressão do centrão e dos setores conservadores. Nos últimos 4 anos, ao menos 60 projetos de lei foram enviados ao Congresso Nacional contra o uso e o ensino da linguagem neutra. Isso sem contar os projetos estaduais e municipais. Até março deste ano, 68 projetos de lei foram apresentados ao Congresso Nacional, ou seja, um PL por dia. Não apenas sobre o uso da linguagem neutra, mas também sobre a utilização de banheiros por pessoas trans, restrições na saúde e no esporte. Não podemos aceitar que, no país que mais mata pessoas LGBTQIA+, esse tipo de retrocesso aconteça. Por isso, o novo PNE deve enfrentar o conservadorismo e incorporar o debate de gênero e sexualidade imediatamente. Essa política é uma forma de combater a violência que mulheres e LGBTQIA+ estão submetidas e atuar contra a opressão de gênero e sexual.
Nós apenas começamos a eleger nossos representantes! Nas eleições, derrotar a extrema direita e avançar num programa de esquerda!
A um ano das eleições municipais, a polarização com a extrema direita volta a crescer. Moralizados pela vitória de Milei na Argentina e pela recuperação de Trump nos Estados Unidos, a base bolsonarista vai disputar as eleições em muitas prefeituras e vereanças com o objetivo de recuperar forças e avançar em um projeto autoritário e anti-popular para as cidades. Esse é o caso de Bruno Engler (PL), em BH, que é apoiado por Nikolas Ferreira, de Braga Neto (PL), no Rio de Janeiro, de Ricardo Nunes (MDB), em São Paulo. Essa não será uma eleição comum, será o terceiro turno das eleições de 2022.
Será, também, um momento de reafirmar o projeto de cidade que queremos. A corrente de privatizações do saneamento básico, do transporte público e do serviço de energia são um exemplo de que as cidades são pensadas para agradar ao mercado e não para melhorar a vida da classe trabalhadora e da população mais pobre. Em São Paulo, a empresa de energia ENEL dobrou seus lucros e demitiu 35% dos funcionários, e para a população sobrou os apagões, os eletrodomésticos queimados e a proposta de uma nova taxa “para conter riscos”. No Rio de Janeiro, a passagem do metrô, recém privatizado, aumentou para R$6,90 sem apresentar nenhuma melhoria.
Nesse contexto, a juventude é uma peça fundamental. Somos forjados nas mais diversas lutas: o Ele Não, o Tsunami da Educação, os atos antifascistas, as greves universitárias e muito mais. Nosso papel é unir essas lutas às campanhas eleitorais para construir projetos de cidades que coloquem a população mais pobre no centro, que combata a crise climática, que gere emprego e renda para a juventude, que tenham serviços públicos de qualidade e espaços de cultura. Compreendemos as eleições de 2024 como mais uma etapa de uma luta de longo prazo contra os retrocessos impostos contra nós nos últimos anos. Por isso, nossa principal tarefa no segundo semestre será fazer grandes campanhas-movimento, colocando um programa de esquerda, para derrotar a extrema direita.
A pré-candidatura de Boulos à prefeitura de São Paulo, nesse sentido, é um grande exemplo. Boulos pontua em primeiro lugar nas pesquisas da maior capital do país. Essa pré-candidatura é um marco para a disputa dos rumos do país e é construída a partir da aliança com os movimentos sociais da cidade. Com isso, podemos construir uma grande campanha de combate à extrema direita, que não abaixe a cabeça para o mercado e que coloque a população mais pobre no centro do orçamento.
Para além das disputas no executivo, será importante a eleição das candidaturas à vereança. O parlamento e as eleições não são o nosso terreno de luta prioritário. No entanto, eleger uma bancada progressista é fundamental para inverter a correlação de forças. Desde 2020, as candidaturas que se expressam nas mais diversas lutas tomaram o país, como as candidaturas negras, trans e coletivas. Essas candidaturas não fazem um debate formal de representatividade, mas denunciam todo o sistema político que privilegia a eleição daqueles que massacram o nosso povo, que governam para a elite e que aprofundam as desigualdades sociais.
