Pular para o conteúdo
Colunas

A estratégia Boulos

Marcello Casal jr/Agência Brasil

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Todas as flores de amanhã estão nas sementes de hoje.
Um dia vale por dois, para quem diz «Já» e não «Depois»
O caminho mais curto nem sempre é o mais a direito
Provérbios populares portugueses

1. O PT é um dos maiores partidos de esquerda do mundo. No Brasil de 2023 o lulismo é uma corrente eleitoral maior que a esquerda. A disparidade da influência do lulismo e da esquerda é desigual – maior no Nordeste do que no Sul, por exemplo – mas é nacional, e essa diferença de peso social e influência ideológica é qualitativa. A esquerda brasileira é liderada pelo PT, o PT é dirigido pela CNB (Construindo um novo Brasil), e a CNB é uma articulação de líderes, parlamentares e grupos que respondem à autoridade de Lula. A preferência pelo PT, em escala nacional, é constante desde 1999, e os últimos dados informam, de junho de 2023 que alcança 29% (1). O PSol é o segundo partido da esquerda brasileira, pontuando 3%, em 2022, o que significa, em grandes cidades, uma simpatia um pouco maior (2). Mas a métrica para avaliação da relação de forças dentro da esquerda exige um modelo com muitas outras variáveis: (a) implantação nacional, número de filiados ou simpatizantes e militância orgânica; (b) implantação nos movimentos sociais, como sindical, popular, feminista, negro, camponês, LGBT, estudantil, indígena; (c) simpatia no mundo da cultura, artes e acadêmico, ou intelectualidade; (d) audiência nas redes sociais ou capacidade de disputa na internet; (e) representação parlamentar. Considerando todos estes elementos, o peso do PT ainda é imenso e, se considerado o fator Lula, avassalador. Esta influência decorre de muitos fatores, mas o mais importante é que as expectativas reformistas ainda prevalecem na maioria dos trabalhadores.

2. À esquerda do lulismo há três campos. Hoje a esquerda anticapitalista, num sentido amplo de organizações que defendem no programa a necessidade da revolução no Brasil, em suas variadas tradições, mas fragmentação hemorrágica, está dividida no terreno tático em três campos: (a) primeiro campo é composto pelas tendências de esquerda do PT (Democracia Socialista, Articulação de Esquerda e O Trabalho) que apoiam e ou participam do governo Lula, ainda que com posicionamentos críticos sobre os aliados da coligação, e apostam, prioritariamente na reeleição de Lula que, entretanto, terá 81 anos em 2026; (b) o segundo campo é ocupado pelas correntes que constituem o bloco majoritário do PSol e defendeu não entrar no governo, mas sustenta o governo diante da oposição de extrema-direita, tanto no Congresso Nacional, quanto nas ruas, preservando a independência para votar contra e criticar, e liberando filiados para assumir cargos em seu nome pessoal e dos movimentos sociais que representam e apostam em uma reorganização que tem Boulos como referência pública; (c) o terceiro é a parcela da esquerda radical que se posiciona como oposição de esquerda, entre as quais, as mais representativas apresentaram três candidaturas à presidência em 2022, o PSTU, o PCB e a UP, e apostam nas suas autoconstruções, sem uma liderança pública comum. A relação de forças entre os três campos é muito assimétrica. O campo do PSol é, quantitativamente, maior que o da esquerda do PT, e o terceiro campo é, qualitativamente, tão menor que os outros dois, que já está à margem da disputa que virá.

3. As esperanças reformistas não morrem sozinhas. As lições que ficaram em um século de disputas na esquerda, em escala internacional, entre as organizações reformistas e as mais radicais, se concentram em uma questão central: fora de uma situação revolucionária a maioria dos trabalhadores não rompem com as direções moderadas. Somente quando foram esgotadas todas as expectativas em soluções negociadas, o desafio da ruptura pode conquistar maioria entre os explorados. A luta revolucionária exige uma inesgotável paciência histórica. Mas o caminho para sair da marginalidade não é possível sem uma acumulação prévia que não se improvisa no calor da hora. A experiência dos governos de coalizão liderados pelo PT foi interrompida pelo golpe institucional em 2016. Esta é a chave para a compreensão da resiliência do lulismo. Nenhum dos outros partidos de esquerda tem peso próprio nas massas populares. São organizações com expressão em setores de vanguarda, mesmo o PCdoB que é, incomparavelmente, a maior. A conquista de sindicatos e de mandatos pode alimentar uma perigosa ilusão de ótica. Os trabalhadores apoiam, até com alguma regularidade, a liderança de revolucionários nos seus sindicatos, porque os conhecem, pessoalmente, são honestos e combativos. Ou podem elegê-los deputados. Mas isso não autoriza a conclusão de que querem que governem. Não querem, porque temem o radicalismo.  Ao contrário do que muitos, apressadamente, pensam, o apoio a Lula tem dimensão programática, mas o voto em revolucionários para a presidência de um sindicato ou para parlamentares é pessoal. Somente o PSol conquistou um pequeno espaço próprio, essencialmente, nas eleições para deputados. Mas há uma exceção, e ela foi uma façanha enorme. Na cidade de São Paulo, Boulos superou a candidatura do PT em 2020. Por isso, sua candidatura em 2024 é muito maior que uma tática eleitoral. Boulos concentra uma aposta estratégica.        

