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Colunas

Relato 09: “A tortura é o método das comunidades terapêuticas”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Denis Roberto da Silva Petuco

Sou Denis Petuco, sociólogo gaúcho, pesquisador em Saúde Pública pela FIOCRUZ, no Rio de Janeiro, lotado na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, no Laboratório de Educação Profissional da Atenção à Saúde

Eu fui internado em uma comunidade terapêutica, em Porto Alegre, na década de 90. Na época, eu tinha 27 anos e eu apresentava um uso intenso de cocaína, de álcool e frequentava muita festa, muita boemia. Eu cheguei ao final da década com problemas sérios mesmo. De fato, era um período da minha vida em que eu estava bastante afundado no uso de cocaína, com problemas financeiros, com problemas de saúde, com problemas de vida social, enfim. Estava naquele círculo, que já conhecemos, e no qual somos capazes de transformar nossas vidas quando entramos em uma espiral de uso exagerado, em um uso dependente de drogas.

Era final de novembro de 1999 e minha família me coloca em uma comunidade terapêutica. Eu aceito qualquer coisa que eles trazem. Na época, não se falava muito de estratégias de tratamento, não tinha CAPS AD, o que tinha mais era internação em comunidades terapêuticas e eu nem sabia, não tinha uma posição em relação a isso, porque não se falava sobre isso, pelo menos não no meu circuito. Tínhamos uma ideia de que a comunidade terapêutica era uma clínica genérica sobre a qual conversávamos nas rodas de uso, mas não com essa especificidade do que é uma comunidade terapêutica atualmente.

Bom, então eu fui. Novembro de 99, era um momento que para minha geração, inclusive, era uma grande questão saber onde a gente iria estar na virada do milênio. Pois bem, em que pese todos os sonhos anteriores, de estar em Nova York, no Rio de Janeiro, ou em uma festa na beira de uma cachoeira, em realidade, eu estava internado em uma comunidade terapêutica. Eu passei a virada do milênio na festa que marcou toda minha geração, internado.

E quando a gente olha e escuta os relatos e fica sabendo o que acontece nas comunidades terapêuticas de hoje em dia, não que não acontecesse os fatos relatados atualmente nas comunidades terapêuticas da década de 90, talvez acontecessem coisas análogas e, talvez, eu não tenha ficado em uma das piores quando faço a comparação, o que não quer dizer que era grande coisa também.

Na comunidade terapêutica em que fiquei, que era uma comunidade relativamente grande, não tinha essa dimensão de tortura física, de cárcere privado, essas dimensões mais radicais de violações de direitos, no sentido de castigos físicos. Mas, talvez justamente por isso, seja interessante trazer o que era uma comunidade terapêutica “considerada padrão”, respeitada nacionalmente, que talvez não fosse um lugar caça níqueis, que contava com uma diretoria não remunerada, que se esforçava para ser boa e era movida por boas intenções, não tenho dúvidas.

Talvez seja emblemático, justamente, por isso, porque mesmo sendo uma instituição sem fins lucrativos e com uma diretoria movida por boas intenções, que se esforçava para fazer o melhor dentro da concepção deles próprios, mesmo ali a gente podia ver situações. O que mais me marcou foi uma atividade específica, que pelo menos na época, era uma atividade padrão no cronograma das comunidades terapêuticas e era considerada por muitos como “o grande momento”, como o ponto de virada do tratamento. Tratava-se do momento do confronto. Na comunidade terapêutica em que eu fiquei, este momento acontecia entre o quinto e o sexto mês de tratamento. Era uma comunidade católica, que oferecia um tratamento de 9 meses. No sexto mês, o interno podia sair por uma semana para a primeira visita familiar e depois retornava à instituição. Quando completava sete meses, o interno podia sair para uma segunda visita, quando completava oito meses, saía para uma terceira visita, quando completava 9 meses, a pessoa ia embora.

