por Pedro Henrique Antunes da Costa
Pouco mais de duas semanas depois de liberar o repasse de mais de R$10 milhões de reais para Comunidades Terapêuticas (CTs), por meio do seu Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas (DEPAD) – que é um Departamento das e para as CTs –, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, mais conhecido como Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), ataca novamente. No dia 20 de outubro, o MDS publicou a Portaria nº 926, em que “estabelece diretrizes em âmbito nacional para fiscalização e monitoramento dos serviços prestados por Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas”. Na ocasião, denunciamos como o MDS, ao financiar as CTs tem, inclusive, atacado o SUS.
Temos na Portaria 926/2023 mais uma iniciativa nessa direção, por mais que se apresente na aparência como um avanço, tratando de algo importante. A princípio, não se questiona a criação de diretrizes para fiscalização e monitoramento de Comunidades Terapêuticas. Estas são mais do que necessárias: são urgentes. É mais do que evidente que as normativas existentes, quando aplicadas, são insuficientes. E tal insuficiência não é mera falha, mas proposital. Fundamentalmente, a normativa que tem sido utilizada para a fiscalização e o monitoramento das CTs é a RDC nº 29, de junho de 2011, da Vigilância Sanitária, e que é bastante genérica e permissiva. Para se ter uma ideia, em termos de equipe, a RDC 29/2011, apenas determina que:
Art. 5º As instituições abrangidas por esta Resolução deverão manter responsável técnico de nível superior legalmente habilitado, bem como um substituto com a mesma qualificação.
Art. 6º As instituições devem possuir profissional que responda pelas questões operacionais durante o seu período de funcionamento, podendo ser o próprio responsável técnico ou pessoa designada para tal fim.
[…]
Art. 9º As instituições devem manter recursos humanos em período integral, em número compatível com as atividades desenvolvidas.
Ou seja, concretamente, basta um profissional (o responsável técnico) com nível superior legalmente habilitado e um substituto para se abrir uma CT. Não há nem a definição de qual formação de curso superior, muito menos o que seria isto de legalmente habilitado. Uma pessoa formada em engenharia mecatrônica – cuja formação, a despeito de sua relevância para a sociedade, pouco tem a oferecer sobre o objeto aqui tratado, a assistência, o cuidado em saúde mental, álcool e outras drogas – legalmente habilitada pode ser, junto de um substituto, basicamente, a equipe a “tratar” de pessoas com necessidades atreladas ao consumo de drogas.
Considerando a complexidade da assistência para pessoas com necessidades associadas ao consumo de drogas, tais requisitos são vexatórios. Não determinam a presença de profissionais especializados, como psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, dentre outros, ou seja, a necessidade de uma equipe técnica multidisciplinar que seja condizente com a complexidade dos casos. Ainda mais se tratando de uma instituição asilar, que isola e segrega as pessoas de seu contexto de vida, tais equipes seriam ainda mais necessárias.
Contudo, é necessário analisar de maneira mais detida não só o conteúdo da Portaria 926/2023, mas o contexto no qual ela se insere. Primeiramente, que a Portaria nem deveria existir, afinal, não era para existir um Departamento de Comunidades Terapêuticas dentro do MDS – e em nenhum Ministério. Além disso, as diretrizes fiscalizatórias e monitoradores às CTs não devem ser restritas a um ente ministerial, muito menos ao MDS. Por exemplo, se temos um Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), o órgão superior permanente do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (SISNAD). O CONAD que é o espaço institucional de controle e participação social, é composto por vários ministérios (inclusive, o MDS), assim como por representação da sociedade como um todo. Ora, não é atribuição dele formular tais diretrizes? Aviso: trata-se de uma pergunta retórica. Assim, fazemos mais uma pergunta:
Qual o interesse de o MDS centralizar a formulação de diretrizes de fiscalização e monitoramento das CTs e, nisso, excluir outros órgãos ministeriais e a participação e controle social da sociedade?
Nessa direção, citamos o exemplo também recente da Comunidade Terapêutica Casa Maria de Magdala, gerida pela ONG Salve a Si, que fica no entorno do Distrito Federal. Mesmo depois de inúmeras denúncias, das mais variadas violências e irregularidades, tendo, inclusive, o seu financiamento paralisado pelo Tribunal de Contas do DF, verificamos o repasse pelo MDS a ela no mês de setembro. A referida CT foi denunciada, dentre várias coisas, pois as internas estavam construindo a casa do seu até então diretor – casa que fica na própria CT. Não se trata, portanto, de falta de conhecimento sobre as violências e irregularidades cometidas por tal CT. Este é só um exemplo de que é proposital.
