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MUNDO

Portugal – Crise política: de onde vimos e para onde vamos?

Semear o futuro, de Portugal

Os acontecimentos dos últimos dias foram fulminantes. Com a demissão de António Costa, poucas horas depois da divulgação de uma investigação que incluía buscas no Palácio de S. Bento e que atingia diversos dos seus ministros e colaboradores próximos, e a convocatória de eleições, para 10 de março, pelo Presidente da República, a situação política mudou. As linhas que se seguem visam contribuir para a compreensão os acontecimentos e para ajudar a rearmar a esquerda para as batalhas que se avizinham

1 Todos fomos apanhados de surpresa pelo momento e os contornos específicos da crise política. Contudo, eles não foram um relâmpago em céu azul. As tendências que se cruzaram, qual tempestade perfeita, nestes dias, já eram visíveis há muito, para quem as quis ver. Há um ano, escrevíamos: «As sucessivas crises políticas e remodelações no primeiro ano do Governo de maioria absoluta são sinais dessa possibilidade [de queda do Governo]. Elas demonstraram uma dinâmica incontrolável que se combina com o recrudescimento das lutas sociais, o aprofundar da crise económica e a consolidação da extrema-direita. Isto, num cenário de guerra e choques geopolíticos. Estes fatores podem combinar-se acelerando os ritmos políticos, interagindo com fatores como a divisão interna do PS. Daqui pode resultar uma crise política inesperada a qualquer momento. (…)  É difícil não prever um aumento da contestação social; mas tal deve ser visto à luz do atual contexto internacional e na presença de um movimento neofascista de extrema-direita. A natureza da revolta, por direitos e salários, tende a privilegiar saídas pela esquerda. Mas a atual disposição de forças político-partidária facilita a sua captura pela direita e extrema-direita. Neste processo, pode chegar a Portugal o tipo de crise que chamámos “orgânica”, uma crise de representação geral que pode ser particularmente perigosa.» Ou seja, a tendência à perda de legitimidade do Governo; ao protagonismo político do poder judicial, combinado com uma ofensiva política e mediática à direita; à falta de sustentação popular do Governo PS, dadas as suas políticas antissociais; enfim, à crise de legitimidade democrática do centro político, estavam aí. Um ano de lutas sociais importantes não foi o suficiente para que esses fatores negativos ficassem em segundo plano face à possível revolta popular. Assim, é hoje a direita e a extrema-direita quem mostra as garras, enquanto o povo de esquerda e as classes trabalhadores assistem atónitas. Mudar, tanto quanto possível, esse estado de coisas é a tarefa para o período. Há, portanto, uma disputa em curso.

2 Ainda é cedo para entender a fundo a Operação Influencer, os seus contornos, dimensões e impactos. Contudo, erra quem, à esquerda, esteja tentado a projetar nela as suas justas críticas, revoltas e frustrações com o Governo de António Costa. Não será o poder judicial a interposta pessoa que, em substituição das lutas sociais, garantirá justiça social e controlo democrático do Governo e da economia. Os inimigos dos nossos inimigos raramente são nossos amigos. A tendência ao protagonismo político do poder judicial, fazendo e desfazendo governos e influenciando de forma determinante a vida política — o chamado lawfare — marca o cenário político de vários países, sempre com saldo negativo para a esquerda e as classes trabalhadoras. Veja-se o caso da perseguição do PT no Brasil ou ao Podemos e às CUP no Estado Espanhol. De todos os poderes constitucionais, o judicial é o menos escrutinado, o que não é eleito, o que mais cede ao corporativismo. E é, junto com as forças de segurança com quem se entrelaça amiúde, o mais capturável por agendas reacionárias — veja-se os casos em curso contra Mamadou Ba e Claúdia Simões. Em concreto, a Operação Influencer parece desenhada à medida de uma narrativa política que, ajudada pela grande comunicação social, nomeadamente a de direita, faz a oposição ao PS que as direitas partidárias não têm conseguido fazer — mas de que irão beneficiar. Isto não significa que esta investigação, em parte ou no todo, não se sustente em factos reais. Desde logo, o mais do que conhecido modus operandi de beneficiar grandes negócios, manobrando a seu favor o aparelho de estado, a partir do centro do poder executivo — funcionamento comum a todos os governos do PS e da direita, mas a que este, seguro na sua maioria absoluta, parece ter dado rédea solta. Esse tipo de governação tem sido denunciado pela esquerda, nomeadamente pelo Bloco, e tem de continuar a sê-lo no plano político. O que, nesse funcionamento, sistémico incumpre ou não a lei — já de si tão permissiva — ficará evidente com o tempo. Seja como for, mais do que a condenação criminal, a Operação Influencer parece desenhada em função de efeitos políticos, que já obteve estrondosamente. Isso deve ser denunciado, mesmo que, em certos momentos, contrarie a opinião pública e a voragem mediática alimentada por fugas ao segredo de justiça metodicamente plantadas pela investigação em função de uma agenda política. Especificamente, há que exigir esclarecimentos rápidos e cabais sobre o envolvimento do Primeiro-Ministro na investigação que parece, até agora, nebuloso. Se os factos que envolvem os seus colaboradores diretos já levariam, quase que inevitavelmente, à demissão de Costa, aqueles que o podem envolver diretamente estão longe de ser claros. Essa clarificação é essencial e a sua exigência é que pode constranger a tentação justiceira.

