Passou-se um mês desde 7 de outubro. A vida de milhões de israelenses e palestinos foi abalada pelos massacres que o Hamas cometeu em Israel naquele dia, e pelos massacres subsequentes e contínuos que Israel está cometendo com seu ataque em larga escala à Faixa de Gaza. Às vezes, pode ser difícil reconhecer um momento histórico que se está vivendo, mas desta vez é fácil de ver: o equilíbrio de poder mudou entre israelenses e palestinos, e mudará o curso dos acontecimentos daqui para diante.
Um mês depois da guerra é um bom momento para fazer um balanço sobre o que sabemos que aconteceu aos israelenses, aos palestinos e à esquerda neste país – e para fazer algumas avaliações cuidadosas sobre o que está por vir.
Massacres do Hamas em Israel
Nossas vidas aqui, como israelenses, nunca mais serão as mesmas depois de 7 de outubro. Tanto se falou sobre as atrocidades que o Hamas cometeu no sul de Israel naquele terrível sábado, e tantas teorias da conspiração e fake news têm proliferado, que vale a pena lembrar alguns fatos básicos. Esses fatos foram corroborados por várias fontes independentes e jornalistas, incluindo +972 e membros da equipe Local Call.
Em uma operação sem precedentes e meticulosa, militantes do Hamas saíram da sitiada Faixa de Gaza, superando o que era considerado um dos exércitos mais poderosos e sofisticados da região. Depois de destruir partes da cerca que cercava Gaza, bem como lançar um ataque à Passagem de Erez, milhares de militantes tomaram bases militares israelenses, mataram ou capturaram centenas de soldados e, em seguida, atacaram um festival de música e ocuparam vários kibutzim e cidades. Mataram cerca de 1.300 pessoas, a maioria civis.
A carnificina foi brutal. Centenas de pessoas desarmados na festa foram mortos, incluindo alguns cidadãos palestinos que estavam lá como socorristas, motoristas e trabalhadores. Famílias inteiras foram massacradas em suas casas e alguns sobreviventes testemunharam o assassinato de seus pais ou filhos. Em algumas comunidades, um em cada quatro moradores foi morto ou sequestrado. Trabalhadores agrícolas tailandeses e nepaleses, bem como cuidadoras filipinas, também foram alvos, com militantes do Hamas atirando neles e, em pelo menos um caso, jogando granadas em um barraco onde estavam escondidos.
Cerca de 240 soldados e civis de todas as idades, entre 9 meses e mais de 80 anos, foram sequestrados e levados para Gaza, e a maioria deles ainda é mantida lá como reféns, sem conexão com o mundo exterior e suas famílias não têm ideia de sua condição. Enquanto isso, o Hamas continuou a disparar indiscriminadamente milhares de foguetes de Gaza em direção a cidades israelenses.
Estes crimes de guerra, embora não sejam descontextualizados, são totalmente injustificáveis. Eles abalaram muitos de nós, inclusive eu, até o nosso âmago. A falsa noção de que os israelenses podem viver em segurança enquanto os palestinos são rotineiramente mortos sob um sistema brutal de ocupação, cerco e apartheid – uma noção que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu defendeu e incutiu em nós em seus longos anos no poder – foi por água abaixo.
Este sentimento foi exacerbado pelos ventos da guerra regional e pelos ataques do Hezbollah contra soldados e civis israelenses no norte de Israel, aos quais Israel respondeu com a sua própria artilharia e ataques com drones no Líbano, matando combatentes e civis. Essa frente adicional aprofundou nosso medo existencial e o sentimento de que nós, israelenses e palestinos, somos apenas peões em lutas regionais e globais mais amplas (e não pela primeira vez).
O colapso de nossa sensação de segurança veio de mãos dadas com a percepção de que todo o Estado israelense não passa, na verdade, de um holograma. O exército, os serviços de resgate, os serviços de assistência social e muitos mais foram disfuncionais. Isso deixou sobreviventes israelenses, deslocados internos e famílias dos reféns sem a quem recorrer, pressionando a sociedade civil a intervir para preencher o vazio onde o governo deveria estar. Anos de corrupção política nos deixaram com um Estado que era uma casca vazia e sem termos uma liderança com quem falar. Para os israelenses, não importa como saiamos ao final da guerra, queremos ter certeza de que nada como o 7 de outubro possa acontecer novamente.
