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MUNDO

Milei: uma ameaça fascista?

A maioria da esquerda socialista optou pela abstenção na segundo turno das eleições deste domingo na Argentina, argumentando que Javier Milei não é a expressão de um movimento fascista. Mas isso não é razão suficiente para evitar a tarefa de enfrentar a extrema-direita.

Martin Mosquera, do portal Jacobin America Latina. Tradução de Gabriel Dayoub, do Esquerda Online.
Instagram/Javier Milei

A Argentina vive dias de tensão política extrema. Em todos os locais de trabalho, famílias ou grupos de amigos há debate e apreensão. Percebe-se a angústia e a ansiedade nas ruas. Enquanto isso, a esquerda marxista é atravessada por uma polêmica que oculta sua própria “crise de representação”: o eleitor de esquerda está em choque, porque a maioria dos partidos trotskistas, agrupados na Frente de Esquerda – Unidade (FITU), decidiu pela neutralidade no segundo turno que pode alçar a extrema direita à direção das instituições do Estado.

As pessoas comuns, por outro lado, parecem entender bem o que está em jogo. Já no primeiro turno, em 22 de outubro, vimos uma reação defensiva da classe trabalhadora, que se expressou na recuperação do peronismo e no estancamento de Milei. Agora, está em movimento uma reação militante da sociedade civil: pessoas entrando no transporte público para explicar o perigo representado por Milei. Em vários lugares há cartazes escritos à mão colados nas paredes, mesas improvisadas nas ruas, pequenas concentrações e manifestações.

Há alguns dias assistimos a um intenso movimento de massas, majoritariamente espontâneo e micropolítico. Uma campanha eleitoral popular improvisada. Apesar disso, a maioria da esquerda marxista mantém-se alheia a essa mobilização e se coloca equidistante no grande combate político em curso. O centro do argumento da FITU é que MIlei não é um fascista. Analisemos essa questão.

Extrema direita e fascismo: uma problemática global

O debate sobre o fascismo voltou ao centro das polêmicas internacionais como consequência do crescimento da extrema direita em todo o mundo. O caso argentino não é exceção.

A discussão em torno do fascismo pode, às vezes, atrapalhar a análise da extrema direita contemporânea. É fácil, por um lado, observar uma inflação indiscriminada do termo. Parece haver certa pobreza intelectual entre aqueles que não podem ver na extrema direita atual mais que uma simples repetição de um fenômeno político que se relaciona muito com as particularidades excepcionais do entreguerras: a decomposição do monopólio estatal da violência, a brutalização das sociedades em consequência da guerra, a depressão econômica, a crise da democracia liberal, a ameaça revolucionária da classe trabalhadora.

Muitos aspectos do fascismo clássico não se repetem em nenhum movimento atual: Estados totalitário-corporativos, partidos de massas como o Partido Nacional-Socialista Alemão, grupos paramilitares como os Camisas Negras italianos ou as SA alemãs. Essas diferenças são evidentes. Nenhum analista sério propõe uma transposição mecânica desse tipo. Daí os novos termos que procuram captar similaridades e diferenças com o entreguerras: neofascismo, pós-fascismo, direita radical, etc.

Por outro lado, há um erro oposto: remeter às diferenças com os regimes de Mussolini e Hitler para rechaçar qualquer comparação e vigência desse fenômeno político. Esse erro simétrico compartilha com a posição anterior a ideia implícita de que a análise do fascismo clássico só tem utilidade no caso de uma simples repetição. Na minha opinião, as décadas de 1920 e 1930 configuram um precedente único de movimentos de massas reacionários que atuaram tanto dentro quanto fora das instituições constitucionais. Contamos com uma grande quantidade de estudos teóricos e lições estratégicas sobre esse tema. Seria, portanto, “preguiçoso”, como escreveu Ugo Palheta, “privar-se desse estudo comparativo”.

Mas, ainda mais importante, é ver este assunto do ponto de vista de sua consequência prática e estratégica: se nos atemos ao fascismo dos anos 1930 como parâmetro para medir uma ameaça aos direitos democráticos, colocamos o sarrafo alto demais. Assim, desarmamos a esquerda para enfrentar as ameaças reais e atuais às liberdades democráticas.

O que foi o fascismo?

