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CULTURA

Um dia sem chuva em Santa Luzia

Julian Boal, membro da coordenação da Escola de Teatro Popular do Rio de Janeiro (RJ)

Fiquei a manhã inteira olhando para o céu, vendo se ia ter chuva ou não. Quando tem chuva não tem teatro.

Trabalhamos no pátio de uma cozinha comunitária em Santa Luzia, bairro de São Gonçalo. A cozinha até tem um espaço coberto, mas o teto está para desabar. Uma chuva forte vai derrubar esse teto um dia e nesse dia não queremos estar ensaiando o que quer que seja. Que as tantas mortes que ali ensaiamos sejam sempre somente isso, teatro.

A cozinha atende as pessoas da região que tem fome. Só fui entender o que é fome depois de um tempo. Sempre temos nas nossas cabeças que fome é ficar faminto dias a fio, definhando como aquelas figuras que vemos nas campanhas de tantas ONGs. Corpos esqueletos que mal andam, falam ou olham. Vivos já mortos. Fome é mais que isso. Fome é também negociar com o corpo constantemente: “se eu comer uma banana agora, consigo segurar mais 3h. Indo dormir mais cedo não vou precisar comer tanto. De manhã só com café ainda dá um tempo.” Uma negociação perpetua com três grandes variáveis: os alimentos que se tem, o corpo e o tempo. Tudo para esticar as forças o máximo possível, até o dobrar da esquina. Vai que amanhã melhora?

As pessoas que vem para cozinha são dessas, engenheiros da própria barriga, a espreita ou de uma nova chance de poderem ser exploradas, ou de ganhar um tanto a mais, de se integrar a nova rodada do capital, sabendo que se trata de um carrossel que joga mais gente para fora do que deixa entrar.

É nessa cozinha que a Escola de Teatro Popular trabalha já faz quase dois anos.

Naquela manhã, eu ia voltar para lá depois de 3 semanas sem ir. Faltei por causa de risco de chuva, mas também por causa de duas semanas promovendo meu livro nos EUA. Era uma volta depois de um tempo longo. Eu estava meio impaciente, meio sem vontade. Será que vai ter gente? Será que esse céu cinzento vai afugentar as pessoas? Será que minha cabeça dá conta de ir dos campis tão cuidados dos EUA, dos seus restaurantes universitários tão fartos, até aquele pátio em tão pouco tempo?

Fui.

Chegando dois moleques do grupo estão lá, regando as plantas. Uma criança de 3 anos corre de um lado para o outro, qualquer coisa na sua mão vira brinquedo. Sua mãe, uma monitora do grupo, está sentada na bancada da cozinha. O papo começa. Ela já deve me achar um saco. Não consigo vê-la sem lhe dizer que ela precisa estudar, que ir para a faculdade é tudo de bom, para a cabeça já, para o bolso depois, se tudo der certo. Eu sei que não é fácil para ela. Mãe solo, periférica, grana curta. Mas me dilacera o coração ver uma pessoa inteligente assim não se municiar, não se desenvolver o tanto que pode. Me dá nervoso ver isso. Ela sabe que minha aflição vem daí, de justamente eu achá-la inteligente. Acho que é por isso que ela aguenta meu papo, sempre o mesmo, de toda quarta-feira.

O grupo vai se juntando. Na maioria, uma meninada mais ou menos da idade do meu filho. Alguns adultos. Vamos conversando sobre como foram as últimas apresentações. Eles gostaram, mas a última foi a mais difícil. Foi num CIEP, o público, jovens em sua maioria, estava muito agitado. Engraçado foi que quando conseguiram ter silêncio para a peça, bem na hora que uma das atrizes se aproximava do publico para falar, deu para ouvir de fora alguém gritando: “Cala a boca! Porra!” Aí nem eles, os atores em cena, conseguiram segurar a risada.

Tenho um receio grande. Na primeira vez que apresentamos a peça alguns dos atores não puderam estar presentes e tiveram que ser substituídos. Inclusive um dos monitores que trouxe uma cena sobre a homofobia que sofria na escola. Depois da apresentação, quando falamos do processo um dos meninos falou que sofria do mesmo preconceito. E a gente não sabia. Passamos umas 6 semanas ensaiando essas cenas sem saber que esse menino sofria exatamente disso. O ter que ensaiar nos cegou a quem ensaiava. A cena tinha se tornado mais importante que as pessoas nela. Senti vergonha de mim mesmo naquele dia. Eu queria reverter isso de qualquer maneira, por isso tantas perguntas para eles: “Vocês gostaram? Do que gostaram? Como vocês se sentiram em cena? As apresentações foram diferentes entre si?” Eu procurava transformar em pergunta qualquer coisa que me vinha a cabeça para saber o que se passava na cabeça deles.

Depois da conversa, a tarefa. Íamos nos apresentar em outro festival que tem como tema a negritude, portanto tínhamos que tentar integrar a nossa peça algo que tivesse mais a ver com o racismo. Eu me seguro ao máximo para não começar a debater o que é o racismo com eles. Já foi o tempo do papo. Agora temos que confiar na experimentação teatral, mas me mordo por dentro. Tanta gente por aí que define o racismo somente como se fosse um preconceito de pessoa a pessoa, até mesmo numa cidade como o Rio em que o transporte, a saúde, a educação, a moradia e, obvio mais que ululante, a segurança publica suam racismo por todos os poros! A lista das instituições e das estruturas racistas brasileiras é longa e não acaba aí.