Os massacres de Israel em Gaza
Enquanto fracassava em todas as outras frentes, e antes mesmo de recuperar o controle de todas as áreas ocupadas pelo Hamas no sul em 7 de outubro, o exército israelense imediatamente fez o que sabe melhor: atacar Gaza. A dor justificada, a dor, o choque e a raiva se traduziram em mais um injustificável ataque militar e campanha de punição coletiva contra os indefesos 2,3 milhões de moradores da maior prisão a céu aberto do mundo – a pior que já vimos.
Junto com os primeiros ataques aéreos, Israel desconectou toda a população palestina de Gaza de eletricidade, água e combustível, transformando uma crise humanitária já existente em uma catástrofe total. Em seguida, vieram as ordens do exército para evacuar metade da população – cerca de 1 milhão de pessoas – da Faixa Norte para o sul, além de uma segunda evacuação do leste para o oeste.
O bombardeio aéreo implacável, no norte e no suposto Sul supostamente “seguro”, matou até agora mais de 10.000 palestinos em apenas um mês – de longe a maior taxa de mortes que este conflito já viu. A maioria deles são civis, entre eles mais de 4.000 crianças. Centenas de famílias foram dizimadas, incluindo as de dois ex colaboradores do +972- um dos quais foi ele próprio morto, outro que sobreviveu, mas perdeu cinco membrosde sua família. Um de nossos colegas do “We Beyond the Fence (“Nós além da cerca”), um projeto dedicado a compartilhar histórias palestinas de Gaza com israelenses e o mundo, perdeu 20 familiares.
Isso não inclui as centenas ou talvez milhares de corpos, mortos ou vivos, enterrados sob os escombros, que ninguém pode sequer começar a escavar. Moradores palestinos estão descrevendo o fedor da morte que está tomando conta do que resta de alguns bairros destruídos. Enquanto nós, israelenses, temos sirenes de foguetes, interceptadores do Domo de Ferro e abrigos, o povo de Gaza não tem nada disso, e nenhuma maneira de se proteger contra a chuva de bombas lançadas em todas as partes do enclave sitiado.
De acordo com a ONU, mais de 45% das casas na Faixa de Gaza foram até agora destruídas ou severamente danificadas pelos ataques de Israel. Os hospitais estão ficando sem suprimentos, e os médicos estão realizando procedimentos médicos críticos sem anestesia, usando apenas lanternas de celulares para enxergar. Centenas de milhares de pessoas não têm acesso seguro à água potável. Desde que a invasão terrestre do exército começou no final de outubro, Israel ocasionalmente impõe apagões de telefone e internet, impedindo que os feridos peçam ajuda, ou que as pessoas verifiquem seus entes queridos, ou que paramédicos localizem os feridos, ou que jornalistas informem o que está acontecendo no terreno.
Até agora, os governos ocidentais deram a Israel liberdade para cometer essas atrocidades, mostrando dois pesos e duas medidas de forma consistente entre o valor das vidas israelenses e das vidas palestinas – o que é parte do que nos levou a essa situação em primeiro lugar. Não vemos remorso pelo papel que esses atores desempenharam no silenciamento e marginalização dos palestinos e seus aliados ao longo dos anos, e no fechamento de todas as vias diplomáticas e não violentas para sua libertação – desde boicotes, desinvestimentos e sanções (BDS) até o apelo ao Conselho de Segurança da ONU para sua intervenção.
Enquanto notícias e imagens da destruição e morte estão disponíveis para o mundo ver, o público israelense vê e pensa muito pouco sobre isso. A grande mídia israelense se concentra exclusivamente nos massacres de 7 de outubro, e não nos que estão acontecendo atualmente em nosso nome. Em vez disso, continuamos ouvindo competições intermináveis de retórica genocida, com comentaristas e políticos israelenses discutindo “esmagar” Gaza, jogar bombas nucleares sobre Gaza, limpar etnicamente Gaza, combater “animais humanos” e assim por diante.
A linha mais oficial é que Israel está “apenas” tentando derrubar o Hamas. Mas sabemos, por experiência, que não há solução militar para a ameaça que os israelenses veem no Hamas, e que décadas de tentativas israelenses de escolher uma liderança palestina “conveniente” sempre falharam. A única maneira de impedir que os palestinos se levantem contra seus opressores é que Israel pare com essa opressão e negação de seus direitos. É justiça, segurança e um futuro decente para todos nós, ou para nenhum de nós.