O fascismo clássico consistiu num tipo particular de reação autoritária. Em um artigo anterior, afirmamos que “se diferencia de outros movimentos reacionários ou autoritários por vestir a roupagem da rebelião (contra os políticos, o sistema financeiro, as elites, etc.), o que permite capitalizar as frustrações sociais de vários tipos (contra a economia, contra as normas culturais repressivas)”. O fascismo teria a capacidade de juntar uma política reacionária com um movimento de massas. Provocou, assim, uma “contrarrevolução desde baixo” que consistiu, ao fim, em impulsionar o choque físico entre setores da população, em momentos onde a autoridade e a capacidade repressiva do Estado estavam notavelmente debilitadas. O fascismo, afirmou Hannah Arendt, foi “a aliança temporal entre a ralé e a elite”.

Essa diferença com outros movimentos autoritários foi notada pelos mais lúcidos analistas marxistas contemporâneos ao fascismo histórico. Togliatti o definiu como um “regime reacionário de massas”, observando a grande mobilização de massas que acompanha seu ascenso e assume a forma de uma “rebelião plebeia” contra as “elites”. Trotsky escreveu que “na época de declínio da sociedade burguesa (…) a burguesia necessita novamente de uma maneira ‘plebeia’ de solucionar as suas tarefas.

De fato, o fascismo considerava a si mesmo como uma “revolução contra a revolução”: uma “mobilização total da sociedade”, sobretudo da pequena burguesia empobrecida pela crise econômica, para evitar a mobilização revolucionária da classe trabalhadora. Por essas peculiaridades, o fascismo se diferencia de outros movimentos autoritários, como as ditaduras militares.

Uma segunda característica muito distintiva do fascismo – e que tem sido objeto de crescente estudo nas últimas décadas – é a enorme autonomia política e estatal que foi capaz de desenvolver. A teoria que considerava o fascismo como um instrumento do grande capital contra a revolução proletária, que foi a doutrina oficial da Internacional Comunista estalinizada, tem sido objeto de rechaço por quase toda a literatura acadêmica posterior. Mas poderíamos dizer que foi também parcialmente rechaçada pelos marxistas mais lúcidos do entreguerras, que já identificavam essa autonomia como um fator central: Guerin, Trotsky, Gramsci, Togliatti, Bauer, Tasca, Rosenberg. Nesse sentido, Trotsky escreveu:

A burguesia em declínio é incapaz de se manter no poder pelos meios e métodos do Estado parlamentar que criou. (…) Entretanto, a burguesia, prudentemente, não vê também com bons olhos a maneira fascista de resolver os seus problemas, pois os abalos, embora provocados no interesse da sociedade burguesa, são, ao mesmo tempo, perigosos. Daí a contradição entre o fascismo e os partidos burgueses tradicionais.

Ainda assim, apesar da agudeza das análises e intuições, nenhum deles conseguiu superar por completo a concepção instrumental. Isso é consequência, em última instância, da concepção instrumental do Estado que foi amplamente hegemônica no marxismo. Somente nos anos 1970 houve um debate teórico que logrou avançar significativamente a teoria marxista do Estado e permitiu romper com as rudimentares concepções instrumentalistas. Um dos objetos de estudo prediletos para comprovar essa autonomia foi justamente o fascismo.

Nicos Poulantzas, um dos protagonistas desta renovação da teoria do Estado, dedicou-se em Fascismo e ditadura a examinar a postura da III Internacional frente ao fascismo. Nessa obra, questionou tanto a perspectiva instrumentalista e economicista, quanto a política ultra-esquerdista, derivada dessa concepção. Ou seja, a política do chamado “terceiro período” ou de “classe contra classe”, que colocava um sinal de igual entre reformistas e fascistas e rechaçava alianças defensivas. Poulantzas destacou a autonomia política dos movimentos fascistas, mostrando suas contradições com o “capital monopolista”, de que supostamente seriam instrumentos.

Ernesto Laclau, participando do mesmo debate, foi na mesma direção em seu ótimo “Fascismo e ideologia”. Relativizando o argumento batido do financiamento de bandos fascistas pelos capitalistas, o que supostamente provaria que eles eram a “fórmula preferida do grande capital”, escreve:

O capital monopolista manteve políticas alternativas até o último momento: na Alemanha, a conjunção operada pela intermediação de Schacht ocorreu tardiamente, quando o nazismo havia conseguido se constituir por seus próprios meios em alternativa de poder. Na Itália, os setores industriais pensaram até a véspera da marcha sobre Roma em uma solução política através de Orlando, Giololitti ou, principalmente, Salandra, com os fascistas ocupando somente uma posição subordinada.

Ao contrário do que sugere a teoria convencional, entre o fascismo e as classes dominantes não houve uma relação instrumental, mas um processo de adaptação e limitação mútua. A burguesia sempre prefere, em primeiro lugar, alguma forma de regime pluralista, tipicamente uma república parlamentar, onde pode exercer uma influência decisiva no sistema político sem depender da liderança pessoal de um caudilho, nem assumir riscos excessivos. Ainda assim, em situações críticas, o grande capital tende a adaptar-se e tirar proveito dos benefícios que pode oferecer um regime de exceção autoritário, ao mesmo tempo que busca controlar seus excessos e evitar riscos desnecessários.

