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Novembro Negro e a tarefa dos marxistas na luta antirracista

Letícia Lé

Letícia Lé é militante do movimento de juventude Afronte!, advogada formada na primeira turma de cotistas da Faculdade de Direito da USP e covereadora em São Paulo-SP pela Bancada Feminista do PSOL

“Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”
Antigo Ditado Iorubá

Ano após ano, novembro desabrocha como um capítulo de profundo simbolismo para a negritude do nosso país. É o momento para resgatar e tecer a narrativa autêntica de nossa gente, aquela que as páginas da história muitas vezes omitem. Novembro Negro é, sobretudo, um chamado para nos aquilombarmos, lembrarmos de onde viemos e para onde precisamos ir, um chamado para seguir enfrentando o racismo e para combater o genocídio que assola a juventude negra. Para nós, do Afronte Negro, novembro é um epicentro, onde nos alinhamos à construção de iniciativas que fortalecem o diálogo sobre questões raciais e alimentam a chama da luta antirracista no Brasil, não apenas neste mês, mas ao longo de todo o ano.

Neste dia, chegamos ao fim de mais um novembro negro. Passados trinta dias de mobilizações e acontecimentos, cabem aqui algumas reflexões.

O combate à extrema-direita e o papel do movimento negro

A atual conjuntura aponta para um lamentável fortalecimento da extrema-direita no globo. Confrontamo-nos não mais com a predominância do pensamento neoliberal, mas sim com uma crise que emergiu como elemento preponderante na conjuntura contemporânea, caracterizada pela ascensão de uma extrema direita de orientação neofascista. No seio deste avanço, é importante também observar que, desde a crise econômica global de 2008, as ideias racistas têm desempenhado um papel central na estruturação das expressões políticas mais reacionárias a emergirem. 

Neste mesmo contexto, o antirracismo experimentou uma significativa amplificação e renovação, que o colocam como elemento progressivo da luta de classes hoje, em especial após as marcantes manifestações de 2020, inicialmente desencadeadas nos Estados Unidos – através do movimento Black Lives Matter – e que subsequentemente inspiraram diversos movimentos em todo o mundo. Essa luta antirracista emergiu como um componente essencial para o desfecho eleitoral do governo fascista de Donald Trump, exercendo uma influência positiva na resistência global contra a ascensão da extrema direita. 

No cenário brasileiro, o movimento negro desempenhou um papel proeminente ao convocar os primeiros protestos durante a pandemia, dirigidos contra o genocídio, a fome e, por conseguinte, contra o governo Bolsonaro. E é importante lembrar: fomos os primeiros porque somos aqueles que mais sofrem os impactos da política nefasta do neofascismo e do bolsonarismo – duas faces de uma mesma moeda – seja pelo genocídio da juventude negra, pela falida guerra às drogas, pelo sucateamento dos serviços públicos tão necessários à nossa sobrevivência ou pelo aprofundamento das desigualdades sociais. Trata-se, além disso, de uma expressão da auto-organização da política negra, expressando o fortalecimento da consciência negra perante o combate à extrema-direita.

Fortalecer o movimento negro neste momento é parte importante da tarefa de fortalecimento da Frente Única, tática necessária para o combate ao neofascismo.

Derrotamos Bolsonaro eleitoralmente, com a participação fundamental do povo negro. Lula ganhou de Bolsonaro nas dez cidades mais negras do Brasil, o que expressa, em certa medida, a compreensão dos negros e negras da atual correlação de forças e o papel que se deve cumprir perante a mesma. Fortalecer o movimento negro neste momento é parte importante da tarefa de fortalecimento da Frente Única, tática necessária para o combate ao neofascismo. Não podemos esquecer que o movimento negro se organiza há muito tempo pela experiência da Frente Única. São muitos movimentos de esquerda que constroem hoje frentes como a Coalizão Negra Por Direitos, além de uma série de entidades tradicionais, de tal modo que é possível afirmar que a participação do movimento negra qualifica a Frente Única dos trabalhadores, possuindo um importante papel.