Expulsões na Cisjordânia, perseguição dentro de Israel
A guerra que está sendo travada contra os palestinos não se limita a Gaza. Na Cisjordânia ocupada, colonos, soldados e um número crescente de milícias conjuntas – onde os dois se tornam indistinguíveis –aumentaram significativamente sua campanha de limpeza étnica na Área C, os 60% do território ocupado onde estão localizados os assentamentos israelenses e onde o exército detém controle total. Pelo menos 15 comunidades palestinas foram totalmente erradicadas no último mês, e várias outras estão sofrendo ameaças maiores sem terem ninguém para defendê-las. Colonos e funcionários do governo estão trabalhando para expandir o território controlado diretamente por assentamentos, o que significaria expulsar ainda mais palestinos que vivem nessas áreas.
Segundo a ONU, pelo menos 155 palestinos foram mortos por soldados ou colonos na Cisjordânia desde 7 de outubro. Os agricultores estão sendo impedidos de colher as suas azeitonas na época anual, quando estão prontas para serem colhidas, e em alguns casos até têm de assistir aos colonos roubá-las mesmo em sua presença. O exército israelense prendeu mais de 1.000 palestinos sob alegações de conexões com o Hamas, e milhares de trabalhadores palestinos de Gaza, que tinham permissão para trabalhar em Israel ou na Cisjordânia, foram colocados em campos de internamento em duras condições antes de serem deportados de volta para Gaza no final da semana passada.
Enquanto isso, dentro de Israel e Jerusalém Oriental ocupada, os palestinos estão sendo perseguidos tanto pelas autoridades quanto pelo público judeu em geral. Centenas de cidadãos palestinos e alguns judeus de esquerda foram presos ou detidos por longos períodos de tempo, suspensos ou demitidos de seus empregos, removidos das universidades que frequentam como alunos e professores e ameaçados de ter sua cidadania revogada. Muitas dessas ações foram tomadas apenas por causa de postagens nas redes sociais, mesmo aquelas que são totalmente benignas, incluindo apelos trilíngues para parar a guerra, versos do Alcorão ou mostrando simpatia e tristeza pelo assassinato de crianças em Gaza.
Em Jerusalém, a polícia israelense está parando palestinos aleatórios na rua para verificar seus feeds de mídia social em busca de “incitamento”. A polícia também anunciou que proibirá todos os protestos que pedem um cessar-fogo – uma regra que até agora aplicou quase exclusivamente contra cidadãos palestinos, e que foi confirmada pela Suprema Corte em resposta a uma petição. “Qualquer pessoa que queira se identificar com Gaza é bem-vinda. Vou colocá-lo nos ônibus que estão indo para lá agora”, declarou o chefe da polícia israelense, Kobi Shabtai.
Em várias cidades israelenses, locais de trabalho que empregam cidadãos palestinos fecharam totalmente, ou disseram a esses trabalhadores para não comparecerem ao trabalho, ou colocaram guardas especiais ao redor dos locais de trabalho para “proteger” a comunidade judaica ao redor. Multidões violentas de direita atacaram estudantes árabes em dois campi e trabalhadores de várias empresas, bem como a casa do jornalista judeu ultraortodoxo de esquerda Israel Frey, apenas quatro das centenas de agressores nesses diferentes incidentes foram detidos. Enquanto isso, o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, distribui milhares de fuzis de assalto para equipes de segurança civis recém-formadas em dezenas de cidades e assentamentos, alguns deles tripulados por conhecidos extremistas de direita.
Em conjunto, isso criou um sentimento de medo sem precedentes entre os cidadãos palestinos de Israel, muitos dos quais agora falam sobre esse período como “o novo regime militar”, referindo-se ao sistema draconiano imposto a eles de 1948 a 1966. Muitos desativaram ou pararam de usar seus perfis nas redes sociais, e muitos estão simplesmente evitando ir ao trabalho ou caminhar por áreas de maioria judaica. Isso se soma a alguns cidadãos palestinos que também estiveram entre os mortos no ataque do Hamas em 7 de outubro ou nas barragens de foguetes de Gaza que se seguiram, e enquanto alguns ainda são mantidos em cativeiro pelo Hamas em Gaza.
Há algumas iniciativas verdadeiramente inspiradoras de cidadãos judeus e palestinos trabalhando juntos, protegendo uns aos outros, assinando petições compartilhadas ou se voluntariando juntos para as vítimas – mas infelizmente esses são pequenos raios de luz em uma tempestade escura.