Por último, é importante destacar um terceiro ponto. O fascismo nunca foi implementado abruptamente, mas como resultado de um processo e uma dinâmica política que se desenvolveram ao longo de um período considerável. ou seja, a implementação do fascismo sempre implica um processo de fascistização, que atravessa necessariamente mediações, transações, saltos e rupturas. O fascismo não se adota de um dia para o outro porque não é um botão que a burguesia aperta em situações de crise, como parece crer a teoria instrumental. O fascismo não foi um instrumento, nem um epifenômeno das necessidades do capital, mas o produto de um processo complexo e autônomo, no qual confluíram questões ideológicas, dinâmicas políticas e até acidentes inesperados.

Essa dimensão processual também permite perceber a diferença entre uma corrente fascista e um regime político fascista. Uma corrente política fascista tem o objetivo de avançar para um regime político autoritário, mas seu acesso ao poder estatal não significa que consiga necessariamente fazê-lo. Transitar do acesso ao governo até a mudança de regime requer choques, saltos e rupturas, cujos resultados não podem ser definidos de antemão. Também por isso qualquer fascistização de um regime político é um processo mais ou menos prolongado, não um ato imediato.

Ter isso em conta serve para evitar caracterizações sumárias e definitivas da extrema direita atual. Sua natureza não é algo acabado, mas instável, em disputa e, em última análise, produto de uma luta política. Se a extrema direita não conseguiu fascistizar-se é, em boa medida, por uma conquista política. O fracasso de Bolsonaro é ilustrativo: uma corrente neofascista ascendeu ao governo, mas acabou bloqueada pela resposta defensiva unitária da esquerda e da classe trabalhadora.

Trotsky (sem ismos)

A reação dos partidos comunistas dos anos 1930 ao perigo fascista conduziu, nas palavras de Trotsky, à “página mais trágica da história moderna”: o ascenso de Hitler, com escassa resistência no país com a maior, melhor organizada, mais culta e politizada classe trabalhadora da Europa. A política estalinista colocou um sinal de igual entre fascismo e social-democracia (“social-fascismo”) e opôs-se a qualquer aliança defensiva do conjunto da classe trabalhadora frente à ameaça reacionária. Também caracterizou o futuro governo nacional-socialista como um pequeno interlúdio que precederia a revolução proletária (“depois de Hitler, nossa vez”).

Poucas vozes da esquerda marxista se opuseram à política criminosa do estalinismo. Entre elas, destacam-se duas que desenvolveram esforços paralelos, mas desconectados pela solidão e isolamento: Antonio Gramsci, escrevendo do cárcere fascista, e Leon Trotsky, desde a ilha turca para onde Stálin o havia expulsado. Nas palavras de Perry Anderson, os escritos de Trotsky sobre o fascismo “não têm paralelo nos anais do materialismo histórico” e “constituem a única análise direta e elaborada de um Estado capitalista moderno em todo o marxismo clássico”. Qualquer um que tenha se dedicado a explorar as análises, advertências, prognósticos e indicações políticas de Trotsky naquele período não pode deixar de surpreender-se pela agudeza de suas interpretações e precisão de suas previsões. Um patrimônio teórico excepcional que, no entanto, não parece ser valorizado por boa parte das correntes que reivindicam seu legado.

É difícil resumir em poucas linhas o enfoque de Trotsky. Destacamos que dedicou máximo esforço para combater, ao mesmo tempo, a política ultra-esquerdista estalinismo (igualdade entre fascismo e reformismo) e a conciliação de classes da social-democracia. Contrapôs a eles a tática da “Frente única” que a Internacional Comunista havia elaborado nos anos 1920 e diferenciou tanto a social-democracia do fascismo, como as distintas opções burguesas umas das outras. Dali as famosas frases sobre Brüning e Hitler, que serão repetidas várias vezes:

Nós, marxistas, consideramos Brüning, Hitler e Braun como os diversos elementos do mesmo sistema. A pergunta: Qual deles é o menor mal? Não tem nenhum sentido, porque o sistema que combatemos tem necessidade de todos esses elementos. Mas esses elementos acham-se agora em conflito, e o partido do proletariado deve utilizar esse conflito no interesse da Revolução.

