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A magnitude da tragédia argentina

Instagram/Javier Milei

Rejane Hoeveler

Rejane Carolina Hoeveler é historiadora. Mestra e doutora em História Social pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Co-organizadora do livro A onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad, 2016). Atualmente é pós-doutoranda em Serviço Social pela UFAL (Universidade Federal de Alagoas).

“Hoje começa a reconstrução da Argentina para os argentinos de bem”
Javier Milei, discurso de vitória, 19 de novembro de 2023
“Se viene el estalido
Se viene el estallido
De mi guitarra
De tu gobierno también”
Bersuit Vergarabat, “Se viene”/“El estallido”, 1998

O país de Maradona e Messi, das avós da praça de maio e do mate amanhece mais triste nesta manhã de 20 de novembro. Javier Milei ganhou de Sergio Massa nas urnas por uma diferença significativa, de mais de 10 pontos. Nesta manhã, cada mulher, pessoa racializada e LGBT acordou com mais medo, pois sabe que para muitos, essa votação massiva em Milei é um grande “eu autorizo” para a violência política, de gênero e racista. Assim como Bolsonaro, o discurso de vitória de Milei deixa claro que não se promete um governo para todos, mas sim apenas para os “argentinos de bem”.

O “maluco da motosserra”, o sujeito talvez mais anti-argentino de toda História, virou o presidente da Argentina em uma vitória eleitoral acachapante. Como pôde isso acontecer no país das grandes marchas feministas, que conseguiram aprovar o aborto legal seguro e gratuito, no país da Memória, Verdade e Justiça, onde se julgaram e puniu-se os ditadores? Onde existe tradição de movimentos socais pujantes e uma organização relativamente forte em termos sindicais, para parâmetros latino-americanos?

É certo que Sergio Massa não era exatamente um candidato exatamente muito empolgante, pois, tendo vindo de uma trajetória política de dentro do kirchnerismo, rompeu com o mesmo pela direita, e sua plataforma para temas como educação, por exemplo, eram muito ruins. É inegável o elemento da crise, porém, a explicação de que se trata basicamente de um “Voto bronca” impulsionado pela gestão econômica é terrivelmente insuficiente, desconsiderando que há muitos anos a direita tem um projeto, um programa, aparelhos e militância e que a Argentina não é a bola da vez da extrema-direita por acaso. Eduardo Bolsonaro se instalou em Buenos Aires há meses e dava até entrevistas a canais de televisão na Argentina prometendo que Milei garantiria dólares para os argentinos.

É importante lembrar ainda que desde a ditadura de 1976 a profundidade das contrarreformas e desregulações neoliberais nesse país o tornou muito mais vulnerável política, econômica e financeiramente que o Brasil. A Argentina não pode dar nenhum passo sem a vigilância do FMI e os governos que saíram uma vírgula da cartilha mereceram punições exemplares, desde que a democracia de Alfonsín herda a dívida ilegítima e imoral feita sob ditadura. Não casualmente, uma das primeiras mensagens de reconhecimento e felicitação a Milei vem por parte do embaixador norte-americano em Buenos Aires, pois as propostas de Milei são todas alinhadas com os Estados Unidos.

Vejam que curiosidade: na comemoração de Milei, cantava-se “Que se vayan todos”, uma palavra-de-ordem que se tornou massiva nas manifestações durante a crise de 2001, certamente a última grande crise econômica e política na história argentina recente, a qual muitos dos engajados na campanha de Milei não viveram.

Muito simbolicamente também, a música escolhida para ser tocada no “show” da Vitória de Milei, logo após seu discurso: “Se viene” ou “El estallido”, uma conhecida canção de protesto dos anos 1990, composta pela banda de rock Bersuit Vergarabat em 1998, com críticas à ostentação e a corrupção do menemismo (a quem Milei admira e reivindica!) – lembrando tanto a apropriação de canções do rock brasileiro pelo bolsonarismo, como mostrou o crítico e historiador Romulo Mattos.

A eleição argentina de 2023 coloca uma espécie de corte epistemológico na sociedade: a partir de agora, oficialmente, “o mercado” será a fonte de todo o conhecimento, a razão e a solução. O “antissistema” é, na verdade, a quintessência do capitalismo. A mesma ruptura político-psíquica que ocorreu no Brasil durante a ascensão do bolsonarismo e dos quatro anos de governo Bolsonaro.