Uma esquerda despedaçada
Como se tudo o que acontece à nossa volta não fosse suficientemente mau, estamos também a assistir a um momento doloroso para a esquerda em Israel-Palestina, levando muitos à nossa volta a sentirem-se ainda mais desesperados e sem esperança. Como Noam Shuster escreveu em +972 recentemente, estamos vendo as duas comunidades nacionais ao nosso redor recuarem em suas conchas separadas, com narrativas de partida rápida dos eventos do mês passado e declínio da fé uma na outra. Isso está deixando aqueles de nós que estão comprometidos com espaços compartilhados, resistência compartilhada e um futuro compartilhado baseado na igualdade muito sozinhos. É, em muitos aspectos, um microcosmo condensado das fissuras que surgiram dentro da esquerda globalmente no último mês também.
Muitos israelitas judeus que se consideravam da esquerda local e global, e que têm sido opositores ferrenhos da ocupação e defensores dos direitos humanos e da igualdade, ficaram completamente chocados com a ferocidade do ataque do Hamas. O ataque a tantos civis, muitos dos quais eram ativistas empenhados contra o cerco a Gaza e o apartheid israelense de forma mais ampla, não foi fácil de engolir.
O choque inicial, compreensível — que também eu partilho — foi intensificado por um sentimento de decepção com o que eles experimentaram como falta de solidariedade de líderes, amigos e colegas palestinos diante desse horror. Tendências mais amplas verdadeiramente preocupantes, seja de negação ou justificativa dos massacres em certos círculos palestinos e na esquerda global, levaram alguns a começar a exigir que seus amigos denunciassem o Hamas e pronunciassem seu compromisso com o direito dos judeus de viver nesta terra, como prova de solidariedade mútua e aliança.
Ao mesmo tempo, alguns desses israelenses têm justificado o ataque a Gaza. Muitos reconhecem que não há solução militar a longo prazo e sublinham que não desejam danos aos civis palestinianos, mas insistem que “não há escolha a não ser derrubar esse regime”. Embora alguns ainda possam rejeitar ataques de colonos na Cisjordânia, eles não parecem preocupados com a perseguição de cidadãos palestinos, que está sendo justificada pela mesma lógica contra antigos amigos e aliados.
Do lado palestiniano, muitos optam pelo silêncio total, em grande parte por receio de que qualquer declaração que façam possa e provavelmente seja usada contra eles. Qualquer demonstração de pesar pelos massacres de 7 de outubro é manipulada pelos israelenses para justificar os horrores que está trazendo sobre Gaza, e qualquer sinal de cuidado com os habitantes de Gaza é interpretado por grande parte da maioria judaica, inclusive por empregadores e pela polícia, como traição e conluio com o inimigo.
Dos palestinianos que ousam fazer declarações públicas, alguns tentam percorrer uma linha ténue entre reconhecer o direito de um povo ocupado a resistir com força, mas centrando-se em alvos estatais ou militares, justificando assim a “primeira fase” do ataque de 7 de outubro enquanto rejeitam os massacres de civis que se seguiram. Outros estão procurando maneiras de negar que os massacres ocorreram – por exemplo, agarrando-se a teorias da conspiração sobre o exército israelense ter realmente matado civis enquanto tentava resgatá-los ou impedir seu sequestro (o que pode ter acontecido em alguns casos, mas em números muito menores do que está sendo sugerido) – ou estão justificando dizendo que a descolonização é “bagunçada” e “feia” porque reverte a opressão brutal original que está combatendo.
Os cidadãos palestinos de Israel, por sua vez, também olham para alguns líderes, colegas e amigos judeus da esquerda com muita decepção. Desde o fracasso em estar ao lado do povo de Gaza, que enfrenta os crimes de guerra cometidos pelo nosso governo, até o fracasso em falar por aqueles que estão sendo perseguidos por um regime cada vez mais autoritário, os cidadãos palestinos se sentem abandonados e traídos por muitos aliados judeus que, até um mês atrás, protestavam veementemente nas ruas em nome da “democracia”.
Essas tendências florescem em duas comunidades que estão envolvidas em tristeza, medo e ansiedade muito reais, ambas baseadas em traumas coletivos do passado – o Holocausto e a Nakba – cujas memórias estão sendo revividas pela retórica genocida de líderes do Hamas e do governo israelense – e, no caso palestino, por expulsões reais e a discussão de planos para ainda mais deslocamentos. Escusado será dizer que, ao recuarem cada lado para o calor e a protecção do seu grupo nacional ou étnico, estão também a reafirmar involuntariamente os medos e desilusões do outro, criando uma dinâmica destrutiva de crescente desconfiança e desespero.