E acrescenta:

Uma escala compreende sete notas. A pergunta: Qual dessas notas é a “melhor”: dó, ré ou sol? É uma pergunta desprovida de sentido. O músico, porém, deve saber quando e em que tecla bater. Compreenderam? Para uma compreensão limitada daremos ainda um exemplo: Se um inimigo me faz engolir diariamente pequenas porções de veneno, e se outro quiser, num beco, atirar contra mim, derrubarei primeiro o revólver das mãos deste segundo inimigo, porque isso me dará possibilidade de acabar com o primeiro. Isto, entretanto, não quer dizer que o veneno seja “menor mal” em comparação com o revólver. (…) Na verdade, é penoso explicar-se este ABC. É mau, é muito mau quando músicos como Remmele, em lugar de distinguir as notas, batem no teclado com as patas.

É certo que isso não implicou no apoio eleitoral de Trotsky a Brüning. Esse foi um dos poucos argumentos que utilizou Juan Dal Maso, do Partido de los Trabajadores Socialistas (PTS), em uma resposta a meu artigo sobre a irrupção de Milei e a tática que deveria seguir a esquerda. Seu curto texto segue a típica combinação de fugir do núcleo do debate e recorrer a desqualificações pessoais, característica distintiva do que poderíamos denominar de literatura sectária. É verdade que Trotsky não apoiava Brüning, mas é necessário compreender todo o seu raciocínio para reconstruir seu sentido preciso. Trotsky questionava a social-democracia por apoiar eleitoral e politicamente o governo Brüning, prevendo que a situação evoluiria para uma polarização. Segundo sua análise, essa polarização desembocaria em uma ofensiva revolucionária, o que só seria possível através da ação unificada da classe trabalhadora (comunista e social-democrata), ou ao contrário, na vitória do fascismo.

Nesse quadro, o governo Brüning só poderia ser efêmero. Apoiá-lo significava participar da ilusão de que servia como bloqueio ao fascismo, quando a verdadeira forma de enfrentá-lo era liberar a força da classe trabalhadora unificada que apenas poderia surgir de uma ação combinada de comunistas e social-democratas.

O que é importante para nosso debate? Trotsky em nenhum momento identifica um apoio eleitoral com subordinação política. Não é essa a consequência de seu rechaço a apoiar Brüning; Para entender sua opção tática é necessário compreender o conjunto de sua avaliação da situação, independentemente de ter sido correta ou não. De sua diferenciação entre Brüning e Hitler depreende-se que Trotsky compreende perfeitamente a diferença entre um regime político fascista e outras formas de dominação burguesa (ainda que, recordemos, considerasse o governo Brüning como uma “ditadura burocrática”). Quando distinguimos, em nossa própria conjuntura, as “pequenas doses de veneno” do “revóvler”, chamando a votar contra a extrema direita, Dal Maso responde que isso seria equivalente a chamar a votar em Brüning. Na verdade, o autor é incapaz de dar um sentido concreto à distinção proposta por Trotsky.

O revolucionário russo entendia perfeitamente tanto a importância de uma eleição presidencial e quanto que o voto não implica subordinação política. Como exemplo disso, basta fazer referência, como apontou Rolando Astarita recentemente, ao fato de que Trotsky não defendeu o voto em branco ou a abstenção diante da Frente Popular espanhola, em 1936 (que não se enfrentava com o fascismo, que só apareceria depois, com o golpe de Franco, mas com a direita tradicional!). Também em 1936 Trotsky questionou o Partido Trabalhista Independente por negar o apoio eleitoral ao trabalhismo contra os conservadores (como anos antes Lenin já havia recomendado ao jovem Partido Comunista Britânico).

Se não é fascismo… o que é?

Esses exemplos nos levam ao coração de nossa polêmica. Discutiremos mais abaixo a relação entre Milei e o fascismo. Mas não é necessário ir tão longe. A pergunta central é mais elementar: somente se recorre à sugestão de Trotsky sobre a frente única ou, mais genericamente, às políticas unitárias defensivas, quando estamos frente a uma ameaça fascista? O que fazemos quando nos enfrentamos contra ditaduras militares? Ou fenômenos como o fujimorismo (ou outros parecidos, como Bukele ou Erdogan), que chegaram ao governo por via legal e transformaram o regime político por dentro, mantendo a aparência exterior da democracia constitucional? E em casos menos drásticos, onde não houve mudança de regime, mas um endurecimento autoritário que implicou numa derrota histórica à classe trabalhadora, como no caso do thatcherismo? Serve de algo dizer que “não se trata de fascismo”? A pergunta é retórica.