Avançar nas conquistas e refletir sobre os retrocessos

Como parte do governo petista de conciliação de classes, observamos hoje uma série de avanços e retrocessos no campo institucional. Não é verdade que Lula tem governado para aqueles que subiram com ele a rampa em sua posse presidencial. Por um lado, nomeou ministros de grande peso para o movimento, que atuam em defesa dos interesses do nosso povo, como Silvio de Almeida e Anielle Franco. Paralelamente, Lula colocou em pastas com direta intervenção na qualidade de vida do povo pobre e preto, ministros que possuem uma política vacilante em relação ao tema, justamente por serem parte do “centrão”.

Dois exemplos demonstram essa complicada relação: por um lado, a renovação da lei de cotas foi fundamental para que cotas sigam abrindo portas e mudando vidas. Por outro, Lula ignorou a articulação de diversos “movimentos negros” que chegaram a elaborar uma lista tríplice de mulheres negras extremamente qualificadas e progressistas para ocuparem o cargo vago pela primeira vez na história.

por um lado, a renovação da lei de cotas foi fundamental para que cotas sigam abrindo portas e mudando vidas. Por outro, Lula ignorou a articulação de diversos “movimentos negros” que chegaram a elaborar uma lista tríplice de mulheres negras extremamente qualificadas e progressistas para ocuparem o cargo vago pela primeira vez na história.  

Como parte disso, reivindicamos a necessidade da análise da complexidade do atual governo petista, visando compreender o papel que o negro ocupa neste espaço e as limitações das vias institucionais, sendo colocado o apoio às medidas progressistas e as exigências diante das medidas que apresentem retrocessos. O movimento negro deve, portanto,  elencar para o governo as suas prioridades em termos de agenda para que seja debatida com centralidade em relação. Ao governo, cabe a obrigação de não errar com o povo negro, demonstrando para a população qual o lugar que será dado aos debates raciais nas suas elaborações políticas.

Nossa tarefa, enquanto marxistas, sempre irá além da disputa no campo institucional. Afinal, o racismo é um elemento estruturante das divisões de classe. Nos colocamos enquanto sujeitos ativos da luta de classes que visam derrubar a burguesia, pois entendemos que ela, dentre muitas outras coisas, sustenta a ideologia de supremacia branca que tenta eliminar o povo negro diariamente no Brasil e no mundo, seja através da concentração de riquezas – elemento central da socidade capitalista brasileira – ou pela violência como prática política permanente e não episódica. Portanto, nossa principal atuação sempre estará no movimento, em defesa dos oprimidos e buscando avançar em conquistas. Isso somente é possível através da priorização da política antirracista no interior das nossas organizações.

A luta por uma juventude negra viva e livre

Ser jovem, pobre e negro no Brasil sempre foi sinônimo de luta e resistência. Por isso, a pauta mais imediata da juventude negra hoje é o seu direito à vida. Como já apontado, são muitos os artifícios da classe dominante para nos exterminar. É importante, no momento atual, se debruçar sobre alguns deles.

Ser jovem, pobre e negro no Brasil sempre foi sinônimo de luta e resistência.

A violência policial segue sendo a maneira mais eficaz de nos atingir. A cada 100 mortos pela Polícia Militar da Bahia, 98 são negros. Por isso, parte central das nossas demandas mínimas hoje passa pela exigência das câmeras nas fardas dos policiais. Vemos que nos estados em que esta política foi implementada, a letalidade policial diminuiu significativamente. Mesmo que não seja uma política pública completamente eficaz – vemos, por exemplo, situações recorrentes em que a câmera “caiu da farda” diante de casos de tortura ou mortes de jovens negros. Não à toa, o Governador de São Paulo, Tarcísio, que é diretamente ligado ao Bolsonaro e ao bolsonarismo, cortou mais de 15 milhões de reais do programa de câmeras da PM de SP.

