Com que tom de pele me visto? De tantas cores pintadas, de tantos nomes nominados que esqueceram de nomear a existência do ser. Do ser negro! Esse pensamento vem latente a minha mente cada vez que escuto alguém me perguntar: “Mas, como devo me referir a vocês, negro ou preto”? Geralmente eu paro e respondo com educação e explico que os dois estão certos. Mas, a verdade é que às vezes dá vontade de responder da mesma forma, e como me refiro a vocês? Branco, branquinho, brancão. Por que essa dúvida não permeia as mentes do que se consideram os da pele normal e universal? Porque existe uma narrativa de superioridade de pele, superioridade branca normativa, o que está fora dessa normativa é considerado fora do padrão.
Há mais de 500 anos que nossos primeiros ancestrais da diáspora forçada pisaram em solo brasileiro, esse evento ainda é apresentado nos bancos escolares como um processo harmonioso e tranquilo. Esconde-se a verdadeira história da construção da nossa sociedade. Sociedade marcada pela expropriação dos corpos negros, pela violência, estupro, extermínio dos povos indígenas e roubo de bens materiais, bens culturais e intelectuais.
Ao povo negro e indígena é negada sua existência, tanto é que em pleno século 21, ano de 2023, ainda precisamos provar que existimos, que estamos aqui. A Lei 10.639/03 (Brasil, 2003) que rege sobre a obrigatoriedade do ensino de África, dos africanos e dos afro-brasileiros, atualizada pela Lei 11.645/08 (Brasil, 2008) que rege sobre a obrigatoriedade do ensino dos povos originários, povos indígenas e suas culturas é um exemplo de como a sociedade brasileira desconsidera a existências desses povos. Pergunto: Precisa de uma lei para ensinar sobre os povos europeus? Franceses, portugueses e outros. Precisa de uma lei para ensinar sobre os povos asiáticos? E por que ainda precisamos de uma lei que obriga o ensino sobre o povo negro e indígena? Porque a nossa sociedade insiste em negar a nossa existência.
Voltando ao questionamento que tom de pele me visto? Confusão propiciada pela formulação da miscigenação no Brasil na qual foi pensada e organizada a partir da imigração dos povos europeus para embranquecer o Brasil e extinguir o corpo preto do universo brasileiro, permeia os dias de hoje, como forma de lembrar e de tentar impor a ferro e fogo a padronização do ideal branco. A escala classificatória da miscigenação é descrita por Clóvis Moura (1994, p.150);
“no Brasil o imenso grau de matizes cromáticos formados criou, em contrapartida, uma escala classificatória, considerando-se o indivíduo ou grupo tanto mais valorizado socialmente quanto mais próximo estivesse do idealtipo étnico imposto pelo colonizador inicialmente, e pelas elites de poder em seguida: o branco. Essa dinâmica discriminatória foi acompanhada por uma dinâmica de julgamento social que a completava, pela qual à medida que esse discriminatório se aprofundava e a população diversificava-se cromaticamente, via miscigenação, criava-se, em contrapartida, um julgamento de valor para cada uma dessas diferenças”
O julgamento das pessoas brancas em cima dos corpos negros são heranças do sistema escravista. Ainda hoje a narrativa de que o bom, o ser branco está em contrapartida, do que é ser ruim, ser preto. Assim, perpassa a “dúvida” de narrativas sobre os corpos negros. A proximidade do preto soa como algo ruim, logo, o ideal é aproximar a pessoa do branco, universal, por isso, é muito comum as pessoas se referirem às pessoas negras como morena. Primeiro, essa dúvida só permeia porque as pessoas desconhecem a formação social brasileira, insistem na proclamação do mito da democracia racial, negam o racismo e suas reformulações. Segundo, a pessoa branca é chamada pelo nome marcando a sua existência, já para a pessoa negra essa existência é negada, o que leva a “confusão”, o nome é um marcador de identidade e de existência, a superioridade branca no processo escravista formalizou a inexistência do povo negro como afirma Munanga (1986, p. 09);
convencidos de sua superioridade, os europeus tinham a priori desprezo pelo mundo negro, apesar das riquezas que dele tiraram. A ignorância em relação à história antiga dos negros, as diferenças culturais, os preconceitos étnicos entre duas raças que se confrontam pela primeira vez, tudo isso mais as necessidades econômicas de exploração predispuseram o espírito do europeu a desfigurar completamente a personalidade moral do negro e suas aptidões intelectuais. Negro torna-se, então sinônimo de ser primitivo, inferior, dotado de uma mentalidade pré-logica. E, como o ser humano toma sempre o cuidado de justificar sua conduta, a condição social do negro no mundo moderno criará uma literatura descritiva dos seus pretendidos caracteres menores
A sociedade brasileira é formada por diversas etnias, no entanto é a população negra e indígena que sofre com o apagamento histórico, o racismo estrutural que normatiza as violências. Essas violações perpassam pela negação de ter sua afirmação corpórea negada o tempo todo, a todo tempo. Das inúmeras vezes que apresentei o tema sobre identidade racial em sala de aula com crianças pequenas, a dúvida sobre tonalidade de pele perpassa as crianças negras, aqui utilizo a classificação do IBGE (pretas e pardas) para referir a população negra. As crianças brancas não têm dúvida da sua tonalidade e se auto afirmam como brancas. As crianças negras começam a se questionar, mas que cor eu sou? Ou que tom de pele me vestem?
As ações afirmativas conquistas dos movimentos negros vem reorganizando as universidades brasileiras, os 20 anos da Lei 10.639/03 (Brasil, 2003) é demarcada por avanços significativos, entre eles estão o colorismos das universidades, a qual é possível ver salas de aulas mais negras e indígenas. Essa ocupação apresenta contradições, pois ainda é um espaço colonizador e discriminatório, mas ao mesmo tempo os estudantes vão reformulando conceitos a partir da construção coletiva, estar em “bando” nos bancos universitários criam mecanismos de resistência e permanência (Jesus, 2021).
Outra conquista são as reorganizações dos espaços escolares, antes dominado por professoras e professores brancos, aos poucos esse espaço de poder vem sendo ocupado por professoras e professores negros. O que vem gerando novas formulações nos contextos diários, crianças estão tendo acesso mais permanente com professores que procuram trabalhar diariamente os conteúdos de história de África como prevê a lei. A chegada desses novos atores também reformula a relação histórica entre profissionais e gestão. Cada vez mais, os profissionais negros estão questionando as normativas tradicionais de ensino, denunciando a falta de materiais pedagógicos e de literatura para atender as crianças e suas corporeidades de forma positiva. Os conflitos que permeiam os espaços escolares, vejo como positivo, pois a história vem sendo recontada por atores protagonistas, suas vivências e memórias vem desconfigurando as narrativas e as certezas da consciência formalizada da história oficial.
Não há dúvida que existem muitos caminhos a trilhar, o que podemos afirmar é que os movimentos negros, e as ações afirmativas tem um papel fundamental na construção de uma sociedade mais justa, democrática e igualitária.
Referências
BRASIL. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm > acesso dia 26 de outubro de 2022.
BRASIL. Lei 11.645/08 de 10 de Março de 2008. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. Disponível em:< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm> acesso dia 26 de outubro de 2022.
JESUS, R. E. de. Quem quer (pode) ser negro no Brasil? Belo Horizonte. Autêntica, 2021. (Cultura Negra e Identidade – coordenação Nilma Lino Gomes)
MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo. Ed. Anita, 1994.
MUNANGA, K. Negritude: usos e sentidos. São Paulo. Editora. Ática, 1986.
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