O uso da coerção física, o estrangulamento das liberdades democráticas, o endurecimento autoritário dos Estados não dependem necessariamente da implantação de um regime fascista ou sequer de uma mudança de regime. Isso é óbvio. A violência é, evidentemente, um recurso permanente da dominação de classe. E sua intensificação para lograr infringir uma derrota de longo prazo ao proletariado pode tomar todo o tipo de formas, o que implica numa série de opções intermediárias, num espectro que vai desde o endurecimento autoritário da democracia liberal até um regime fascista. Trataremos todas as formas de autoritarismo de como algo rotineiro até que apareça o fascismo com todas as características do entreguerras?

Vejamos como outro militante do PTS, Fernando Rosso, tentou defender esse ponto. Em texto recente, Rosso cita Palmiro Togliatti:

Em primeiro lugar, quero examinar o erro generalizante que se comete normalmente ao se utilizar o termo “fascismo”. É comum que se designe com essa palavra toda a forma de reação. Quando um companheiro é preso, quando uma manifestação operária é brutalmente reprimida pela polícia (…) em toda a ocasião, em suma, em que são atacadas ou violadas as chamadas liberdades democráticas consagradas pelas constituições burguesas, ouvimos as pessoas gritarem: “isso é fascismo! Estamos em pleno fascismo!” (…) Não consigo entender que vantagem podemos ter nisso, a não ser, talvez, no terreno da agitação. Mas a realidade é outra. O fascismo é uma forma particular, específica da reação; e é necessário compreender perfeitamente em que consiste sua particularidade.

Assim como no caso da referência ao “equilíbrio hegemônico” de Gramsci, que discutimos em outro artigo, Rosso não se dá conta das consequências do raciocínio que mobiliza. Se o fascismo é apenas uma forma de reação, somente uma maneira de serem “violadas as chamadas liberdades democráticas”, porque reservamos as políticas unitárias defensivas somente para essa forma? O que fazemos em todos os outros casos? A frente única é válida para o enfrentamento ao fascismo. E se estivermos contra outra variante de ultra-direta?

No que diz respeito aos clássicos, particularmente a Trotsky, é mais simples e proveitoso tentar compreender a forma de raciocinar, ao invés de buscar interpretações literais dos escritos do passado. Quando se estuda de maneira escolástica, prioriza-se a letra em detrimento do raciocínio. Esse procedimento, finalmente, impede o entendimento tanto do espírito quanto da letra. Trotsky escreve em meio ao enfrentamento a uma forma específica de reação que foi o fascismo. Opõe a ela uma política de aliança defensiva com o reformismo. Para que não se tenha uma imagem romantizada da social-democracia dessa época, recordemos como Trotsky a definia: “apesar de sua composição operária, é inteiramente um partido burguês que, em condições ‘normais’, é dirigido habilmente do ponto de vista dos objetivos burgueses”. Era o partido de Noske e Grzesinsky, responsável poucos anos antes pelos assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Trotsky escreve sobre o fascismo, mas isso não significa que o campo de aplicação de seus raciocínios necessita que se personifiquem diante de nossos olhos Hitler, Hilferding e Thaelmann. São construções úteis, na medida em que compreendamos seu raciocínio e método e sempre e quando evitemos analogias demasiado rápidas.

A subestimação do momento político-eleitoral

Vamos ao ponto seguinte do argumento de nossos polemistas. O PTS afirma, sem ambiguidade, que Milei representa um projeto “hiperreacionário”. E o que está disposto a fazer para evitá-lo? Aqui aparece outro argumento central: a ideia de que a extrema direita se combate nas ruas e não nas urnas. A algumas horas de que as urnas indiquem se a extrema direita governará um dos principais países da região, essa colocação parece extravagante. Mas tentemos levá-lo a sério e seguir a lógica de sua argumentação.

Em todas as suas declarações, o PTS afirma algo que pode ser resumido no que escreveu Guillermo Pistonesi: “com marxistas, entendemos que as mudanças revolucionárias e a eventual contrarrevolução somente podem ser definidas através da luta de classes aberta e não com uma eleição”. Essa afirmação combina uma obviedade com uma ideia ridícula. É óbvio que para o marxismo revolucionário a luta de classes é a força última que resolve os grandes eventos políticos. Mas isso significa que uma eleição presidencial em que pode ascender ao poder a extrema direita é irrelevante? Um resultado desse tipo não incide de nenhuma maneira na luta de classes? Pistonesi encontra algum antecedente na amplíssima literatura marxista para uma afirmação tão estranha? Não se deduzem da literatura marxista posições que ignorem resultados eleitorais, ao menos não da tradição que remente a Lenin e Trotsky. Esse enfoque parece mais próximo ao dos autonomistas, anarquistas ou, dentro do marxismo, ao da exótica e longínqua tradição bordiguista.