Outro tema que segue atual é a luta contra a guerra às drogas. Vimos neste ano a descriminalização do porte pessoal de maconha ser discutida no âmbito do Supremo, apresentando a possibilidade de um avanço, mas que inevitavelmente não foi ao centro da questão: a guerra às drogas perpassa o Poder Judiciário em um segundo momento, mas antes disso, é executada diretamente pela Polícia Militar. Por isso, seguimos lutando pela legalização de todas as drogas e pelo fim da Polícia Militar, porque é pelas nossas vidas.

Contudo, não queremos que a nós esteja relegado apenas o papel da sobrevivência. Quando falamos de uma juventude negra viva e livre, falamos da importância de estarmos livres para sonhar. O direito ao sonho, hoje, possui classe e cor. Por isso, a defesa das cotas, da permanência estudantil, dos movimentos culturais, dos esportes para todos são parte também das reivindicações que seguiremos fazendo.

O internacionalismo segue mais necessário que nunca

A luta do povo negro sempre caminhou ao lado da luta de diversos povos racializados no globo. Afinal, os efeitos da colonização e do imperialismo ainda atingem muitos povos não-brancos. Sua expressão máxima atualmente se encontra no genocídio em curso no território Palestino.

“…os efeitos da colonização e do imperialismo ainda atingem muitos povos não-brancos. Sua expressão máxima atualmente se encontra no genocídio em curso no território Palestino. 

A luta do povo negro sempre caminhou ao lado da luta do povo palestino. Angela Davis, no trecho abaixo, compara o apartheid na Palestina com aquele que ocorreu na África do Sul:

“O ponto que levanto é que, durante um período muito longo, Mandela, seus companheiros e suas companheiras compartilharam da mesma condição em que hoje se encontra um grande número de lideranças e ativistas da Palestina e que, assim como os Estados Unidos colaboraram de maneira explícita com o governo do apartheid na África do Sul, continuam apoiando a ocupação israelense na Palestina, atualmente na forma de uma ajuda militar de mais de 8,5 milhões de dólares por dia.”

No Brasil, essa relação também é bastante explícita. Hoje, grande parte do armamento bélico utilizado pela Polícia Militar para exterminar a juventude negra é oriundo de “Israel”. Inclusive, em meio ao atual massacre em curso em Gaza, a Rota exibiu armas israelenses recebidas no aniversário do batalhão. Práticas repressivas utilizadas há anos no território Palestino são as mesmas aplicadas, por exemplo, na ocupação do Exército no Complexo da Maré.

A solidariedade e a exigência do rompimento de todas as relações do Governo é mais urgente que nunca. A solidariedade com a Palestina tem o potencial de transformar e ampliar a consciência política de nossos movimentos.

Reflexões e desafios sobre o movimento e a luta contra o racismo

No interior do movimento negro, são alguns os desafios hoje enfrentados. Isso porque temos “movimentos negros”, com profundas complexidades e que – como qualquer sujeito político coletivo – são atingidos diretamente pela influência do neoliberalismo. A tentativa de captação dos temas identitários por estes agrupamentos, através de investimento financeiro e disputa ideológica nas grandes mídias impõem desafios para a auto-organizações dos negros e negras – aos quais devemos nos atentar.

Nesse sentido, o enfrentamento das contradições do desenvolvimento do capital ensejam a necessidade da compreensão da dimensão dialética entre a luta antirracista e a luta anticapitalista. É somente através da combinação destas lutas que poderemos avançar na verdadeira emancipação do povo negro. Isso exigirá de nós tempo, esforços e a devida centralidade para a intervenção no movimento.

Portanto, se Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje, é igualmente nossa tarefa compreender as estruturas racistas erguidas no passado, mas também compreender que os nossos passos vêm de longe e que a luta do povo negro revolucionário segue viva e, sustentando-nos nela, iremos derrubar essas estruturas racistas com as pedras lançadas no presente.