Horizontes à frente
Ainda não sabemos como essa guerra vai acabar. Os líderes israelenses prometem uma campanha “muito longa” que pode levar “meses” ou “anos”. No entanto, com a mudança da opinião pública global diante da carnificina e da catástrofe humanitária em Gaza, e com a demanda interna israelense pela libertação dos mais de 200 cativos detidos pelo Hamas, a desconfiança em relação ao governo e a tolerância limitada ao custo humano e econômico da guerra, acredito que é mais provável que vejamos um cessar-fogo dentro de algumas semanas.
Também é impossível avaliar o alcance da nova era que se iniciará após esta guerra. Não há como dizer quem governará Gaza – o Hamas, a Autoridade Palestina, uma força internacional ou o próprio Israel. A magnitude dos esforços de reabilitação necessários em Gaza é inimaginável. Haverá também a necessidade de reconstruir as comunidades israelitas destruídas ou evacuadas no sul e no norte.
Deixarei discussões importantes sobre a liderança e a luta palestinas, dinâmicas regionais mais amplas e o papel das potências estrangeiras para análises futuras, que publicaremos nas próximas semanas e meses no +972. Por enquanto, gostaria de me concentrar na questão da política judaico-israelense.
Duas mudanças me parecem muito claras neste momento: o fim da era Netanyahu e o fim do domínio do discurso de “gestão de conflitos” na sociedade israelense, dando lugar a uma renovada discussão pública sobre o futuro das relações judaico-árabes.
Netanyahu acabou. Sei que isso já foi dito muitas vezes, e esse líder mostrou incríveis habilidades de sobrevivência, mas com o que aconteceu no último mês, estamos além desse ponto. Todas as pesquisas desde 7 de outubro mostram que a grande maioria dos israelenses, incluindo uma maioria considerável dentro de seu partido, o Likud, acredita que ele é o culpado pela derrota militar de Israel nas mãos do Hamas, e que ele tem que sair. Alguns de seus aliados na mídia e no governo já estão se voltando contra ele, se preparando para o dia seguinte.
Esta é mais uma razão pela qual Netanyahu é tão perigoso neste momento, acreditando – com razão, como as coisas estão – que, enquanto a guerra continuar, ninguém se preocupará com a ação política de substituir um primeiro-ministro. Ele ainda pode achar que mesmo os israelenses têm um limite, e antes ou depois do fim da guerra, de uma forma ou de outra, ele será deposto.
Muito mais importante do que o próprio Netanyahu, porém, é a doutrina Netanyahu, que se tornou quase o consenso da política judaico-israelense. Essa doutrina sustentava que Israel venceu os palestinos, que eles não são mais um problema a ser enfrentado, que podemos “administrar” o conflito em “fogo baixo” e que devemos concentrar nossa atenção em outros assuntos.
Ao longo de seu controle quase contínuo desde 2009, essa percepção ganhou os corações e mentes dos israelenses, e a questão de “o que fazer com os palestinos” – que costumava ser a principal linha de clivagem da política israelense – foi removida da agenda quase inteiramente, contribuindo para a arrogância que levou o Exército a baixar a guarda em torno de Gaza. No mês passado, o Hamas dizimou essa noção por anos e talvez décadas.
Nas próximas eleições israelenses, quando forem realizadas, é provável que vejamos uma reorganização do mapa político, potencialmente criando três blocos distintos. Ainda é cedo para dizer quanta tração cada um desses campos terá, mas aqui está como eles podem ser.
O primeiro é, claro, a extrema-direita, que já vem ganhando força desde 2021, e que tentará capitalizar os acontecimentos recentes. Liderado por nomes como Itamar Ben Gvir e Bezalel Smotrich, provavelmente acompanhados por alguns do Likud, este campo dirá que, não importa como esta guerra termine, ela simplesmente não foi suficiente. Israel, argumentarão, precisa de uma solução definitiva baseada na limpeza étnica em larga escala, porque, aos seus olhos, toda a terra nos pertence e não há espaço para o povo palestino ficar aqui como um coletivo.