Essa ideia não parece ter sido um improviso ou deslize. Em texto recente de Gabriela Listz e Matías Maiello, o PTS descreve sua compreensão da tática de frente única. Não quero abusar das citações. Da leitura do artigo, depreende-se claramente que a frente única para esses autores se reduz à luta de rua e, mais especificamente, aos choque físicos com os bandos fascistas. Ou seja, para o PTS a frente única não se estende à arena eleitoral. Por isso, contrapõem permanentemente a luta de classes às eleições (cabe a pergunta: o PTS não está levando a luta de classes às eleições quando intervém nesse terreno?). Em outras palavras, em um exercício mental, caso houvesse um segundo turno em 1933 entre o Partido Social-Democrata Alemão e o Partido Nazista, o PTS teria defendido o voto em branco, já que qualquer outra opção implicaria na subordinação política à social-democracia. E, ao mesmo tempo, teria chamado o SPD a ações comuns contra a ameaça física que representava o nazismo.

Houve certo entusiasmo no “povo de esquerda” quando Myriam Bergman afirmou em uma entrevista no rádio que “Massa e Milei não são a mesma coisa”. O PTS repete essa frase em todos os seus documentos. No entanto, distinguir entre ambos, mas não extrair as lições políticas dessa distinção é entrar no terreno da trivialidade: nada é igual a nada, como demonstrou a metafísica de Leibniz no século XVII. Ao fim e ao cabo, não muda muita coisa. É uma forma de não se envolver na luta contra a extrema direita. Ou, para utilizar a expressão de Trotsky, de “capitular sem luta”.

Milei é um fascista?

Como tentamos demonstrar, não é necessário que Milei represente uma ameaça fascista para que se oponha a ele uma política unitária defensiva. Basta que represente uma resposta reacionária, tatcherista e autoritária à crise argentina. Milei expressa a hipótese de uma potencial evolução para uma forma de bonapartismo autoritária dentro da democracia liberal, com o objetivo de facilitar a implementação de uma terapia de choque neoliberal. Isso deveria ser suficiente para saber como se orientar. Dito isso, qual é a relação entre Milei e o fascismo? Destaco alguns aspectos de Milei – e, em alguns casos, da extrema direita global – que apresentam relação com o fascismo clássico e são relevantes politicamente.

O caráter crescentemente popular e de mobilização social da extrema direita global apresenta uma simetria significativa com o período entreguerras. Antigos bastiões operários começaram a girar para posições desse tipo, como o apoio de Trump no cinturão da ferrugem norte-americano ou a penetração de Le Pen no norte desindustrializado da França. Trata-se de expressões da ruptura das relações entre as classes populares e suas representações políticas tradicionais.

É verdade que o fascismo clássico se baseou principalmente na pequena burguesia mas numa pequena burguesia “plebeia”, arruinada economicamente pela crise. Um pequeno burguês tradicional se dedica a fazer dinheiro com sua profissão liberal ou pequeno comércio, não a bandos paramilitares. Além disso, o fascismo agrupava setores populares originários de diversas categorias sociológicas, consolidando uma base popular mobilizada de apoio.

Popular e exaltada, essa base permite à extrema direita mostrar uma capacidade crescente de mobilização social. É claro que não há grupos paramilitares nesse momento, mas existe um poder de mobilização cada vez maior, politização de massas e capacidade de tomar iniciativas, em muitos casos violentas. Isso se traduz na organização de estruturas militantes que pressionam o sistema político (como vimos nas invasões do Capitólio e de Brasília). Essa base popular de combate é uma força adicional que a extrema direita pode utilizar em sua competição com a direita tradicional.

Na Argentina, a capacidade militante de Milei é inferior à do bolsonarismo ou do trumpismo. Mas durante a campanha eleitoral, ainda mais quando se sentiram seguros pelo resultado eleitoral e o auge reacionário, já testemunhamos usa capacidade para encorajar pequenos grupos neofascistas, que começam a realizar pequenos atentados contra símbolos de direitos humanos ou suas organizações, criando um clima de intimidação contra a esquerda que antecipa o que está por vir. Alguém pode duvidar por um minuto que essa intimidação se multiplicaria por dez se a extrema direita viesse a controlar o poder estatal, como ocorreu com Trump e Bolsonaro? É preciso ser cego para negá-lo. Portanto, uma radicalização de grupos extraparlamentares não pode ser descartada no caso da vitória de Milei.

Não é difícil perceber que entre a direita, a extrema direita e o fascismo não há fronteiras rígidas ou estáveis. Como afirma Alex Callinicos, “o mais importante não é determinar que etiqueta colocar em formações concretas, mas entender a extrema direita contemporânea como um campo de forças dinâmico que muda rapidamente”.