O período de visitas acontecia a partir do sexto mês e era chamado de período de ressocialização. Um pouco antes de iniciar esse período de visitas, mais ou menos quando a pessoa estava com 5 meses e meio dentro da instituição, havia o momento do confronto. E o que era o confronto? A gente ia para um galpão, um grande salão que tinha na comunidade terapêutica, e se formava um grande círculo, com 60 e 65 pessoas, aproximadamente. Nesse círculo, a pessoa que ia ser alvo do confronto, era obrigada a se dirigir para o centro da roda, sentava-se numa cadeira giratória e ali ela ficava. As pessoas que ainda não tinham completado 1 mês de internação não podiam falar nada, entretanto, as demais, das mais antigas às mais novas da instituição, todas essas pessoas iam falando para quem estivesse no centro da roda, apontando seus defeitos de caráter. Quem estava sendo alvo das críticas morais, tinha que ouvir tudo em completo silêncio. E era um silêncio radical.

Eu me lembro que quando rolou o meu confronto, ao término da fala de cada pessoa, eu olhava para ela e fazia um pequeno movimento de cabeça, como que “aceitando”, “agradecendo” aquele “presente” que tinham acabado de me dar, que eram os impropérios. Eventualmente havia pessoas com um pouco mais de delicadeza, de compaixão, que tentavam fazer isso de modo mais sensível, mais cuidadoso. De modo geral, era algo extremamente violento. E eu me lembro que depois da terceira ou quarta pessoa que se dirigiu a mim quando eu estava no centro da roda, o monitor interrompeu a dinâmica aos berros: “É o seguinte, se eu te ver fazendo esse movimento de cabeça mais uma vez, você sai daqui direto para uma vala”. Vale explicar que as valas, na comunidade terapêutica rural onde eu estava, eram os espaços por onde circulavam as águas de irrigação da horta, da ordenha (onde tirávamos o leite para o nosso próprio café da manhã) e de todos esses setores de trabalho da fazendinha. A vala era um sistema de condução de água suja. Era um trabalho muito ruim de fazer, duro, de enxada, no meio do lodo, enfim, bem pesado.

Uma característica da comunidade terapêutica em que fiquei, é que não havia os trabalhos sem sentido, ou seja, aqueles feitos apenas para punir, como cavar uma vala do tamanho do corpo da pessoa e depois tapar novamente. Mas, havia trabalhos realizados, necessariamente, pelas pessoas internas, independente delas cometerem algum tipo de infração ou não, que eram trabalhos extremamente pesados e que precisavam ser feitos por elas: como a limpeza das valas, o cuidado da esterqueira, onde se produzia o adubo orgânico da comunidade terapêutica (trabalho duro, difícil, fedorento). Geralmente, os trabalhos mais pesados e sujos eram deixados para as pessoas que haviam cometido alguma infração. Assim, quando o monitor me ameaça de me mandar para uma vala, era uma ameaça de que eu teria que fazer, como punição, um trabalho mais pesado e mais sujo.

Então eu me lembro, com muita nitidez, daquela noite em que estive no centro da roda, ouvindo pessoas dizendo coisas, umas após a outras. Umas dizendo com cuidado, outras com muita violência, enfim, por cerca de uma hora uma hora e meia, escutei as pessoas apontando meus defeitos de caráter. Recordo-me que logo após o término dessa atividade, ordenaram-me que eu fosse para o deserto, algo frequentemente indicado para as pessoas que acabavam de passar por aquele processo. Em uma linguagem metafórica, ir para o deserto, significava ficar em silêncio até a manhã do dia seguinte a atividade. “O confronto” era uma atividade que começava por volta das 18h e quando ela acabava ainda tinha umas três ou quatro horas antes das pessoas irem dormir. Eu me lembro que eu terminei aquela sessão destroçado, aquilo foi uma sensação de tortura. E é incrível como aquilo era festejado como “o grande momento do processo terapêutico” da comunidade “dita” terapêutica.

Importante ressaltar esse momento do confronto porque me lembro de diálogos com pessoas que estavam na comunidade terapêutica ou que haviam passado por outras comunidades terapêuticas em outros territórios que apontavam esse momento de tortura como um momento transformador.