Uma segunda abordagem, provavelmente liderada por Benny Gantz e Yair Lapid, provavelmente se concentrará em medidas unilaterais, como uma “segunda retirada” da Cisjordânia, derrubando assentamentos a leste da barreira de separação, anexando o resto e fortificando os muros que cercam os palestinos na Cisjordânia e em Gaza com mais concreto, mais tecnologia e mais soldados do que nunca. Parte dessa abordagem também pode incluir a estratégia de “aparar a grama” – essencialmente, campanhas militares periodicamente recorrentes – para evitar que os palestinos desenvolvam capacidades armadas significativas.
O terceiro campo provavelmente será uma reconfiguração do que costumava ser o Labour, o Meretz e partes do Yesh Atid, no qual um papel fundamental pode ser desempenhado pelo recém-descoberto herói da centro-esquerda sionista: o ex-Deputado da Knesset pelo Meretz e general do exército Yair Golan, que passou o dia 7 de outubro como uma unidade de comando voluntária de um homem só, entrando e saindo das arenas de combate com sua arma e carro particulares, resgatando sobreviventes sob fogo. Esse campo provavelmente proporá um retorno ao paradigma de separação de dois Estados, a ser alcançado por meio de negociações com a OLP. Também pode tentar avançar algum discurso de convivência dentro de Israel, promovendo diferentes formas de parceria árabe-judaica na vida civil.
Os dois últimos campos serão encorajados por fortes sentimentos anticolonos que têm crescido no público israelense, especialmente desde que os manifestantes antigovernamentais começaram a identificar corretamente a ligação entre a reforma judicial da extrema direita e suas fontes ideológicas no movimento sionista religioso nos territórios ocupados. A rejeição aos pogroms realizados pelos colonos, como o de Huwara em fevereiro passado, só aumentou, com muitos israelenses vendo os atuais ataques de colonos na Cisjordânia como possíveis de provocar a abertura de uma terceira frente na guerra.
Além disso, o conhecimento de que o exército israelense havia reposicionado forças da cerca de Gaza para proteger colonos extremistas em postos avançados remotos da Cisjordânia nos últimos meses, o que pode ter aberto o caminho para o sucesso da operação militar do Hamas em 7 de outubro, fortaleceu o ódio e o ressentimento contra esses colonos. Dito isso, o ódio israelense contra os palestinos disparou muito mais, e a remota possibilidade de uma solução de Estado único ou confederado ser aceita pelos israelenses diminuiu ainda mais.
Avançar para o desconhecido
Este é um momento sombrio e difícil para aqueles de nós que estão empenhados em combater o apartheid e promover uma solução baseada na justiça e na igualdade para todos. Por um lado, conquistas duramente conquistadas ao longo de décadas de luta compartilhada foram apagadas pelos massacres do Hamas e serão difíceis de recuperar. Nosso movimento está em desordem, e o desespero abunda. Milhares de vidas foram perdidas, outras milhares ainda podem perecer e os traumas coletivos que carregamos se intensificam a cada dia.
Por outro lado, uma vez terminada a guerra, terá de haver um ajuste de contas na sociedade israelense, o que poderá abrir novas oportunidades para aproveitarmos. Muito pelo qual temos lutado se tornará cada vez mais relevante, com mais pessoas local e globalmente dispostas a reconhecer que o sistema sob o qual vivemos é injusto, insustentável e não oferece segurança real a nenhum de nós. Devemos dobrar nosso compromisso de promover um processo político pacífico, com o objetivo declarado de acabar com o cerco e a ocupação, reconhecer o direito de retorno dos refugiados palestinos e encontrar soluções criativas para materializar esse direito.
Mas a nova realidade exigirá alguns realinhamentos. A par do nosso compromisso com a plena realização de todos os direitos dos palestinos, o nosso movimento progressista e anti-apartheid terá de ser explícito sobre os direitos coletivos dos judeus nesta terra e assegurar que a sua segurança seja garantida em qualquer solução encontrada. Teremos de lidar com o Hamas e o seu lugar nesta nova realidade, garantindo que ele não pode continuar a cometer tais ataques contra israelenses, tal como insistimos na segurança dos palestinos e na sua proteção contra a agressão militar e dos colonos israelenses. Sem isso, será impossível avançar.
Até lá, há dois apelos extremamente urgentes para centrar nossos esforços neste momento: a libertação de reféns civis e um cessar-fogo imediato. Agora.
Haggai Matar é um premiado jornalista e ativista político israelense, e é diretor executivo da Revista +972. Artigo original.
Este artigo não reflete necessariamente as posições do Esquerda Online
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