A radicalização autoritária é uma das hipóteses. Há também a possibilidade oposta, ou seja, que esses movimentos entrem em um processo de normalização burguesa, adaptando-se às lógicas convencionais da política e convertendo-se em uma versão ligeiramente mais dura da direita tradicional. O resultado está aberto. E nós não somos observadores da situação, mas agentes ativos. Devemos combater a extrema direita para impedir uma radicalização autoritária que, caso ascenda ao poder, pode dar um salto qualitativo. Isso vale também para Milei.

A autonomia da política e do Estado que caracterizou o fascismo clássico é outro aspecto que vale a pena retomar. Assim como no segundo turno de Le Pen, em 2002, ou no ascenso de Trump, em 2016, o centro do poder econômico parece rechaçar a candidatura de Javier Milei. No entanto, a atitude do empresariado e do imperialismo é mais ambígua do que parecia inicialmente, em especial desde que se costurou o acordo com Macri e um setor de seu partido Propuesta Republicana (PRO). O movimento foi antecipado pela The Economist, tribuna internacional onde as classes dominantes dialogam com si mesmas. Em uma de suas últimas edições, a revista reivindicou, em seu artigo de capa, uma coalizão da direita e da extrema direita na Argentina.

Além disso, se Biden apoia Massa, Trump, com altas chances de ganhar as próximas eleições norte-americanas, apoia Milei. Mesmo assim, é verdade que o centro do poder econômico ainda vê Milei como uma aventura perigosa. Há alguns setores de esquerda que se entusiasmam demais com essa desconfiança (ou que tomaram esse aspecto como critério definitivo para sua localização tática: ver os pronunciamentos do Partido Obrero). Seria interessante que revisitassem a história dos anos 1920 e 1930. Ou que recordassem o alerta de Trotsky num texto maliciosamente chamado de “Aprendam a pensar: uma sugestão amistosa a certos ultraesquerdistas”: “A política do proletariado de modo algum deriva automaticamente da política da burguesia, colocando apenas o sinal contrário (isso faria de cada sectário um estrategista genial)”.

Isso não significa que Milei represente, neste momento, uma ameaça fascista. Mas sua vitória será um passo adiante em um processo de radicalização autoritária do Estado, com destino incerto. Não é fascista, mas tampouco representa um partido burguês convencional. E isso justifica uma tática que responda a uma situação excepcional.

Digressão: democracia contra capitalismo

Independentemente do resultado das eleições argentinas, a esquerda deve enfrentar-se com um debate de longo prazo: qual é sua relação com as conquistas democráticas do período anterior e, de maneira mais ampla, com as instituições da democracia liberal? Esse não é um exercício meramente acadêmico. O ciclo histórico atual fornece muitos sinais de que avançamos para um endurecimento autoritário dos Estados. No fim da década de 1970, Poulantzas cunhou o termo “estatismo autoritário” para descrever a hipótese da emergência de uma distorção autoritária dentro do regime democrático-liberal. Essa distorção não se apresentaria como um “regime de exceção”, mas como um regime político “normal”, que se basearia em “um declínio radical das instituições da democracia política e com uma redução draconiana e multiforme das chamadas liberdades” formais. Essa hipótese está colocada para o futuro e o ascenso global da extrema direita é um de seus sinais.

A queda do chamado “campo socialista” no fim do século XX deixou a esquerda órfã de alternativas consideradas socialmente viáveis. Muito se escreve sobre a necessidade de que a esquerda recupere uma dimensão de futuro. Sobre essa ausência de horizonte, a extrema direita avança em setores populares. Em outras palavras, prevalecem saídas individualistas e desesperadas para a crise. Reconstruir a hipótese de uma sociedade superior ao capitalismo é uma tarefa estratégica de longo prazo. Mas, para fazê-lo, devemos deixar de pensar que o socialismo é um “mais além absoluto”, do qual só podemos nos aproximar através de um exercício de imaginação utópica.

Uma sociedade despojada da dominação de classe existe embrionariamente no presente, fundamentalmente como produto das lutas populares que conquistaram direitos e reformas. A relação entre o arcaico e o novo é mais complexa e útil que um exercício sonhático. Imaginar uma nova sociedade começa pela ideia conservadora de preservar o que vale a pena ser conservado: as liberdades democráticas contra a evolução cada vez mais autoritária do capitalismo, os direitos sociais contra a ofensiva burguesa, a planificação por fora do mercado de setores da economia, como a saúde pública, contra a sanha privatizadora.

