Com que tom de pele me visto?

Nos últimos dias venho observando vários questionamentos sobre como se referir a pessoa não branca. Essa “dúvida” reacende todo novembro negro, então resolvi escrever e apresentar algumas reflexões sobre o tema. Uma das observações que quero deixar é, a dúvida sobre cor de pele atinge as pessoas brancas? Por que essas questões reacendem no mês de novembro? O que está escondido por detrás dessas “dúvidas”?

Ângela Silva, de Londrina (PR)
RyanJLane

Com que tom de pele me visto? De tantas cores pintadas, de tantos nomes nominados que esqueceram de nomear a existência do ser. Do ser negro! Esse pensamento vem latente a minha mente cada vez que escuto alguém me perguntar: “Mas, como devo me referir a vocês, negro ou preto”? Geralmente eu paro e respondo com educação e explico que os dois estão certos. Mas, a verdade é que às vezes dá vontade de responder da mesma forma, e como me refiro a vocês? Branco, branquinho, brancão. Por que essa dúvida não permeia as mentes do que se consideram os da pele normal e universal? Porque existe uma narrativa de superioridade de pele, superioridade branca normativa, o que está fora dessa normativa é considerado fora do padrão.

Há mais de 500 anos que nossos primeiros ancestrais da diáspora forçada pisaram em solo brasileiro, esse evento ainda é apresentado nos bancos escolares como um processo harmonioso e tranquilo. Esconde-se a verdadeira história da construção da nossa sociedade. Sociedade marcada pela expropriação dos corpos negros, pela violência, estupro, extermínio dos povos indígenas e roubo de bens materiais, bens culturais e intelectuais.

Ao povo negro e indígena é negada sua existência, tanto é que em pleno século 21, ano de 2023, ainda precisamos provar que existimos, que estamos aqui. A Lei 10.639/03 (Brasil, 2003) que rege sobre a obrigatoriedade do ensino de África, dos africanos e dos afro-brasileiros, atualizada pela Lei 11.645/08 (Brasil, 2008) que rege sobre a obrigatoriedade do ensino dos povos originários, povos indígenas e suas culturas é um exemplo de como a sociedade brasileira desconsidera a existências desses povos. Pergunto: Precisa de uma lei para ensinar sobre os povos europeus? Franceses, portugueses e outros. Precisa de uma lei para ensinar sobre os povos asiáticos? E por que ainda precisamos de uma lei que obriga o ensino sobre o povo negro e indígena? Porque a nossa sociedade insiste em negar a nossa existência.

Voltando ao questionamento que tom de pele me visto? Confusão propiciada pela formulação da miscigenação no Brasil na qual foi pensada e organizada a partir da imigração dos povos europeus para embranquecer o Brasil e extinguir o corpo preto do universo brasileiro, permeia os dias de hoje, como forma de lembrar e de tentar impor a ferro e fogo a padronização do ideal branco. A escala classificatória da miscigenação é descrita por Clóvis Moura (1994, p.150);

“no Brasil o imenso grau de matizes cromáticos formados criou, em contrapartida, uma escala classificatória, considerando-se o indivíduo ou grupo tanto mais valorizado socialmente quanto mais próximo estivesse do idealtipo étnico imposto pelo colonizador inicialmente, e pelas elites de poder em seguida: o branco. Essa dinâmica discriminatória foi acompanhada por uma dinâmica de julgamento social que a completava, pela qual à medida que esse discriminatório se aprofundava e a população diversificava-se cromaticamente, via miscigenação, criava-se, em contrapartida, um julgamento de valor para cada uma dessas diferenças”