3 O facto de a Operação Influencer se desenhar em torno de grandes negócios ligados à (falsa) transição energética coloca desafios específicos num momento em que a crise climática se acirra e a defesa de uma verdadeira transição ecológica e energética justa deve ganhar relevância. Há o perigo de todas as exigências de transição energética ficarem manchadas pela nódoa que o Governo, com a sua política, e o Ministério Público (MP), com a sua investigação, fizeram alastrar. Essa disputa, entre a falsa transição energética — na verdade, uma expansão energética — e propostas de descarbonização rápida da economia, que garantam empregos, justiça social e respeito pelas comunidades e os territórios, deve ser feita com força redobrada. Há que exigir a suspensão dos projetos abrangidos na Operação Influencer; cortar pela raiz a ideia peregrina de exportação de hidrogénio verde, produzindo-o apenas como complemento a uma verdadeira transição; há que travar as megacentrais fotovoltaicas, muitas delas planeadas para alimentar estes projetos, e apostar na produção descentralizada e comunitárias de energias renováveis; há que exigir o controlo público e democrático do setor da energia para garantir uma transição justa, rápida e transparente ao serviço do povo e do planeta, não do lucro; há que colocar a mobilidade coletiva assente em energias limpas, ferroviária e não só, no centro do debate político e como eixo da Transição Justa. Seja como for, o que fica evidente, é que, nesta época de «ebulição» climática, todos os grandes assuntos políticos e sociais são atravessados pelos desafios ecológicos, reforçando a necessidade de uma centralidade cada vez mais da luta pela Transição Justa e de um perfil ecossocialista à esquerda.