Em cada conquista popular, respira custosamente uma futura sociedade possível. Do afã defensivo de preservação de conquistas surgirão as lutas ofensivas por uma nova sociedade (esse enfoque, obviamente, opõe-se pelo vértice à concepção que se extrai do livro A democracia fracassou, publicado por Gabriel Solano, principal dirigente do Partido Obrero).

Em A noite dos proletários, Jacques Ranciere descreve o horizonte de expectativas da classe trabalhadora do século XIX: uma “vanguarda operária que pensa e atua não para preparar um futuro em que os proletários recorram ao legado de uma grande indústria capitalista formada pela despossessão de seu trabalho e inteligência, mas para deter o mecanismo dessa despossessão”. Ou seja, as lutas operárias do fim do século XIX não extraíam sua força da dimensão utópica do socialismo, mas a defesa das identidades e das formas de trabalho que estavam sendo erradicadas pela expansão avassaladora da exploração capitalista (fundamentalmente, do trabalho artesanal). Dessas lutas, inicialmente defensivas, que ansiavam por um mundo que não voltaria, o do produtor autônomo artesanal, surgiu a união entre o movimento operário e o socialismo.

Na relação entre capitalismo, democracia e socialismo, talvez devêssemos conceber uma dialética similar: somente a luta anticapitalista pode defender as conquistas civilizatórias do nosso do nosso tempo (estado de direito, liberdades civis, direitos políticos, pluralismo) da ameaça que significa a evolução autoritária do capitalismo.

A passividade mais covarde

Voltemos à nossa conjuntura. Enfrentaremos uma eleição presidencial decisiva, tanto para a Argentina como para a região. A grande novidade do último período eleitoral foi a aparição de um grande movimento social democrático, sob a forma de pequenas ações descentralizadas de campanha. Essa efervescência é um ponto de apoio para as lutas que virão, seja qual for o resultado eleitoral. Permite o reencontro com a ação coletiva, com a confiança e nossas próprias forças, com as reservas sociais e democráticas que caracterizam a sociedade argentina, para além da degradação da situação durante os últimos anos. A ausência da maioria dos partidos da Frente de Esquerda dessa mobilização é um erro estratégico enorme.

Rubén Sobrero é o dirigente sindical mais importante da FITU e militante do único partido da frente que chamou o voto em Massa para evitar a vitória da extrema direita. Em uma entrevista recente, declarou: “seguirei sendo opositor de Massa, mas tenho que chamar a derrotar quem reivindica a ditadura”. Isso despertou uma onda de simpatia imediata, inclusive na base social do peronismo. É um pequeno exemplo do papel importantíssimo que poderia ter cumprido a FITU se o conjunto de suas forças militantes, principalmente através de sua carismática candidata presidencial, Myriam Bregman, tivesse ocupado seu posto de combate contra a extrema direita.

Nem sequer teria sido necessário um chamado explícito para o voto em Massa… bastaria uma consigna do tipo “nenhum voto em Milei” (como fez mais de uma vez o trotskismo francês contra Le Pen) para ocupar um lugar militante no campo de luta contra a extrema direita e conectar-se com o movimento social e os setores da classe trabalhadora preocupados pela ameaça que paira sobre eles. Se tivesse feito isso, a Frente de Esquerda teria aumentado enormemente sua autoridade e poderia estabelecer uma ponte com a base popular do peronismo.

Mas a atitude da FITU resultou no contrário: aproximou a base peronista de sua direção. Lembremos um aspecto central da tática da frente única, em sua formulação clássica: não se tratava apenas da unidade defensiva, mas também de uma política para “conquistar a maioria”, ou seja, para aumentar a influência dos revolucionários e disputar a hegemonia com os reformistas. No lugar de delimitação propagandística, construir um marco unitário onde a delimitação é um subproduto da incapacidade dos reformistas de levar a cabo uma luta comum tem se mostrado uma tática muito eficaz.

Vimos um exemplo recente e exitoso na atuação do Psol na luta contra Bolsonaro: uma atitude generosamente unitária e defensiva, chamando à unidade da esquerda e incluindo o PT, permitiu que, mesmo no contexto extremamente defensivo e adverso que impôs a extrema direita no poder, o partido crescesse muito significativamente em filiações, militantes, parlamentares e influência social.

Para citar pela última vez o velho revolucionário russo: “Os sábios”, escreveu Trotsky, “se vangloriam de não reconhecer a diferença ‘entre Brüning e Hitler’ (…). Sob esta fraseologia pseudorradical esconde-se a passividade mais covarde”.

Original em: ¿Es Milei una amenaza fascista?