O julgamento das pessoas brancas em cima dos corpos negros são heranças do sistema escravista. Ainda hoje a narrativa de que o bom, o ser branco está em contrapartida, do que é ser ruim, ser preto. Assim, perpassa a “dúvida” de narrativas sobre os corpos negros. A proximidade do preto soa como algo ruim, logo, o ideal é aproximar a pessoa do branco, universal, por isso, é muito comum as pessoas se referirem às pessoas negras como morena. Primeiro, essa dúvida só permeia porque as pessoas desconhecem a formação social brasileira, insistem na proclamação do mito da democracia racial, negam o racismo e suas reformulações. Segundo, a pessoa branca é chamada pelo nome marcando a sua existência, já para a pessoa negra essa existência é negada, o que leva a “confusão”, o nome é um marcador de identidade e de existência, a superioridade branca no processo escravista formalizou a inexistência do povo negro como afirma Munanga (1986, p. 09);

convencidos de sua superioridade, os europeus tinham a priori desprezo pelo mundo negro, apesar das riquezas que dele tiraram. A ignorância em relação à história antiga dos negros, as diferenças culturais, os preconceitos étnicos entre duas raças que se confrontam pela primeira vez, tudo isso mais as necessidades econômicas de exploração predispuseram o espírito do europeu a desfigurar completamente a personalidade moral do negro e suas aptidões intelectuais. Negro torna-se, então sinônimo de ser primitivo, inferior, dotado de uma mentalidade pré-logica. E, como o ser humano toma sempre o cuidado de justificar sua conduta, a condição social do negro no mundo moderno criará uma literatura descritiva dos seus pretendidos caracteres menores

A sociedade brasileira é formada por diversas etnias, no entanto é a população negra e indígena que sofre com o apagamento histórico, o racismo estrutural que normatiza as violências. Essas violações perpassam pela negação de ter sua afirmação corpórea negada o tempo todo, a todo tempo. Das inúmeras vezes que apresentei o tema sobre identidade racial em sala de aula com crianças pequenas, a dúvida sobre tonalidade de pele perpassa as crianças negras, aqui utilizo a classificação do IBGE (pretas e pardas) para referir a população negra. As crianças brancas não têm dúvida da sua tonalidade e se auto afirmam como brancas. As crianças negras começam a se questionar, mas que cor eu sou? Ou que tom de pele me vestem?

As ações afirmativas conquistas dos movimentos negros vem reorganizando as universidades brasileiras, os 20 anos da Lei 10.639/03 (Brasil, 2003) é demarcada por avanços significativos, entre eles estão o colorismos das universidades, a qual é possível ver salas de aulas mais negras e indígenas. Essa ocupação apresenta contradições, pois ainda é um espaço colonizador e discriminatório, mas ao mesmo tempo os estudantes vão reformulando conceitos a partir da construção coletiva, estar em “bando” nos bancos universitários criam mecanismos de resistência e permanência (Jesus, 2021).

Outra conquista são as reorganizações dos espaços escolares, antes dominado por professoras e professores brancos, aos poucos esse espaço de poder vem sendo ocupado por professoras e professores negros. O que vem gerando novas formulações nos contextos diários, crianças estão tendo acesso mais permanente com professores que procuram trabalhar diariamente os conteúdos de história de África como prevê a lei. A chegada desses novos atores também reformula a relação histórica entre profissionais e gestão. Cada vez mais, os profissionais negros estão questionando as normativas tradicionais de ensino, denunciando a falta de materiais pedagógicos e de literatura para atender as crianças e suas corporeidades de forma positiva. Os conflitos que permeiam os espaços escolares, vejo como positivo, pois a história vem sendo recontada por atores protagonistas, suas vivências e memórias vem desconfigurando as narrativas e as certezas da consciência formalizada da história oficial.

Não há dúvida que existem muitos caminhos a trilhar, o que podemos afirmar é que os movimentos negros, e as ações afirmativas tem um papel fundamental na construção de uma sociedade mais justa, democrática e igualitária.

Referências
BRASIL. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm > acesso dia 26 de outubro de 2022.
BRASIL. Lei 11.645/08 de 10 de Março de 2008. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. Disponível em:< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm> acesso dia 26 de outubro de 2022.
JESUS, R. E. de. Quem quer (pode) ser negro no Brasil? Belo Horizonte. Autêntica, 2021. (Cultura Negra e Identidade – coordenação Nilma Lino Gomes)
MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo. Ed. Anita, 1994.
MUNANGA, K. Negritude: usos e sentidos. São Paulo. Editora. Ática, 1986.