Na própria Portaria, fica evidenciada a sua extrapolação de competência, a saber: “Art. 3º A fiscalização e o monitoramento a que se refere esta Portaria ficam a cargo dos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), sem prejuízo dos demais órgãos na sua área de competência”. Ora, então, só resta aos órgãos do SISNAD a execução da fiscalização, devendo obedecer ao que o MDS formulou? Não seria isto uma quebra na própria relação e hierarquia entre os órgãos ministeriais e o CONAD, ou extrapolação de competência do MDS?
E ainda existem outros absurdos na Portaria, como possibilitar à “entidade fiscalizada, no prazo de 10 (dez) dias úteis, a contar do recebimento do relatório de fiscalização” “apresentar manifestação, justificativas e documentos (comprobatórios) complementares, ao órgão fiscalizador, sobre os apontamentos elencados no relatório de fiscalização”. Por mais que este prazo possa ser “diminuído para 05 (cinco) dias úteis, em caso de graves irregularidades constatadas durante a fiscalização e/ou denúncia”, supomos que sejam encontradas situações de tortura, de trabalho escravo, de mortes, dentre outras práticas comuns das CTs – e fartamente noticiadas –, ainda assim a instituição não poderá ser fechada (mantendo o direito de defesa), devendo respeitar tais prazos? As pessoas seguirão sendo violentadas durante 10 ou 05 dias úteis, enquanto a CT se justifica?
Não é esta mais uma extrapolação da competência do MDS, adentrando em premissas e responsabilidades da política, sistema de justiça e ordenamento jurídico? E pior, tudo isso por Portaria, sem debate? Novamente, perguntas retóricas.
Cabe ainda ressaltar a periculosidade do parágrafo 4º, do Artigo 3º, que diz que “As fiscalizações de que tratam esta Portaria poderão ocorrer de modo presencial ou remoto”. A partir de uma simples leitura do Anexo da Portaria, o Roteiro de Fiscalização do Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas – DEPAD, fica evidente que tal possibilidade se choca contra a complexidade de aspectos abarcados e avaliados, por mais que contenha uma série de requisitos e critérios propositalmente genéricos. Por exemplo, como é possível, de maneira online, avaliar realmente que a CT mantém “instalações físicas dos ambientes externos e internos em boas condições de conservação, segurança, organização, conforto e limpeza”. É possível verificar, realmente, a qualidade da assistência ofertada sem estar presencialmente no local, sem conversar com as pessoas com o mínimo de privacidade – quando não anonimato – para que falem aquilo que sentirem necessidade.
Ainda nessa direção, é um absurdo achar que todo o ponto IX, de “Satisfação do Usuário” é passível de ser avaliado corretamente de maneira remota. Seguem só algumas das perguntas: “Conhecem as normas e regulamentos da entidade? O que acontece quando alguma norma é quebrada? Foi exigido bens ou contrapartida financeira ao acolhido que tem financiamento do poder público?”; “Sobre a qualidade da alimentação e quantidade das refeições?”; “Se houve situação em que foram contidos fisicamente ou por medicamentos?”; “É assegurada a privacidade, inclusive no tocante ao uso de vestuário, corte de cabelo e objetos pessoais próprios, observadas as regras sociais de convivência?”, “Quando querem falar com os familiares, como fazem?”, “Durante o período do acolhimento, percebeu alguma melhora? Quais?”
Consideramos que, além, permitir que isto seja feito remotamente, sem as devidas proteções às pessoas internadas nas CTs, é antiético. Tal conduta pode colocar a vida dessas pessoas em risco.
Considerando tudo isso, concluímos que, em vez de uma iniciativa realmente orientada para a fiscalização das CTs, a Portaria 926/2023 é, na verdade, uma medida de proteção às CTs; uma normativa de segurança às CTs, para que possam continuar a cometer suas violências e/ou irregularidades, sendo, inclusive, protegidas quanto a isto, possibilitando mais tempo e meios para se justificarem (e, nesse interim, continuarem a violentar seus internos). Inclusive, todo o princípio de não revitimização de pessoas em situação de violência é praticamente desconsiderado pela Portaria. Pelo contrário, ela pode, justamente, garantir a revitimização das pessoas manicomializadas nas CTs e, mais, chancelando tal violência
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