A tarefa é simples. Fazer 5 imagens que representam o racismo. Pode ser imagens do que eles viveram, do que viram, do que sabem que aconteceu ou acontece. Alunos de um lado trabalhando, monitores do outro a espera do resultado.

Vejo eles sentados em círculo, poucas falas, muitos silêncios. A nervosidade me ganha de novo. Toda aula tem que ser boa, senão não há garantia que tenha outra aula. Pode ser que eles não voltem. Será que deixamos eles livres demais? A gente deveria ter feito mais jogos, explicado melhor o que é uma imagem? Me impaciento. Entro onde não devia entrar. Explico tintin por tintin. Imagino o pior. Penso meio que em segredo para mim mesmo: “E se nada for bom? Como botar umas cenas de contrabando se eles não acertarem nada?” Saio, nervoso. A confiança no processo caiu antes do teto da cozinha.

Eles começam a se animar. Ouço risadas, gritos e mais risadas. As imagens não vão ser imagens, vão ser cenas. O tempo se alonga. Uma chuva fina começa a cair. Peço para que a gente veja as cenas no pátio.

E aí, como descrever o acontecimento?

Tudo que falamos sobre teatro esses últimos meses está presente em cena. A preocupação em criar situações, em não sermos somente bocas que falam, com a movimentação, … Tudo está aí.

E mais. Eles criarem 3 cenas curtas, com uma dramaturgia que as une. Em todas as cenas, um mesmo elemento volta que toma um sentido diferente em cada uma delas: o custo. Na primeira cena, uma jovem é morta por um policial que a confunde com um furtador de bolsa. “Quanto custa uma vida preta?” grita uma personagem que filma o policial que estrangula a menina. Na segunda, a mãe que trabalha num salão de beleza vê o vídeo da morte da filha. Suas amigas a rodeiam, tentam reconforta-la, uma até fala que pode ajudar com as despesas do funeral: “Já tive de fazer o do meu filho mais velho, é uma fortuna! Custa os olhos da cara!” Na terceira, um traficante se oferece a pagar o funeral: “Posso pagar sim, mas nada é de graça. Tudo tem um custo!”

Me lembro de algo que escrevi anos atrás: a importância de ver essas pessoas produzirem o belo é de mostrar que suas sensibilidades não foram destruídas pela sociedade que quer destruí-las. Que portanto, ainda está aberta a possibilidade delas darem a grande reviravolta. O que está em jogo quando um grupo oprimido desse jeito consegue criar beleza é a possibilidade da revolução.

Mais do que aliviado, estou emocionado. Quer dizer que eles não só apreenderam a estar em cena como também a fazer teatro? Ali, acolá vejo coisas que podem melhorar, mas essa molequada fez isso mesmo? Essas cenas boas assim? Não me canso de dar parabéns. Eles se animam com a minha animação. Brincam comigo: “Julian elogiando assim, tem alguma coisa estranha!”. Começam a falar como criaram. Aí um, geralmente mais calado, começa a falar. Nada em sua cara me prepara para o que ele vai dizer. “Sim, a gente pegou umas coisas que acontecem mesmo. Isso de traficante pagar enterro é verdade. Quando mataram meu irmão, meus pais não tinham como pagar o enterro. Traficante que pagou, mas ele disse isso mesmo, que nada era de graça. Aí, meu outro irmão teve que trabalhar com ele. Tá na cadeia agora.”

Como continuar? Onde ir? Uma participante mais velha chora, abraça o adolescente, diz que não sabia que estávamos fazendo coisas tão reais para as próprias pessoas do grupo. Agarro a mão do adolescente. Eu falo, mas me sinto sem chão, digo palavras para tentar me reequilibrar. Não consigo entender as caras da garotada que me cerca. O silencio é em respeito ao amigo? Ou eles agora entendem um pouco mais o quanto meu mundo é diferente do deles por eu estar visivelmente tão impressionado assim com o relato que acabamos de ouvir? De qualquer forma, o silencio dura uma eternidade e só alguns segundos ao mesmo tempo. As falas retornam, as risadas também. O grupo se dispersa, é o final da aula. Começo a falar com outros monitores. Como podemos integrar a cena a peça? A monitora-mãe dá ideias ótimas, o que só me confirma sua inteligência. É hora de tirar fotos, de fazer a lista de presença para confirmar que estamos de fato fazendo o projeto pelo qual recebemos nossa pouca verba. A rotina volta e sinto gratidão pelo seu poder analgésico. Os participantes se despedem, só consigo ver as costas do adolescente que falou sobre seu irmão.

Fico sozinho com um monitor e um aluno. Conheço bem a família do monitor. Pergunto para ele se ele acha que é tão frequente assim ter irmãos que morrem assassinados. O aluno, ele tem 12 anos, responde que sim, que ele perdeu o seu assim, que ele tinha se “envolvido”, que foi assaltar um policial que estava de civil e que o policial o matou.

Nos sessenta e tantos minutos de volta para casa não consigo parar de pensar no que aconteceu. Faço áudios longos para amigos em inglês. Não quero falar em português. Meu medo é que o motorista do uber no qual estou seja bolsonarista, que ele justifique os assassinatos. Não conseguiria ouvir isso agora. Talvez seja também uma vontade de fugir, de ir para outro lugar.

Não consigo entender com muita claridade o porquê faço o que faço. Qual a utilidade disso frente a esse abismo? Sei que alguma tem, mas não consigo muito bem definir qual. Somos a frente cultural de uma organização revolucionária que ainda não existe, disse certa vez Godard. Não sei se ela existirá um dia.

Semana que vem, de novo vou olhar para o céu. Espero que não chova.