Além de um misógino e homofóbico violento, Milei é uma espécie de Ricardo Salles abilolado, um negacionista climático em tempos de catástrofe ambiental capitalista, em um país já extremamente afetado pelas mudanças climáticas. Mas o mercado vai regular tudo, inclusive quem morre primeiro e quem morre depois. Quem morre em paz e quem morre lenta e cruelmente, como as crianças de Gaza nesse momento.

Vence um grande “que venha a catástrofe”, “que se exploda”. A antipolítica ativa através dos partidos digitais se tornou uma força política irresistível e irrefreável. Se é necessária e correta a crítica aos governos de conciliação de classe, como os kirchneristas, incluindo o de Fernández, também não é possível explicar o fenômeno Milei sem considerar o cancelamento jurídico e político de Cristina Kirchner, que era a cabeça do núcleo duro do peronismo e que era última figura no país que fazia política de massas no sentido afirmativo da política. O lamentável discurso de Massa afirmando que está tudo bem pois a democracia argentina é institucionalmente consolidada traz aos brasileiros mais incômodos déjà vus

Há que destacar pelo menos três componentes da ideologia vencedora nas eleições e que demonstra a profundidade do abismo ideológico no qual mergulharam os argentinos nos últimos tempos. Primeiro: foi eleito um candidato que prometeu atacar a educação e a saúde públicas (diferentemente dos neoliberais dos anos 1980 e 1990, onde se planejava esse ataque, mas não se fazia disso promessa política); portanto, um conteúdo abertamente antipopular. Segundo: um discurso fortemente antiperonista, o que é histórico para a Argentina pois até mesmo Mauricio Macri, para ganhar as eleições em 2015, se declarou peronista. E em terceiro lugar, é um candidato que ganha as eleições desprezando o próprio sistema democrático, desde o momento em que ele entende que a Argentina desde o início século XX “é socialista” e portanto, em sua visão, antidemocrática.

Nos próximos dias, serão anunciados os membros do governo, os ministeriáveis, e provavelmente Milei buscará comprar toda a parte negociável das direitas, as quais majoritariamente já haviam aderido ao mileísmo no dia seguinte do primeiro turno. Milei provavelmente oferecerá algum cargo importante a Mauricio Macri e a alguns quadros mais importantes do Juntos por el Cambio, buscando com isso ter alguma base sólida no Parlamento. A mídia hegemônica e os partidos de direita dirão que é possível “domar a fera”, tal como diziam alguns “liberais” sobre Bolsonaro.

Provavelmente o gabinete de Milei terá sua cara: será composto por homens brancos ricos, com no máximo algumas mulheres brancas ricas. É possível que se forme uma aliança empresarial-militar que fique constantemente ameaçando com golpismos. É provável que a fração dominante no governo seja a dos interesses dos capitais financeiros de origem no Norte global.

Quanto de sua plataforma “liberal-libertária”, como o próprio Milei classifica, será de fato aplicada? Em que velocidade? Seguramente haverá resistência e um alto custo político. Do modo como foi defendida, incluindo venda de órgãos por exemplo, ou a dolarização com extinção do Banco Central, dificilmente será implementada, mas o maximalismo mileísta tem por isso mesmo uma funcionalidade: mesmo que recue bastante, seu programa ainda será extremamente perverso.

A depender do quão abruptas serão essas mudanças, os trabalhadores argentinos sofrerão problemas bem maiores que o da inflação, sem que esta seja eliminada, em curto prazo.

Em um cenário no qual sejam mobilizadas pelo governo forças reacionárias e protofascistas ou mesmo neofascistas, é possível esperar enfrentamentos nas ruas entre civis, além do recrudescimento da repressão policial, ampliação do poder milita e da coerção em suas múltiplas formas. A depender do quão abruptas serão essas mudanças, os trabalhadores argentinos sofrerão problemas bem maiores que o da inflação, sem que esta seja eliminada, em curto prazo.

Quanto podem crescer organicamente, com Milei no poder, as organizações ultradireitistas? Milei será uma espécie de “anti-Presidente” como foi Bolsonaro, criticando a “casta” e a “classe política” como se não estivesse no Poder, fazendo a sua própria auto-oposição e curto-circuitando o debate político nacional permanentemente? Se ele aprendeu bem com os Bolsonaros, pode inclusive se manter no poder estavelmente e por tempo razoável, a despeito do aprofundamento da crise. De todos os modos, ainda estamos longe de apreender a magnitude da tragédia argentina.