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BRASIL

Nego Bispo não tem fim

Por Brenda Marques, do Rio de Janeiro (RJ)
Alexia Melo
“Quando nos falamos tagarelando
E escrevemos mal ortografado
Quando nós cantamos desafinando
E dançamos descompassado
Quando nós pintamos borrando
E desenhamos enviesado
Não é por que estamos errando
É porque não fomos colonizados”.
– Nego Bispo

O dia 04 de dezembro foi daqueles dias em que mesmo quem sempre tem o que falar, perdeu a voz, pois partiu sem avisos, para a ancestralidade o grande Mestre Nego Bispo. Bispo não gostava de ser chamado de intelectual, pedia para ser tratado como relator de pensamentos e saberes, e de fato foi em sua passagem pela terra um grande transmissor, com sua voz que de forma direta evocava a nossa resistência à colonização ainda tão exaltada dentro dos muros da universidade.

Nascido em Francinópolis-Piauí, vivia no quilombo Saco-curtume em São João do Piauí, de lá possui as raízes que dão fruto aos seus saberes. Não à toa sua vivência se passou na cidade de São João do Piauí,cidade em que eu também fui nascida e criada, e que possui um dos primeiros assentamentos do MST do Brasil,o assentamento marrecas.

Ser do Piauí, é antes de tudo romper com a invisibilidade, lidar com um Estado ainda hoje desvalorizado, que por muitos anos foi extremamente empobrecido, mas que sempre foi palco de muitas lutas. Bispo é um desses lutadores, que foi o primeiro de sua família a ser alfabetizado, como ele mesmo afirma “a escritura não é o saber, a escritura é a comunicação do saber” e esta foi a forma que ele pode escrever o que a sua ancestralidade lhe ensinou na oralidade, se tornando não somente um pensador do Piauí, mas um pensador do Brasil.

Em 2007 lança seu primeiro livro que em 2015 vai ser reeditado, o “Quilombos, modos e significados”, nele Bispo se consagrou o pensador da contracolonização, o conceito proposto por ele para questionar o modelo predatório de desenvolvimento econômico que não é somente capitalista, mas ainda colonial. Para Bispo era preciso romper com essa sociedade autodestrutiva e reedita-la para uma sociedade inspirada nos saberes quilombolas, onde a natureza e os humanos vivem em comunhão, por uma biointeração, que preza pela vivência comunitária e coletiva em que a capacidade de cultivar, coletar e compartilhar são inerentes.

Para ele é justamente nossa cosmofobia, ou seja, a nossa desconexão com a natureza, o medo dos seus saberes ancestrais que nos afasta da prática da contracolonização. É preciso se entregar às confluências, reconhecer que somos rios e que mesmo em contato com outro rios continuaremos a ser únicos, e essa confluência entre nós apenas nos fortalece e nos dá a capacidade de nos reconhecer como um todo. Assim é possível concretizarmos a existência de um desenvolvimento sustentável, ecológico ou que como ele dizia viver a “roça de quilombo”, um mundo de forma “diversal”, integrado por uma variedade de ecossistemas, idiomas, espécies e reinos. O autor desenvolve mais desse pensamento em seu segundo livro “A terra dá, a terra quer” lançado neste ano.

> Leia também: Nego Bispo e muitas esperanças a cumprir

Perder fisicamente alguém como Bispo é sempre difícil, não apenas por que foi uma grande liderança quilombola que em seu engajamento e sua luta pela terra, esteve a frente do Sindicato de Trabalhadores/as Rurais de Francinópolis e da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no estado do Piauí, da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (Cecoq/PI) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Mas porque Nego Bispo era um ser humano gigante, nos encontros que tive com ele, que foram poucos em relação ao que gostaria, sempre me acolheu, me reconheceu com uma igual, conterrânea, uma irmã. Falamos sobre minha avó nos nossos encontros e ele mesmo palestrando para milhares de pessoas ainda assim me dizia, que aprendia muito mais com ela. Era impossível conhecê-lo e sair do mesmo jeito, ele nos desafiava a reflorestar o nosso imaginário.

Por estar no Rio de Janeiro e longe do Piauí, assim como diversos de nós, imigrantes espalhados pelo Brasil construindo os nossos sonhos e o de nossas comunidades, me agarrei em seus ensinamentos, entendi a circularidade tão bem dita por ele, quando afirma que nós somos “começo,meio e começo”, longe da linearidade da história branca, o nosso povo se organiza em gira e como gira damos e recebemos, não encontramos um fim, pois ainda que tentem nos destruir renascemos. Assim é Nego Bispo, uma existência que não tem fim, a morte de sua matéria nunca será o fim de seus ensinamentos e como ele disse em palestra: “enquanto você ou alguém que aprendeu com você estiver ensinando, estarei vivo, mesmo enterrado.”

Por isso este texto faço em homenagem a esse grande pensador do meu Estado, que agora se encantou, nasceu do ventre da terra e agora renascerá na ancestralidade. Viva Nego Bispo!

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nego bispo / quilombo