4 Não há que ter ilusões, o ciclo mudou. As coordenadas da luta à esquerda devem ser recalibradas. O risco de a direita chegar ao poder aumentou consideravelmente. O perigo de que, com isso, o neofascismo se reforce e até venha estar no Governo ou a influenciá-lo diretamente também. Não se trata, como noutros momentos políticos, de constatar o rotativismo ao centro entre «PS com ou sem D». A ânsia da direita pelo poder não é apenas a de se voltar a entrincheirar, com os seus boys, no aparelho de estado como o faz o PS. O que a move é a «doutrina de choque», a estratégia de usar os atuais tempo conturbados, nacional e internacionalmente, para retomar o ultraliberalismo troikista, agora com laivos de autoritarismo e política de ódio — racista, conservadora, misógina — insuflados pelo crescimento do neofascismo. Tampouco, o neofascismo é «apenas» uma versão menos moderada do espectro liberal e da direita (ainda que seja totalmente liberal na visão económica). O neofascismo é um perigo específico, um projeto de infiltração do aparelho de estado por forças ultrarreacionárias que pretendem subverter o regime democrático, varrer do cenário político a esquerda e as lutas sociais e aplicar um programa bem para além da troika, que não é possível dentro da gestão democrática normal. O racismo, o espírito colonialista, o ódio às minorias, às mulheres, à esquerda e aos pobres não são adereços nesse projeto económico, mas sim armas políticas centrais para o implementar e uma visão do rearranjo social pretendido. Pelo que a extrema-direita tem de ser combatida em todos esses terrenos, unindo as lutas por igualdade e democracia às por direitos económicos e sociais. Não há que esperar pelo ponto de não-retorno para dar centralidade a este combate. É certo que o PS tentará usar o espantalho da extrema-direita contra a esquerda, até ao dia em que o espantalho se vire contra o PS para o estrangular. Responder a essa agitação exige inteligência tática, mas também lucidez política: o neofascismo com influência de massas, a cavalo numa ofensiva mediática-judicial e partidária das direita, torna-se um eixo central da luta política. Grande parte da base social da esquerda já o sente. O povo de esquerda tem de estar seguro, sem margem para dúvidas, que a justa oposição da esquerda ao PS não significa margem nenhuma para o avanço da direita. Essa relação de confiança rompeu-se com o (inevitável e necessário) chumbo do OE de 2021. Há que restabelece-la. «Não deixaremos a direita governar, não descansamos até derrotar o neofascismo». Esse mote é o ponto de partida para tudo o resto: a apresentação de um programa anticapitalista, oposto ao da direita e do PS; a crítica à governação de Costa; as exigências à nova liderança do PS; a aposta nas lutas sociais.

5 Há que reagrupar forças, afinar a tática, mobilizar o povo de esquerda. Rapidamente. O momento é difícil, mas longe de ser desesperado. É possível reforçar a esquerda e ganhar posições para preparar um novo ciclo de lutas. Por isso, é essencial não congelar as lutas sociais em curso — mesmo sem um interlocutor governamental estável, são as lutas de hoje que reforçam a posição de exigência amanhã. À esquerda, há que combinar vários planos simultâneos de ação tática. Primeiro, há que reafirmarmo-nos como ferramenta essencial para travar as direitas, lembrando, ao mesmo tempo, que o PS falha nesse propósito como o demonstra a breve história desta maioria absoluta: é à esquerda que residem a aposta contra o retrocesso e a exigência por mais direitos. Ao mesmo tempo, há que relembrar as lições do ciclo anterior e, até, da experiência no Estado Espanhol. Não há ilusões num futuro Governo PS, muito menos na possibilidade de o integrar, independentemente de quem o encabece — sendo que a existência de tal Governo nem sequer é garantida. A disponibilidade para não deixar a direita governar, logo, para viabilizar taticamente um Governo PS minoritário, não apaga a aposta na criação de um terceiro campo político, contra a direita e alternativo ao PS. Nisso, inspiramo-nos, com paciência e inteligência tática, nas recentes declarações do camarada Fernando Rosas quando afirmou que «nenhuma corrente de esquerda pode seguir o seu caminho sem se entender com as outras» e na definição da passada Convenção do Bloco de Esquerda em que afirmámos que «o Bloco continuará a procurar convergências políticas à esquerda. (…) temos a ambição de erguer um amplo campo de esquerda popular que mude a relação de forças a favor de quem trabalha». A par destas localizações simultâneas e complementares — para travar a direita e para construir um amplo campo à esquerda — podemos reforçar a proposta programática anticapitalista e ecossocialista apostada em mobilizar maiorias sociais, unindo na sua diversidade as massas mais exploradas e oprimidas. Nesse sentido, fazendo convergir as propostas que respondem às grandes lutas sociais que enfrentaram o Governo agora demissionário — na educação, na saúde, na habitação, na defesa do salário e na exigência de solidariedade com a Palestina — com as reivindicações que podem criar uma polarização alternativa contra o conservadorismo, respondendo ao racismo, à LGBTfobia e à misoginia, unificando-as numa proposta de transição ecológica, social e democrática em que os recursos económicos e naturais são bens comuns geridos democraticamente em prol de uma vida boa para as maiorias sociais e o planeta.

Original em Crise política: de onde vimos e para onde vamos?