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MUNDO

O Egito e a guerra na Palestina

Como governante da nação mais populosa do mundo árabe, Abdel Fattah el-Sisi deveria estar preocupado com as consequências da guerra Israel-Gaza em curso durante seu regime.

Por Hossam al-Hamalawy, de Berlim. Tradução de Waldo Mermelstein, do Esquerda Online.
Hossam el-Hamalawy

Bandeiras palestinas e egípcias são hasteadas, enquanto os manifestantes tomam a Praça Tahrir em setembro de 2011

A causa palestina tem sido o principal fator politizador para gerações de jovens egípcios. Os actos de solidariedade com os palestinianos transformam-se inevitavelmente em dissidências contra o regime. A história está cheia de exemplos.

A derrota militar de 1967 diante de Israel reavivou a dissidência local no Egito. Os protestos estudantis em fevereiro e novembro de 1968 logo se transformaram em um movimento social propriamente dito, liderado por sociedades de “Apoiadores da Revolução Palestina” nos campi universitários. Atingiu seu clímax com uma revolta nacional contra o falecido presidente, Anwar Sadat, em janeiro de 1977, que foi apelidada de Revolta do Pão.

A eclosão da primeira intifada palestina em 1987 criou uma onda de choque nos campi universitários egípcios e entre os sindicatos profissionais. As notícias da resistência palestina foram censuradas na mídia estatal pelo infame ministro da Informação do então presidente Hosni Mubarak, Safwat el-Sherif, para não levar as pessoas à ação.

Mubarak lançou sua “guerra ao terror” em 1992, e a dissidência no Egito foi quase completamente esmagada. Apesar que o objetivo declarado fosse o de combater grupos militantes como a Jihad Islâmica e a Gamaa Islamiya, na verdade Mubarak esmagou todos os tons de dissidência, controlou os sindicatos profissionais e tornou mais severo o estado de emergência. Ao longo da década de 1990, as ações industriais despencaram e o ativismo estudantil estava sitiado.

No entanto, mais uma vez, a eclosão da segunda intifada palestina em 2000 revelou-se um ponto de inflexão viragem. Com as imagens da resistência popular transmitidas aos lares egípcios por estações de TV via satélite, como a Al-Jazeera, a dissidência nas ruas foi revivida mais uma vez. Mobilizações em solidariedade à intifada palestina e, mais tarde, contra a guerra no Iraque criaram o espaço político de que a oposição precisava para lançar o movimento anti-Mubarak Kefaya em 2004. A partir de então, o ativismo anti-Mubarak eletrizou o país, incentivou o renascimento do movimento operário e desenvolveu um forte movimento social que levou à revolução de janeiro de 2011.

Os regimes árabes sempre se manifestaram a favor da luta palestina, mas, na realidade, fizeram o possível para contê-la, desmantelá-la ou eliminá-la completamente. A resistência palestina, aos seus olhos, é, no mínimo, uma fonte de instabilidade. É visto com desconfiança como um potencial gatilho para uma guerra regional ou um modelo que poderia ser copiado pelas massas oprimidas na região.

Após a Guerra de 1973, o então presidente Anwar Sadat passou para o campo dos EUA, e assinou um tratado de paz com Israel antes de ser assassinado. O papel regional do Cairo foi reduzido a simplesmente ser um facilitador da Pax Americana. Sadat, e mais tarde Mubarak, foram encarregados de garantir a estabilidade de acordo com os interesses dos EUA, proteger Israel, supervisionar o fluxo de petróleo para o Ocidente e a segurança do Canal de Suez.

Isso também significava que o Cairo deveria desempenhar um papel mediador entre Israel, os palestinos e os Estados árabes, para chegar a algum acordo final. Mas isso não significava que o regime egípcio fosse um ator “neutro”, especialmente depois que o Hamas assumiu o controle da faixa de Gaza em 2007. Mubarak pressionou os grupos de resistência palestina a diminuírem a intensidade de sua atividade ou a aceitar compromissos políticos. Ele colaborou com o Fatah e a Autoridade Palestina contra o Hamas, e usou a Passagem de Rafah, a única artéria de Gaza que não está sob o controle de Tel Aviv, como moeda de troca.

Após o golpe de 2013, o Egito impôs um cerco a Gaza, fechando frequentemente a passagem de Rafah. Enfatizando as raízes comuns do Hamas e da Irmandade Muçulmana egípcia, a mídia propagou teorias da conspiração acusando o Hamas de envolvimento em ataques terroristas contra soldados e civis egípcios.