Havia também um sino na fazenda. Durante 9 meses nós erámos movidos pelo sino: sino para acordar, sino para iniciar o trabalho, sino para o intervalo do trabalho, sino para encerrar a manhã de trabalho, sino para ir para o almoço.

Na ocasião em que fiquei internado, eu não era adepto de nenhuma religião e a comunidade girava em torno dessa questão do trabalho. Inclusive falava-se que era o tripé de sustentação do modelo terapêutico deles: trabalho, oração e disciplina. Trabalho, como eu já descrevi um pouco, eram os trabalhos dessa comunidade rural com galinheiro, horta, chiqueiro de porcos, ordenha de vacas etc.

A disciplina era constituída por um excesso de regras. Regras para absolutamente tudo. Tudo tinha um jeito “certo” e o jeito “errado” de se fazer. Por exemplo, entrar no refeitório e se esquecer de tirar as botas, poderia render um “trabalho construtivo” (como eles designavam), que eram as punições.

A espiritualidade entrava na lógica da religiosidade cristão. Havia três momentos da semana reservados para que todas as pessoas internas fossem obrigadas a rezar o terço católico, recitado, de modo monocórdico, como ladainha. As pessoas eram obrigadas a rezar por volta de cinquenta “Ave Marias”, meditando sobre os mistérios cristãos.

Na época em que passei por essa comunidade dita terapêutica, já havia o fenômeno do crescimento do protestantismo neopentecostal no Brasil e aí, para as religiões evangélicas a divindade da “Virgem Maria” é tida como um pecado grave. Para as religiões evangélicas, “Deus é Cristo”, não há essa ideia de outra divindade para além do Cristo. Não tem santo e não tem a divindade da “Virgem Maria”. Então, como obrigar as pessoas de diferentes credos, rezarem para a Virgem Maria? Isso é algo de uma violência religiosa brutal. Obrigar algo a uma pessoa que para ela é um atentado para sua própria fé. Imagina obrigar um mulçumano a rezar o terço, participar de uma missa católica, cantar louvores cristãos.

Eu me lembro que na época, apesar de já ter sido batizado, eu não era uma pessoa religiosa e tinha uma simpatia distante por religiões de corte oriental. E, a posteriori, me converti ao budismo. Sou praticante budista. Recordo-me também dos grupos de estudo com o programa dos doze passos dos Alcóolicos Anônimos e eu levei isso a sério. Em minha primeira saída de visita familiar, acabei procurando lugares para explorar minha espiritualidade própria e aprofundar o tema da meditação. Quando voltei da visita, levei um livro de Sua Santidade o Dalai Lama e o livro foi retido pela direção e pelos monitores da comunidade terapêutica e não me foi devolvido. E isso é bem curioso. Apesar de haver todo um conjunto de práticas católicas no cotidiano da comunidade terapêutica, havia um discurso público que alegava respeito às liberdades religiosas. No entanto, mesmo esse sutil tensionamento produzido pelo simples ato de eu portar um livro do Dalai Lama, foi censurado e interditado, com a justificativa que o livro não traria contribuições à instituição, nem ao momento de vida das pessoas que estavam em internação naquela entidade católica. Além disso, o livro poderia trazer confusão às pessoas. Portanto, na prática, além da obrigatoriedade de as pessoas internas realizarem as atividades sob uma perspectiva católica, ninguém podia ter consigo um livro que não fosse cristão, com exceção de livros espíritas kardecistas e evangélicos, ambos cristãos. As tradições não cristãs não eram toleradas.

Penso, portanto, que a dimensão da tortura nas comunidades terapêuticas, não é um simples desvio de uma ou outra instituição mal dirigida por pessoas mal intencionadas, mas a tortura é o próprio método. Mesmo os lugares que se esforçam para fazer bem feito, que têm um desejo altruísta, que têm compaixão e generosidade vemos a violação de direitos emergir. Que o meu relato possa nos dizer que a tortura não é um desvio que ocorre em comunidades terapêuticas que estão nas mãos de pessoas mal intencionadas, a tortura é o próprio método das comunidades terapêuticas.