4. Três estratégias para a etapa pós-Lula. Estamos diante de um daqueles momentos raros em que uma questão central será incontornável: o que será da esquerda brasileira depois de Lula? Não haverá transição sem disputa. O fator chave deste processo será a luta de classes, que condiciona a evolução da relação social de forças, e o destino do governo Lula. Apesar da vitória eleitoral, a longa etapa defensiva de refluxo nas lutas sociais não se inverteu, o país permanece fraturado, e a extrema-direita mantém influência sobre um quarto da população, autoridade sobre a massa da burguesia, maioria nas camadas médias, e influência sobre uma parcela dos trabalhadores com contratos, sobretudo, no sudeste e sul. A aposta da esquerda do PT é defensiva, manter posições e defender a posição de liderança do PT como instrumento político de representação dos trabalhadores, disputando espaço interno, e apoiando Lula até o fim. Mas ninguém sabe se Lula poderá ou não concorrer em 2026. Se concorrer, vencendo ou não, a sucessão interna ao petismo seria adiada, assim como a reorganização da esquerda. Mas, se não concorrer, a hipótese da esquerda do PT apresentar uma candidatura contra Haddad em prévias é improvável. Mesmo que o faça, dificilmente poderá conquistar a visibilidade que Juan Grabois, através de Pátria Grande, alcançou nas primárias do peronismo em agosto recente. O mais provável seria uma candidatura Haddad com perfil e programa alinhado às posições mais moderadas no PT, assim como Sergio Massa no peronismo. Do que decorre que uma possível reorganização à esquerda dependerá, essencialmente, de uma disputa exterior ao PT, não interna. Quem se posiciona melhor nessa direção é o PSol, e a liderança de Boulos concentra esta esperança, mesmo se não vencer as eleições em São Paulo em 2024. Se, eventualmente, vencer, tudo se acelera. Já os partidos à esquerda do PSol são grupos de propaganda resignados, aparentemente, a um papel de eterna oposição testemunhal.  

5. O que a história nos ensina? A última vez que se colocou a questão foi há 45 anos atrás. Entre 1978/80, no intervalo de apenas dois anos, um processo acelerado pela primeira onda de mobilizações operárias, sindicais e populares abriu uma luta política frontal na oposição. Então, a esquerda se dividiu em três campos: (a) os que defenderam até o fim a presença da esquerda dentro do MDB, sob a liderança dos liberais, como o PCB, o PCdoB, o MR-8; (b) os que imaginavam que a crise da ditadura abriria as condições para que uma organização revolucionária conquistasse influência de massas; (c) os que compreenderam a necessidade do PT como uma mediação para disputar a liderança das massas com o MDB e Brizola contra a ditadura. O protagonismo de Lula à frente das greves do ABC abriu a possibilidade de uma reorganização que deslocou, sobretudo, o papel do PCB, que tinha sido o principal instrumento de representação da esquerda no Brasil até 1964. A questão é saber se o ciclo histórico do PT se esgotará ou não numa etapa pós-lulista.

6. Por que a estratégia Lula foi vitoriosa? Que lições deixou o processo que iniciou em 1978/80, e deu um salto de qualidade entre as Diretas de 1984, e as primeiras eleições presidenciais em 1989? Por que o PT substituiu o PCB? Por que demorou dez anos? Podemos destacar a rara combinação de cinco fatores centrais, avançando dos mais objetivos para os subjetivos: (a) o primeiro foi o impacto da crise superinflacionária crônica sobre a experiência de vida de uma nova geração de trabalhadores urbanizados, que procuraram os sindicatos para se defender, e descobriram sua força social de choque na onda de greves; (b) o segundo foi o enfraquecimento da ditadura militar, depois de quinze anos no poder, e o deslocamento lento, mas ininterrupto, da maioria das camadas médias e do povo para a oposição, enquanto a liderança liberal-burguesa do MDB apostava no quietismo, e no calendário eleitoral da transição lenta segura do governo Figueiredo/Golbery; (c) o terceiro foi a explosão da direção do PCB com o retorno de Luís Carlos Prestes, a disputa fracional que levou ao afastamento do lendário líder histórico, e a capitulação à direção do MDB; (d) o quarto foi a união das três componentes fundamentais, ainda que com influência desigual, que apostaram no projeto de construção do PT para derrubar a ditadura e implodir o plano de transição negociada, e disputar com Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, mas, também, Leonel Brizola a liderança da oposição: os sindicalistas metalúrgicos, bancários, professores, petroleiros, entre outros; as correntes de esquerda que tinham se reorganizado na clandestinidade; e a esquerda social e popular católica; (e) o último e mais imprevisível dos fatores foi a presença, compromisso e capacidade de Lula, porque o seu papel pessoal foi insubstituível. Demorou dez anos, mas foi, paradoxalmente, rápido. Dez anos pode parecer uma eternidade na escala de uma vida, mas, na métrica da história, foi vertiginoso. A afirmação de um partido de esquerda, e de um metalúrgico na sua liderança, uma “revolução” na consciência política de uma geração, só foi possível, por muitos fatores, mas o principal foi que o PT acertou na linha: soube ser firme na luta contra a ditadura, e ser oposição aos governos Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique.  