Durante a guerra de 2014 [contra Gaza], o Egito colaborou ativamente com Israel na tentativa de erradicar o Hamas e impor medidas punitivas a toda a população de Gaza. O regime contrarrevolucionário que estava mudando estava simplesmente se vingando vingança e adotando uma postura agressiva contra quaisquer causas defendidas pelos revolucionários do levante de 2011.

Em 2017, o regime de Sisi tornou-se lentamente mais tolerante com o Hamas. Este último mostrou-se resiliente e continuou a governar Gaza com substancial apoio público. Sisi também precisou de sua ajuda para proteger a fronteira, de onde os inimigos salafistas do Hamas estavam cruzando para o Sinai para participar de uma insurgência islâmica que deixou os militares egípcios abalados.

Os esforços de aproximação Cairo-Hamas envolveram uma flexibilização parcial do bloqueio, a abertura da Passagem de Rafah e uma série de visitas e reuniões com os líderes da resistência, todas com o objetivo de negociar um cessar-fogo prolongado com Israel. Apesar dessas medidas, as condições humanitárias na faixa não tiveram uma melhora significativa. A política externa do Egito continuou a contar com as diretrizes estabelecidas pelos EUA, que foram se tornando cada vez mais severas durante o governo Trump.

A eleição de Joe Biden teve um impacto profundo na forma como Sisi lidou com o Hamas. Antes de assumir o cargo, Biden havia prometido responsabilizar “o ditador favorito de Trump”. No entanto, a erupção do conflito de Gaza de 2021 ofereceu uma oportunidade para Sisi se apresentar como um “mediador” confiável, capaz de exercer influência sobre o Hamas ao mesmo tendo que garantia a segurança de Israel. Utilizando o Serviço Geral de Inteligência (SIG) do Egito, ele mediou com êxito um cessar-fogo, ganhando elogios do governo Biden.

Desde então, o Cairo voltou ao seu papel tradicional, cargo que ocupa desde a era de Mubarak. O SIG se concentra em garantir a desescalada e o cessar-fogo sempre que surgem tensões entre Israel e grupos da resistência palestina, consequentemente reforçando sua influência política com Washington e as capitais ocidentais.

Durante o conflito em curso, Sisi se viu sob pressão de todos os lados. Ele está se posicionando perante os líderes globais, alguns dos quais criticaram recentemente seu histórico de direitos humanos, como um intermediário confiável comprometido com os esforços de desescalada. Simultaneamente, ele tem preocupações sobre uma possível crise humanitária que poderia levar ao deslocamento de refugiados palestinos para o Sinai.

Mas ainda mais crítico, para ele, é o medo do efeito dominó. Milhares de torcedores do Al-Ahly entoaram cânticos pró-palestinos em um estádio em Alexandria. Jornalistas se reuniram no centro do Cairo, em frente ao sindicato, para protestar e queimar bandeiras israelenses. Centenas de advogados seguiram seu exemplo. A Associação de atores anunciou uma convocação semelhante para protestarem. Estudantes da Universidade Americana do Cairo organizaram uma grande marcha no campus. Em outras universidades, estudantes estão organizando ajuda e doações de sangue. O maior protesto foi realizado na Mesquita Al-Azhar, após a oração de sexta-feira. Os manifestantes gritavam pela Palestina e tentavam sair às ruas antes de serem dispersados pela polícia. Protestos semelhantes foram relatados em Gizé e em outros lugares.

Uma década depois de Sisi ter esmagado completamente a dissidência, essas mobilizações são significativas.

Em meio à piora das condições de vida e à crise econômica, a popularidade de Sisi atingiu seu ponto mais baixo. Ele está agora à beira de uma eleição presidencial marcada para os próximos dois meses, e sua vitória parece garantida devido à eliminação de quaisquer concorrentes fortes e ao apoio das instituições estatais. No entanto, a nação, mesmo depois de a oposição organizada ter sido reprimida, continua sendo um potencial ponto de conflito que pode irromper espontaneamente.

A situação na Palestina poderia servir como um catalisador, como aconteceu nas décadas anteriores.

Publicado originalmente em Egypt and the war in Palestine

Hossam el-Hamalawy é um jornalista e socialista egípcio, atualmente baseado em Berlim. Você pode acompanhar seus escritos no Substack.