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MUNDO

Médicos israelenses estão apoiando o bombardeio de hospitais em Gaza

Nós, médicos palestinos, somos forçados a assistir calados o massacre, enquanto alguns de nossos colegas israelenses o encorajam

Suad Hadi, Layla Aswad e Samir Shami (pseudônimos de médicos palestinos que trabalham em Israel). Tradução de Gabriel Dayoub, do Esquerda Online
Times of Gaza

“Os moradores de Gaza, que acharam adequada a transformação de hospitais em ninhos de terroristas, tentando se aproveitar da moralidade ocidental, trouxeram a destruição para si mesmos. O terrorismo deve ser eliminado em todos os lugares e por todos os meios. Atacar uma base terrorista localizada dentro de um hospital é direito e até mesmo dever das Forças de Defesa Israelenses”.

Um leitor desavisado poderia pensar que essas frases autorizando e encorajando o bombardeio de hospitais foram escritas por extremistas ou fanáticos. O que é chocante não é apenas a declaração em si, mas o fato de ter sido assinada publicamente por dezenas de médicos israelenses e compartilhada nas redes sociais.

Ao invés de provocar imediato espanto e condenação, seguiu-se o que alguns chamaram de um debate público “legítimo” na comunidade médica israelense: bombardear ou não hospitais.

Nós, seis médicos palestinos que trabalhamos no sistema de saúde de Israel, estamos enojados pelas declarações de alguns colegas que atuam conosco, convocando o exército israelense a bombardear hospitais na Faixa de Gaza.

Infelizmente, não podemos dizer que estamos surpresos. Fomos treinados e exercemos nossa profissão nesse sistema. Sabemos muito bem de suas características profundamente racistas, militaristas e hipócritas, disfarçadas pela falsa imagem de um setor onde árabes e judeus trabalham juntos em harmonia e respeito.

O recente manifesto, emitido em meio a um massacre, é uma evidência importante de como o sistema de saúde israelense realmente funciona: alguns médicos, publicamente e sem pudor, assumem o papel de consultores do exército.

Eles usam sua posição e profissão não para salvar vidas, não para falar sobre os efeitos devastadores da guerra para civis dos dois lados e da necessidade de encontrar uma solução política, mas para legitimar ataques a instalações de saúde, sabendo muito bem que isso significa o assassinato de outros médicos e de pacientes.

Ao mesmo tempo, esse sistema adotou uma caça às bruxas macarthista contra nós, médicos palestinos. Não podemos travar nenhuma discussão intelectual ou moral sobre a guerra. Esperam que condenemos o Hamas e nos juntemos ao delírio patriótico militar israelense, enquanto assistimos silenciosamente nossos colegas judeus comemorarem o assassinato de palestinos inocentes e apoiarem o recrudescimento do cerco a Gaza.

Todos os dias, vamos para o trabalho escutando notícias devastadoras sobre a destruição e as milhares de mortes em Gaza e na Cisjordânia. Quando chegamos, temos que fingir que “está tudo bem” e encaramos o teste diário de lealdade e o escrutínio do olhar de nossos colegas. Durante os intervalos, somos forçados a ouvir, sem reação, médicos israelenses soltarem despretensiosamente frases como “esmagar Gaza” e discutirem como deslocar sua população.

Nós também estamos presenciando nossos colegas palestinos sendo interrogados, demitidos e humilhados sem motivo. Sabemos muito bem que os hospitais e clínicas em que trabalhamos se transformaram em arenas disciplinadoras. Em um lugar “normal”, nós estaríamos nas ruas, exigindo o fim da guerra e dos massacres e defendendo uma solução pacífica. Nós usaríamos nossa profissão e posição para denunciar os ataques desumanos contra trabalhadores da saúde e instalações civis.

Sabemos que a situação é muito mais complexa do que simplesmente escolher um lado. Sabemos que toda a vida perdida é uma tragédia, seja israelense ou palestina. Mas, precisamente por isso, também sabemos que a história não começou no 7 de outubro. Nosso povo tem sido deslocado, morto, ofendido e humilhado há décadas, com total apoio e envolvimento da comunidade médica israelense.

Nós vamos ao trabalho todos os dias sabendo que nosso povo é torturado, mutilado e assassinado pelos criminosos colonos e pelo exército na Cisjordânia. No entanto, sabemos também que não podemos simplesmente perguntar aos nossos colegas israelenses: “Vocês condenam isso?”

Somos forçados a viver em um ambiente coercitivo, em que a morte de palestinos é normalizada e muitas vezes celebrada, mas a perda de judeus israelenses é tida como uma tragédia que não pode ser aceita e precisa ser vingada.

Essa é a realidade, em que a segurança nacional de Israel tem valor supremo, mas a dos palestinos não passa de uma piada de mal gosto. É a absoluta normalização da supremacia judaica na vida e na morte, que explode particularmente em tempos tão sombrios para mostrar a verdadeira face de nossos colegas israelenses e, infelizmente, também do mundo ocidental e suas instituições médicas.

A normalização da desumanização dos palestinos reflete a cumplicidade de todo o mundo nos massacres que estão ocorrendo em Gaza.

A normalização da desumanização dos palestinos reflete a cumplicidade de todo o mundo nos massacres que estão ocorrendo em Gaza.

Nossa profissão tem uma longa e rica história de oposição a guerras e seus efeitos devastadores para a saúde. Médicos se levantaram contra o racismo, o colonialismo e a expansão imperialista, que desencadearam conflitos sangrentos.

Lembramos dos protestos massivos de médicos contra a Guerra do Vietnam. Dos médicos nos EUA que, após o 11 de setembro, se organizaram para se opor e lutar contra as invasões do Iraque e do Afeganistão, sabendo que levariam a mais mortes e não trariam segurança.

Mas também estamos cientes que a maioria dos nossos colegas israelenses estão no lado oposto desse clamor pela proteção de vidas civis. Todo o sistema de saúde de Israel está sendo mobilizado para se juntar ao esforço de guerra e apoiá-lo.

Esse sistema não apenas não se opõe à guerra, à ocupação e ao apartheid. Também impede que médicos palestinos que residem em Israel se manifestem e se organizem contra essas atrocidades.

> Leia também Rabinos israelenses dizem a Netanyahu que Israel tem o direito de bombardear hospital Al-Shifa em Gaza, por Jonathan Ofir, do portal Mondoweiss 

Nesse ambiente trágico e lamentável em que nós trabalhamos e vivemos, precisamos esconder nossos nomes e escrever sob anonimato para manifestar o óbvio, de acordo com nosso dever profissional e juramento. Nós atingimos um grau tamanho de desmoralização e desumanização que somos obrigados a assistir massacres, com crianças palestinas sendo queimadas pelas bombas de fósforo de Israel e populações inteiras passando fome e sede, sem piscar, como se tudo estivesse “normal”.

Não apenas somos impedidos de fornecer auxílio voluntário a palestinos inocentes, como também não podemos falar contra esses crimes de Estado, sob risco de perder nossos empregos e segurança.

Essa carta é um pedido de desculpas ao nosso povo palestino e a nossos colegas em Gaza, expondo nossa profunda impotência.

Nós e o mundo falhamos com vocês.

Só podemos esperar que em dias futuros, mais calmos, além de ajudar no tratamento dos sobreviventes, possamos testemunhar, falar e escrever sobre as condições que permitiram que esses massacres ocorressem.

Original em Israel is bombing hospitals in Gaza with Israeli doctors’ approval