7. A encruzilhada histórica. A disputa pela liderança da esquerda na etapa pós-Lula vai passar por um processo cujo ritmo é ainda imprevisível, talvez mais lento, mas inexorável. Esta luta já começou e teve cinco momentos decisivos: (a) as eleições de 2018 foram o primeiro, e a tática de apresentação da candidatura de Boulos, alicerçada na defesa da Frente Única e na identificação de Bolsonaro como o inimigo principal, permitiu despertar muito respeito, no primeiro turno, reforçado pelo engajamento leal no segundo turno, que foi fatal para Ciro Gomes; (b) o segundo foi, pela positiva, a presença do PSol na campanha Lula Livre e, pela negativa, a ausência da maioria da esquerda radical exterior ao PT; (c) o terceiro foram as eleições municipais de 2020, o desempenho extraordinário de Boulos, mas também, de Manuela D’Ávila, que se projetou como liderança feminista de projeção nacional; (d) o quarto foi a campanha Fora Bolsonaro em 2021, em que Boulos se afirmou como o orador mais popular na Paulista, e consolidou como referência nacional; (e) o quinto foram as eleições de 2022, em que o Psol, pela primeira vez, apoiou o PT desde o primeiro turno, e Boulos se elegeu deputado de esquerda com a maior votação em todo o país. São estes acertos que posicionam o PSol e Boulos como seu porta-voz, melhor do que qualquer outros no que está por vir.

8. A estratégia Boulos. Um dos perigos que nos cercam é o divórcio entre os “gênios” da política e os “doutores” da revolução. Existe uma parcela da esquerda que só tem interesse nos debates da tática, e outra que só se dedica a discussões de programa. Os primeiros estão se preparando para a disputa das candidaturas e coligações para as prefeituras, e até para vereadores, em 2024. Os segundos estão polemizando sobre a atualidade da teoria da revolução em Lenin, Trotsky, Luckácz ou Gramsci. Todos estes debates e controvérsias têm o seu lugar. Mas não deveriam estar dissociados uns dos outros, e só fazem sentido se houver clareza de estratégia. Teremos três campos, nos próximos anos, na esquerda radical: (a) os que se alinharão com a defesa do PT, independentemente, do desfecho do governo Lula, e mesmo que Haddad se consolide como seu herdeiro; (b) os que insistirão em permanecer adversários de Boulos, interna ou externamente ao PSol, na expectativa que será possível ultrapassar, simultaneamente, Lula e Boulos, pela esquerda; (c) os que defenderão que Boulos é a liderança melhor posicionada para impulsionar uma reorganização da esquerda brasileira que tenha o impulso de construir um instrumento de luta, com peso de massas, superior ao que hoje é o PT. 

9. Dois “negacionismos”. Sem uma onda de ascenso não é provável uma reorganização pela esquerda bem sucedida a “frio”. Mas entre a precipitação de um etapa pré-revolucionária, e a permanência da atual situação reacionária, há vários cenários intermediários possíveis. O Brasi não é “vulcânico”, como a Argentina, mas aqui as placas tectônicas também se movem. O argumento forte dos que ainda apostam no PT, mesmo que seja liderado por Haddad, é que o PSol é muito menor. Melhor mal organizados no PT do que desorganizados. Trata-se um “negacionismo” conservador que expressa acomodação às pressões do gigantesco aparelho. Os que apostam na possibilidade de construção de um partido revolucionário, realmente, revolucionário, o PRRR, têm como argumento forte que o PSOL é um partido eleitoral, portanto, reformista, e Boulos não merece confiança. Trata-se de outra forma de negacionismo. O PSol é um partido sem definição estratégica, mas já provou que recebe no seu interior todos os superrevolucionários que quiserem construir, lealmente. Já a desconfiança pessoal de Boulos é um argumento despolitizado. Uma aposta política não pode repousar em cálculos de preferências subjetivas. Boulos já deu provas de integridade moral, coragem pessoal e inteligência política.  A renovação da esquerda será geracional, mas, também, programática. O desafio é lutar pela mobilização de massas e ir além do neoliberalismo, E depois? Depois, como Napoleão respondeu um dia, improvisamos.  

Notas
1 Disponível em Datafolha: 29% se declaram muito petistas, e 25%, muito bolsonaristas. Consulta em 30 outubro 2023.
2 Disponível em Datafolha: PT tem mais simpatizantes, mas também é o partido mais rejeitado. Consulta em 30 outubro 2023.