Vem aí o 2º Acampamento Nacional do Afronte!
Diante de todo o exposto, é perceptível que os desafios em 2024 não serão pequenos. Por um lado, a luta em defesa do futuro da juventude passa por mudanças estruturais na educação e no país. Por outro, sabemos também que a construção de um mundo novo passa pela superação da extrema direita enquanto uma força que disputa os rumos da sociedade.
Nós somos a geração que cresceu frente ao ascenso da extrema direita e ao desmonte dos direitos mais básicos. Também são os mais jovens os maiores desempregados, os que mais sofrem com a repressão policial, com a falta de direitos sociais e com a falta de perspectivas de futuro. Não à toa, a juventude protagonizou os principais processos de lutas dos últimos anos: somos os mais inconformados com as injustiças, com a miséria e com a desigualdade social.
O Afronte! nasceu há 6 anos com a aposta de retomar a centralidade estratégica da luta contra a extrema direita e refletindo a necessidade de uma nova cultura no movimento estudantil, mais aberta a sínteses e que preze pela unidade na ação. Hoje podemos dizer que não se tratava de uma aposta, mas sim de uma necessidade histórica e de um acerto político. Afinal, a luta em defesa do futuro da juventude depende dessa combinação de fatores.
Em 2024, a juventude terá uma tarefa: organizar as lutas da educação e contra a extrema direita. Esse não será um desafio fácil: precisaremos nos enfrentar com o conservadorismo, com os privilégios do 1% mais rico da população e com a direita. Nunca foi tão urgente organizar as lutas da juventude. Por isso, o Afronte! fará o seu segundo acampamento nacional no primeiro semestre do ano que vem. Esse será um espaço para aprofundar o programa da juventude para dar uma saída à esquerda para o país e para organizar nossas estratégias e formas de luta.
Nossa fundação se deu com o objetivo de impulsionar as lutas da juventude e fortalecer o projeto da esquerda marxista no Brasil. Ao lado do PSOL, da Coalizão Negra por Direitos, da APIB e da Frente Povo Sem Medo, participamos ativamente dos momentos mais decisivos da história recente do nosso país.
Diante do aprofundamento da crise mundial, da catástrofe ambiental e da ascensão da extrema-direita, reafirmamos a urgência de um programa antifascista, anti imperialista e ecossocialista como resposta aos dilemas da juventude no século XXI.
O nosso II Acampamento Nacional acontecerá em 2024 em um novo momento no Brasil, mas que segue ainda muito desafiador diante das eleições nos EUA, que colocam a possibilidade de um retorno de Trump à presidência da principal potência imperialista mundial.
Queremos dialogar com a juventude de todas as regiões nesse espaço, estendendo o convite também a outras organizações aliadas, partidos e movimentos sociais, em busca de sínteses e acúmulos coletivos que preparem os próximos passos da nossa mobilização.
Nosso objetivo é contribuir para o fortalecimento da política e do programa ecológico, internacionalista e antirracista para enfrentar a ambição capitalista e a ofensiva do imperialismo sobre os povos oprimidos e racializados em todo o mundo. Nosso empenho será dedicado à consolidação de uma frente antifascista que unifique as lutas e mobilize as pautas LGBTIA+ para a derrota da extrema-direita e do seu fundamentalismo.
Nossa estratégia é o ecossocialismo. E o nosso ponto de partida é o combate intransigente ao fascismo.
Construa o 2º Acampamento Nacional do Afronte!
Notas
1 https://observatoriodoconhecimento.org.br/wp-content/uploads/2022/11/Or%C3%A7amento-web-2023_V02-1.pdf
2 https://download.inep.gov.br/outras_acoes/estudos_pne/2016/relatorio_pne_2014_a_2016.pdf
4 https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf
5 https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/00_BalancoPNE_Cartelas2022_ok_1.pdf
Comentários