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MUNDO

Esses sobreviventes israelenses não querem vingança

Apesar dos fortes apelos por vingança dentro de Israel, muitos sobreviventes dos massacres de 7 de outubro do Hamas, bem como parentes dos mortos ou sequestrados, estão se manifestando contra a guerra em Gaza.

Orly Noy. Tradução de Davi de Carvalho, do portal Esquerda Online

Depoimento de um jovem de 19 anos do Kibutz Be’eri que sobreviveu ao massacre do Hamas em 7 de outubro de 2023.
(Captura de tela/Canal do Youtube de Or-ly Barlev)

“Todo mundo está falando de união. Gente, a união é terrivelmente bonita, mas no campo há vingança, e há crueldade… Teremos a vida inteira para lamentar, e vamos chorar. Mas agora, só há um objetivo: vingar-se e ser cruel.”

Essas foram as palavras do soldado da reserva israelense Guy Hochman – normalmente um artista e influenciador online – em uma entrevista ao Canal 12 nos primeiros dias do ataque de Israel à Faixa de Gaza após os massacres de 7 de outubro por militantes do Hamas. Em poucas palavras, Hochman captou o sentimento que parece ter tomado conta de Israel, desde a extrema-direita até muitos que se identificam como esquerdistas: a justificativa da catástrofe que Israel está causando atualmente em mais de 2 milhões de palestinos em Gaza.

Alguns estão explicando sua justificativa em termos de “derrotar o Hamas”. Outros, como Hochman, estão colocando a vingança arrebatadora acima de tudo. É, pois, ainda mais notável que, face ao clima político prevalecente, cada vez mais israelitas que sobreviveram aos massacres, ou cujos entes queridos foram mortos ou raptados para Gaza, manifestem uma oposição inequívoca ao assassínio de palestinianos inocentes e digam não à vingança.

Em um elogio a seu irmão Hayim, um ativista antiocupação que foi assassinado no Kibutz Holit, Noi Katsman pediu a seu país “que não use nossas mortes e nossa dor para causar a morte e a dor de outras pessoas ou outras famílias. Exijo que paremos com o círculo da dor e entendamos que o único caminho [a seguir] é a liberdade e a igualdade de direitos. Paz, fraternidade e segurança para todos os seres humanos”.

Ziv Stahl, diretor executivo da organização de direitos humanos Yesh Din e sobrevivente do incêndio infernal em Kfar Aza, também se manifestou fortemente contra o ataque de Israel a Gaza em um artigo no Haaretz. “Não tenho necessidade de vingança, nada vai devolver aqueles que se foram”, escreveu. “Bombardeios indiscriminados em Gaza e a morte de civis não envolvidos com esses crimes horríveis não são solução.”

Yotam Kipnis, cujo pai foi assassinado no ataque do Hamas, disse em seu elogio: “Não escreva o nome de meu pai em um projétil [militar]. Ele não queria isso. Não diga: ‘Deus vingará o seu sangue’. Diga: ‘Que sua memória seja para uma bênção’.”

Michal Halev, mãe de Laor Abramov, assassinado pelo Hamas, gritou em um vídeo postado no Facebook: “Estou implorando ao mundo: pare todas as guerras, pare de matar pessoas, pare de matar bebês. A guerra não é a resposta. A guerra não é como você conserta as coisas. Este país, Israel, está passando por horrores… E eu sei que as mães em Gaza estão passando por horrores… Em meu nome, não quero vingança”.

Maoz Inon, cujos pais foram assassinados em 7 de outubro, escreveu na Al Jazeera: “Meus pais eram pessoas de paz… A vingança não vai trazer meus pais de volta à vida. Também não vai trazer de volta outros israelenses e palestinos mortos. Vai fazer o contrário… Temos de quebrar o ciclo.”

Quando Yonatan Ziegen, filho de Vivian Silver, foi questionado por um jornalista sobre o que sua mãe – que teria sido sequestrada – pensaria sobre o que Israel está fazendo em Gaza agora, ele respondeu: “Ela ficaria mortificada. Porque você não pode curar bebês mortos com mais bebês mortos. Precisamos de paz. Era para isso que ela trabalhava a vida toda… Dor é dor.”

E, em um vídeo que se tornou viral, uma sobrevivente de 19 anos do massacre no Kibutz Be’eri ofereceu um monólogo comovente sobre o abandono do governo aos moradores do sul, no qual ela implorou: “Devolver os reféns. Paz. Decência e justiça… Talvez alguns de vocês achem difícil ouvir essas palavras. É difícil para mim falar. Mas com o que eu passei em Be’eri, você deve isso a mim.”

Devemos isso a eles. Escuto-os e leio as suas palavras, e inclino a cabeça perante a sua coragem. E penso na estranha insistência de tantos neste momento, incluindo os chamados esquerdistas, em medir nosso grau de solidariedade, dor ou raiva de acordo com nossa disposição de apoiar o fogo que nosso exército está caindo sobre Gaza.

O que você dirá a esse pai enlutado? Àquele sobrevivente do massacre? Falta também solidariedade? De onde vem a ousadia para determinar o que está acontecendo dentro de cada um de nossos corações e mentes partidos?

Vejo as acusações contra aqueles que imploram pelo fim desta carnificina fútil, deste terrível e ameaçador crime de guerra em Gaza, e penso na frase proferida por Ben Kfir, membro do Fórum das Famílias Enlutadas, que ficou gravada na minha cabeça anos atrás, quando falou da futilidade da vingança: “Perdi minha filha, não minha mente.”

Este homem, que perdeu a pessoa mais querida de todas, e tantos outros que agora se juntaram ao círculo do luto, compreendem o que tantos ainda hoje se recusam a compreender: que o caminho que nos está a ser oferecido, de mais sangue e mais “dissuasão”, é exatamente o caminho que nos foi oferecido tantas vezes antes, e isso nos levou aos horrores que estamos vendo hoje.

Além da imoralidade de justificar as atrocidades que Israel está cometendo em Gaza, a expectativa de que desta vez o massacre em massa levará a um resultado diferente de todas as campanhas militares anteriores – que não conseguiram nada além de aprofundar o desespero, o sofrimento e o ódio do lado palestino – é um terrível autoengano cujo preço será pago novamente pelos moradores do sul.

Não diga que Israel está fazendo isso por eles. Israel abandonou o sul em um crime colossal, e não pode redimir seu crime com o sangue de inocentes em Gaza. Em vez de nos entregarmos a essa ânsia de vingança, vamos ouvir as famílias das vítimas.